sábado, 30 de novembro de 2019

Que lacanagem... - por Kelsen Bravos*

a Freud, Sartre, Lacan, Agepê
aos cantor e compositores da música General da Banda:
  Blecaute, Tancredo Silva, José Alcides e Sátiro de Melo 


Sensação de queda abissal, ou afogamento, ou perseguição, ou mesmo a de - quando se deixa de fumar - perder a respiração por causa da fumaça do cigarro... quem nunca acordou em sobressalto pela madrugada por causa de uma sufocante sensação de angústia? São tantas as formas de o nosso inconsciente nos proporcionar relaxamento. Uma delas é esta de tensionar o sono a ponto de nos acordar movido por estresse e depois, ao tomar ciência da situação, sermos envolvidos por profundo alívio que nos pacifica e nos aninha no sono dos justos.

A ciência afirma que ao dormir toda vez se sonha. O sono e o sonho são objetos das mais diversas análises. Do ponto de vista místico, a literatura cabalística sobre o significado dos sonhos é sem fim. Do ponto de vista científico, na psicanálise, por exemplo, Freud dedica capital importância aos sonhos e conclui que ele realiza desejos. Sartre diz que o homem dorme e sonha para satisfazer os seus desejos e acorda para realizar os seus sonhos. Lacan diz que só acordamos para continuar sonhando.

Acontece que muito pouco lembramos do que sonhamos; mas, a julgar verdadeira a afirmação sartreana, estamos todos, quando em vigília, a realizar o que sonhamos e isso nos dá prazer, alívio e paz de espírito. É, portanto, necessário, imprescindível, dormir, e bem. Mas a considerar Lacan, os devaneios, a fantasia, a angústia da vigília, consciente ou não, é também um sonhar. Então, o desejo de dormir, mais do que a necessidade, é um fator bastante considerável e carregado de sentidos.

Existe, entretanto, quem, embora sinta-se dominado pelo desejo de dormir, não consiga fazê-lo. É o caso daquele ser sombrio para quem o sono e o sonhar há muito não acontecem. Talvez por isso se atole numa ideia fixa, por ter cristalizadas as emoções mais pavorosas, em razão de não aliviá-las nem em sonho, porque não dorme. Acordado, vive seus pesadelos e não relaxa nunca. Vê em todos os desconhecidos uma ameaça, desconfia até dos amigos mais próximos. Vivencia a sufocante angústia acordado, desde o levantar ao amanhecer até a hora de deitar para (tentar) dormir.

Na hora de dormir, confere a arma sob o travesseiro, a outra na mesa de cabeceira e a da cintura. Longe delas não consegue nem deitar. Com elas, pelo menos tenta cochilar; é, porém, em vão. A acidez do estômago, o refluxo, a dor no fígado, o inchaço no pâncreas, a próstata inflamada, a incontinência urinária, a latejante e dolorosa hemorroida não o deixam em paz. Tal situação vem sendo agravada desde a colocação da faixa auriverde tiracolar que transformou um mito em comandante-em-chefe de uma republiqueta.

Vive transtornado por não conseguir dormir. Sonolento nele, só o raciocínio, a inteligência. O resto de si é uma insônia só. Que procure um especialista, recomendam os mais chegados, mas ele não confia em ninguém, vê traição na proposta.

Após incontáveis tentativas, a Menina de Cabelos Longos conseguiu convencê-lo a se tratar - assim chama a sua mulher, inspirado pela música de Agepê, não só por suas religiosas madeixas mas também porque sua presença o faz desejar comer, beber, dormir e não pagar; pois sim, ela o venceu pelo cansaço e fê-lo se consultar com um especialista ligado ao seu líder espiritual, pastor Mequetrefe, e ressaltou que foi indicado pelo Asqueirós, o sabe-tudo, seu homem de confiança.

O tal profissional dizia-se especialista em Lacan; mas era de araque, fazia mesmo era lacanagem. Com o conhecimento que tinha, seria bem capaz de ser convidado a assumir algum ministério do governo. Talvez o da Conversa para Boi Dormir.

Logo na primeira sessão, o especialista levou o paciente a concluir que o seu gostar da música Menina dos Cabelos Longos, de Agepê, não tinha nada a ver com a esposa, mas com o recalque contra nordestinos, nortistas e com a necessidade vital de usar armas.

O fato se deu pela insistência do paciente em deixar claro que só aceitou conversar com ele por causa da Menina de Cabelos Longos e também porque se negou a deitar num divã, preferiu ir para sua alcova, porque lá estavam suas armas fiéis.

Conversa vai, conversa vem, ele pediu que cantasse pelo menos um trecho da música e dela só lembrou de “eu sei que no nordeste tem cabra da peste /e no norte tem faca de corte e calor/ mas vou levar cheio de bala/ um trezoitão [pá-pá-pá-pá] na mala e um ventilador. [Porra!]”.

Daí, revelou a realidade, não era por causa da Menina de Cabelos Longos que gostava da música, mas pelo trezoitão na mala. Em epifânico êxtase, gritou aliviado que era isso aí, era isso mesmo [porra!], era pelo trezoitão, pá-pá-pá-pá! Você é bom mesmo, vai acabar ganhando um ministério [Porra]!

Naquele dia conseguiu mais do que um cochilo, chegou a dormir e sonhar; mas o sono acabou em angústia, viu-se sufocado por alguma coisa que lhe prendia o pescoço e gritava repetidas vezes a palavra “calma” com a letra L bem pronunciada e um som de R no final: “callllmar”...

Ao revelar o sonho de angústia para o especialista em lacanagem, este fez cara de estou entendendo e pronunciou calllmar bem interrogativo. Pediu que repetisse várias vezes tentando imitar a voz do sonho:

Calllma, calama, calama, calamar, CALAMAR! CALAMAR! CALAMAR! CALAMAR!... repetiu a ponto de perder o sentido de tudo ao redor, como em transe hipnótico.

No alto da sua sapiência lacanagemética, o terapeuta perguntou qual era o seu maior medo. E afirmava, você tem um medo colossal. Qual é o seu maior medo? Responda para si mesmo! Admita para si mesmo! Quem estava sufocando você no sonho?

O paciente começou a se contorcer em surto, tentava livrar o pescoço de um aperto, e também tentava livrar a cintura, as pernas, um braço, se contorcia, a coisa que o envolvia parecia ter vários braços. Entrava em desespero ao tentar sem êxito alcançar os trezoitões. Já quase sem ar, num fio de voz, conseguiu falar: calamar, calamar, calamar…

Lula! - exclamou o terapeuta. É uma lula-colossal! Calamar é sinônimo de lula-colossal. Ao ouvir o nome Lula, o paciente adotou posição fetal, foi-se encolhendo, dobrando-se sobre si mesmo até travar, e cair num soluçante choro aliviador. O terapeuta o envolveu e lentamente o trouxe do transe. Estava completamente extenuado e feliz, porque aliviado.

Dormiu profundamente naquela noite. Na sessão seguinte, estava bem tranquilo. Sonhara com a lula-colossal sendo dominada por Moros - o deus da sorte, do destino e da morte, um demônio (daemon), segundo a mitologia grega. Moros me salvou, porra! - exultou em pleno alívio.

Feliz da vida começou a cantarolar a música General da Banda: "Chegou o general da banda, êh-êh... mourão, mourão, vara madura que não cai/mourão, mourão, mourão, cutuca por baixo que ele vai..."

Mas o especialista em lacanagem ao ouvir a música lhe revelou algo muito mais grave, disse-lhe que o nome científico de lula-colossal é Mesonychoteuthis hamiltoni.

A revelação lhe trouxe acidez do estômago, refluxo, dor no fígado, inchaço no pâncreas, próstata inflamada, incontinência urinária e intestinal, seguida de latejante e dolorosa hemorroida, por fim o colocou num surto irreversível, depois de gritar: HAMILTONI?! Porrrrrr...

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*Kelsen Bravos - professor, escritor, cronista, compositor, poeta, editor do Evoé!

sábado, 23 de novembro de 2019

Pela matriarcal Nação Brasileira - por Kelsen Bravos*



a Luiz Carlos da Vila,
Rildo Hora, Sérgio Cabral (o pai),
à Estação Primeira de Mangueira

A um amigo online num grupo do whatsapp, de chofre, solicitei um mote para minha crônica semanal. Ele me respondeu que lhe pegara de calça curta. Excelente tema, exclamei. Um outro propôs “mais vale milicianos na mão do que uma embaixada nos EUA”. Recuperado, o primeiro emplacou “a valorização da família”. Um terceiro mandou juntar tudo e, sendo o meu coração um condomínio onde sempre cabe mais um, acolhi a todas as propostas.

Agora estou cá nesse engodo e o meu juízo não para de pensar na narrativa dos espetáculos de abertura e de encerramento da Olimpíada do Rio de Janeiro em 2016. Nunca me identifiquei tanto com um discurso. Pareceu-me ver sorrir o tão sonhado dia de graça em que felizes poesias estão a brindar porque o mal foi cortado pela raiz, tal qual nos diz o samba “Por um dia de Graça”, do Luiz Carlos da Vila.

Já na cerimônia de abertura, propôs e praticou a tolerância entre os povos, o respeito a imigrantes. Foi a primeira das Olimpíadas a acolher atletas refugiados. Eles representaram uma nação plural, ecumênica. Fez-se “a porta aberta ao irmão de qualquer chão, de qualquer raça”. O discurso trouxe também a sustentabilidade ambiental com treze mil sementes de duzentas e sete árvores nativas plantadas em tótens ecológicos por todos os integrantes dos 207 países participantes. De cada palma de mão, um palmo de chão recebeu sementes de felicidade que hão de formar a Floresta dos Atletas. O plantio definitivo, porém, por involuções políticas, só começou três anos depois. Antes tarde do que nunca.

Se a abertura afirmou a diversidade cultural brasileira, o encerramento, embora com sofridas restrições do governo golpista à proposta original, foi uma festa da raça brasileira, uma quizomba multicultural. Talvez tenha sido a última realização da Política Cultural desenvolvida no Brasil de 2002 a 2016, quando foi golpeada. Uma festa linda que fez desfilar a diversidade das expressões de todas as regiões da Nação Brasileira. Inesquecível e sem fim, pois sua narrativa ficou em aberto, para sua proposta permanecer eterna.

Em vez de terminar, todos os presentes deram continuidade à festa ao se misturarem a todos os artistas num congraçamento universal. Todo mundo, em estado de graça, caiu na quizomba, em louvação, a sambar. Foi sim um dia de graça. Aquele encerramento não acabou! Ficou aberto feito o fraterno desejo sem fim de meu sorório coração em acolher com irmandade e igualdade, com respeito às diferenças, à diversidade, ao multiculturalismo, à sustentabilidade ambiental, enfim, com o melhor jeito brasileiro de ser.

Na transmissão pelas tevês, a câmera ao subir e abrir o plano para o infinito fez o mundo inteiro ver “o não chorar e o não sofrer se alastrando”, e ouvir ecoar o emocionado canto de todos na harmonia da festa, e entendeu a necessidade de um áureo tempo de Justiça ao raiar a Liberdade. Até hoje, tem gente, feito eu, a festejar. A Nação Brasileira mostrou ao mundo ser possível a Utopia que sonhamos.

Mas, pegos de calças curtas, já vivíamos num país sequestrado pelo mais vil dos golpes que deu força à ascensão do velho novo fascismo. Fascismo sustentado pela falsa moral dos que falam em vão o nome de Deus e se apoiam na força das quadrilhas milicianas, que assassinam no campo e nas cidades, que estão nos mais escusos negócios seja contra a agricultura familiar e pela ascensão da cultura do agroveneno, seja no tráfico de drogas, de minerais, de madeiras, de influências para encobrir o malfeito dos cúmplices e cometer impunemente crimes de lesa-pátria.

Em nome da valorização da família, promovem o discurso preconceituoso, punitivo, excludente, racista como pilares de sustentação da célula social matriz. O núcleo familiar é machista e de expressão misógina. No lugar da Educação, a vazia disciplina, sinônimo da cega obediência, que mata a criatividade e sangra a diversidade. Impõem a arma e a intolerância como política de segurança, saciam a fome da besta da morte, para eliminar a diversidade, o diferente, a igualdade. Usam a pedagogia do medo e se auto proclamam missionários e agentes de Deus a quem todos devem cega obediência e temor.

Ao líder chamam de mito para lhe conferir poderes acima dos mortais. Um mito que está a matar o melhor do Brasil: a Nação Brasileira e toda a beleza de sua diversidade cultural. O poder no planalto central e no sudeste tem sim a expressão de um mito. Mas tão louca e sombria quanto a expressão das pinturas de Goya em que Saturno (Cronos) - por temor que eles lhe tirem o poder - devora os próprios filhos.

Tão louco quanto a imagem do mito Saturno a devorar os próprios filhos é o desmonte dos direitos sociais fundamentais, da cultura, do trabalho, da sanidade do Estado Democrático de Direito, ora em curso no país.

Mais louca do que a alegoria pintada por Goya é a imagem real dos helicópteros do vil Witzel a matar a infância das crianças cariocas, numa tática de terrorismo de estado importada de Israel (que a usa contra as crianças e a cultura palestina), para impor às gerações o medo e assim conquistar a rendição e cristalizar o respeito à cultura opressora. Uma estratégia fascista que há muito desvirtua Israel e está colocada em prática aqui contra a Nação Brasileira.

Aqui, pois, no Brasil o mito tem sua mossad (a temida polícia secreta de Israel). Um poder também secreto, porém, criminoso, miliciano, a quem preserva a todo custo, pois vale muito mais do que uma embaixada nos EUA, porque é quem mata os filhos da pátria que lhe ameaçam o poder.

Tamanha é a insensatez de tudo isso, que às vezes sinto ameaçada a minha crença na humanidade; mas nas minhas discussões com Tupã, me ilumino ao perceber que para separar o joio do trigo precisamos deixar que ambos cresçam e se fortaleçam, pois a separação precoce mataria os dois.

É por isso que mantenho bem vivo em meu espírito o discurso do encerramento da Olimpíada no Brasil e torço para as crianças, feito no samba "Os meninos da Mangueira", de Rildo Hora e Sérgio Cabral (o pai), recebam de presente de Natal, em vez de arminhas, um pandeiro e uma cuíca e corram para organizar uma linda bateria, e que a velha guarda se una aos meninos e que todos, unidos, possamos transformar o passado, o futuro e o presente numa quizomba e que a Nação Brasileira seja definitivamente uma sociedade matriacal, e, como canta Estação Primeira de Mangueira, tenha a cara de Cariri, a sua liberdade tenha a força do Dragão de Aracati e que prevaleçam as vozes das Dandaras, Marias, Mahins, Marielles, Malês. Evoé! 

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*Kelsen Bravos - professor, escritor, cronista, compositor, poeta, editor do Evoé!

sexta-feira, 15 de novembro de 2019

Odeio mentir - por Kelsen Bravos*



A arte existe porque a vida não basta.
Ferreira Gullar

Além da leitura, um de meus prazeres é escrever. Gosto de crônicas. Para mim é o que seria, para muitos, ver o time do peito vencer um clássico na final do campeonato, ou a escola de samba ganhar mais um carnaval, ou conquistar bonito o festival de quadrilha junina. Algo assim quase tão bom quanto beijar sob luar à erma praia e, depois do silêncio de depois, jogar-se com a amada no mar, já no tudo de novo outra vez…

Nesses tensos dias cheios de construção do nada, sinto a imprescindível necessidade de escrever crônicas, porque pressupõe a leitura atenta do contexto, obriga-me a refletir sobre o estado de coisas e a dialogar com o tempo presente para construir sentidos e, quem sabe, legar um registro ficcional importante para ajudar a interpretar a realidade e, assim, evitar a repetição da iniquidade tão perversa desses dias cheios de nada a legar…

Por estar tão caótico o contexto, resolvi pedir sugestão de temas para facilitar minha necessidade de escrever. Integro vários grupos em mídias de relacionamento. Um dos quais com pessoas de quem fiquei amigo há décadas e que bem recente nos reencontramos. Quando nos conhecemos, éramos muito jovens, passamos poucas e boas juntos. As dificuldades, que não foram poucas, nos uniram. Superamos todas elas e aprendemos muito com isso.

Quase quarenta anos depois, já com um pé no clube dos sessentões, senhores profissionalmente bem sucedidos, alguns com solar brilho no olhar ao exibir a netalhada... Pois lhes digo que o reencontro trouxe aquela juventude de volta, alguns reeditam a mesma imaturidade ao se provocarem e se debaterem numa discussão com argumentos que - num sei não viu? - causam risos até neles mesmos, até porque é isto sim o que querem: voltar a ser meninos.

A mesa do bar em que nos encontramos é um portal que nos transporta para eutopia de nossa velha juventude. Na evolução de lá para cá, histórias mil cada um tem para contar. Todas elas importantes. Acontecimentos felizes outros não. Dramáticos, trágicos, feios e cheios de beleza, tudo assim junto e misturado, porque falamos de vida e vida de verdade não é novela.

Sou professor e trabalho pela emancipação social por meio da Cultura, notadamente, pela arte, a arte literária, a leitura e a escrita e sei que cada pessoa tem sua trajetória e a trajetória de cada ser é milenar a se considerar toda a ascendência, a ancestralidade de cada uma. A essa história milenar que trazemos no DNA chamamos dignidade. Eu tenho uma tremenda consideração por essas trajetórias. Ferir uma sequer significa desrespeitar a dignidade de todos. Adoro gente! Amo essa diversidade de veredas e amplos caminhos unidos que compõem a história da humanidade.

As trajetórias de meus amigos são diversas, os pensamentos também, há polarizações ideológicas. A maioria defende a satisfação de interesses mais imediatos. Têm uma visão pragmática um tanto quanto deturpada, pois, uma vez satisfeito o imediatismo, não importam as consequências subjacentes. Outros defendem a evolução e o aprimoramento das garantias de um estado de bem-estar social.

Gosto de lhes ouvir os argumentos; gosto mais ainda das histórias bem despretensiosas. Daí resolvi dentre os muito grupos a que integro nas redes sociais eleger o desses meus bons amigos de quem tanto gosto para me sugerirem motes para escrever a bendita crônica semanal. Esta é a terceira, à primeira um amigo sugeriu “cuspiu no prato”. A segunda o mesmo amigo mandou o tema “peixe inteligente”. Para esta, ele resolveu não propor para dar vez aos demais.

Acontece que ninguém sugeriu um mote sequer. Acessei o grupo e perguntei. Um deles me disse ter até medo ou receio (sim receio e não medo) de propor. Fiquei intrigado. Que será que será que aconteceu nas crônicas anteriores?! Tentei entabular uma conversa esclarecedora, mas recebi a reticente resposta de que eu precisaria ler nas entrelinhas, decifrar metáforas… Estaria meu bom amigo a me aplicar um “je ne sais quoi” verissimoniano?! Não cri e descartei tal possibilidade.

Propus pensarmos para que serve a arte e por que ela é tão odiamada. Ele respondeu que não sabia dizer; mas ela é imprescindível. Falei que minhas crônicas são apenas alegorias, que a arte imita a vida, que são ficcionais, que existe um contrato tácito entre autor e leitor de aceitarmos um mundo paralelo para entender o real. Por fim citei Gullar para o meu bom amigo: “a arte existe porque a vida não basta”. E, parodiando o poeta maranhense, falei que não escrevo para temer (ou recear), mas para livrar do temor (ou do receio).

Depois dessa conversa com o meu bom amigo, ficou-me renitente a questão da ficção e da realidade nesse contexto de pós-verdade em que qualquer história manipulada por interesses políticos, por mais absurda que seja, acaba considerada real, verdadeira, porque nem mais contestada é. Estamos imersos no reino do consumismo, onde impera o descartável e, no que deveria ser o campo das ideias, foge-se da verticalização das coisas. Os argumentos têm profundidade pireslesca. A leveza do pensar foi corrompida. O pior sentido da leveza do pensamento, o senso crítico zero, é soberano. Daí quanto mais rápida e fútil a comunicação, mais ela é cegamente viralizada. Qualquer imbecil vira “influencer”, sobretudo, se contar com uma legião de robôs. Então o tal “influencer”, segundo o apólogo de Trilussa, cresce em importância quanto mais são os zeros a segui-lo - e a viralizá-lo.

Nesse contexto absurdo, abcego e abmudo, o tal contrato discursivo entre autor e leitor sobre o mundo do faz de conta se liquefaz e evapora. Tudo no universo da pós-verdade é incontestável. Cochilei com essa frase retinindo em meu juízo. Acordei em sobressalto delirante, o fim do compromisso com a verdade trará o caos. A fusão entre ficção e realidade transformará em verdadeira a história do Coringa - agora com muita fidelidade difundida no cinema - haverá a supremacia anarquista, a pós-verdade vai parir o pós-caos, as peças da Dragonauta vão virar cantigas de ninar.

Para espairecer fui à vendinha do bairro, o Mercadinho Seu Luís. Lá histórias reais e divertidas lorotas são contadas à moda antiga. Peixe, pesa aí essas bananas para mim. Já que peso, Peixe. - respondeu com desânimo. Todos lá se tratam assim, peixe pra lá, peixe pra cá. Acho que por influência do filho policial do dono da venda. Eu prefiro chamar as pessoas pelo nome.

O Seu Luís, meu bom vizinho, é um figura simpática. Ninguém, porém, é perfeito. Eleitor do gozo Bozo, está depressivo. Sua antes sortida venda está de mal a pior. Os credores cada vez mais agressivos. Ele me olhou profundamente e me disse que hoje em dia ninguém respeita mais ninguém, que a situação não está boa, fez uma pausa longa: "do jeito que o senhor me avisou na época da eleição". Tive vontade de dizer: Peixe, procura o Sebrae; mas, penalizado, só consegui lhe falar que vai melhorar…

Odeio mentir.
 
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*Kelsen Bravos
- professor, escritor, cronista, compositor, poeta, editor do Evoé! 

segunda-feira, 11 de novembro de 2019

Peixe inteligente é a mãe! Ailoveioú, Trump! - por Kelsen Bravos*


A Zeré e Ibraim, autores de "Tragédia no Fundo do Mar " (Assassinato do Camarão)


Sig não queria crer no que ouvia, pensou estar com súbita disacusia, quando recebeu a notícia de que a autoridade máxima daquele paiseco havia declarado achar peixes uma espécie capaz de, a cada situação inusitada de risco, elaborar estratégia de preservação por meio de raciocínio lógico dedutivo. Declaração - diga-se! - para minimizar os impactos mortais da contaminação dos mares da republiqueta, devido a um “misterioso” vazamento de toneladas de petróleo!

Superada a surpresa, Sig investiga o absurdo daquele ato de fala. Depois de apurada análise, conclui tratar-se de manifesto recalque por rejeição materna, ou seja: peixe inteligente é a mãe! É que Freud tudo explica! Ainda mais no caso em questão, a que se deve acrescentar como causa fundante o fato de aquela figura ter tido um pai durão, autoritário e ambicioso. Durão também no sentido econômico do termo, autoritário no sentido de não reconhecer a autoridade de outrem (e se for do gênero feminino… aí é que não dá a menor trela mesmo), ambicioso no sentido de sede de poder, de querer sentir-se superior, devido à muito baixa autoestima. O caso é grave e vem do berço!

Em criança, já era insaciável, consumia tudo com voracidade de famélico cardume de piranhas. É que, ainda bebê, o pai, por ciúmes da mãe, não o deixava mamar. Se insistia no desejo, levava um safanão, porque tinha de ser homem, porra! E engolisse o choro! A mãe - a verdadeira - foi ano a ano progressivamente anulada até sumir sem deixar lembrança a não ser a insaciedade, sempre contida à base de repelão. Desde então mamar por debaixo dos panos virou sua razão de ser.

Com o sumiço da mãe, apegou-se ao pai. Não era apego, era dependência, que aumentava a cada corretivo que levava, com direito a grito e punição física. Pleno de confusos sentimentos, cresceu oprimido, ameaçado e pobre. Queria a qualquer custo ficar rico, para livrar-se do pai satisfazendo-lhe a ambição. Experimentou várias profissões sem êxito. Quando tentou ser mineiro, sofria a humilhação a cada volta de mãos vazias à casa paterna. Para evitar a frustração do pai e os safanões, passou a trabalhar por debaixo dos panos.

Era a nulidade em pessoa. Sem competência para nada, apegou-se à vida militar. Durão, ele era só tiro, porrada e bomba. Sentiu-se com poder, mas o vazio existencial persistia. Insaciável, queria mais do que podia. Fez, por isso, carreira incerta. Por debaixo dos panos tantas fez o moço que foi expulso. Virou representante da causa dos soldados de vida vazia e armas na mão. Caiu na política, o mais suscetível lugar do por debaixo dos panos, e sua única conquista antes de ser comandante-em-chefe da republiqueta foi fazer dos filhos também políticos.

Sim, a despeito de seu recalcado sentimento pela figura feminina, fez filhos machos, fraquejou apenas uma vez quando gerou uma fêmea. Queria ser para os filhos o que fora para si o pai: algoz e mantenedor; o macho provedor do bando. O pai era o seu maior medo e a quem se submetia para sentir-se seguro. Não conseguiu no todo, pois queria ser disciplinador; mas era permissivo. As mães dos filhos, conseguiu fazê-las sumir paulatinamente, porque, por ciúme, ele não as deixava amamentá-los. Se os bebês choravam dava-lhes safanão, mas depois se arrependia. Transformara sua casa numa corruptela de quartel. Muito tiro, porrada e bomba, sem limites. Quando estava condescendente, ordenava: Paga uma completa de dez, porra! Comigo! Abaixo, acima… UM! Abaixo, acima, DOIS!...

A criançada caía na risada com o jeito por debaixo dos panos de ele fazer o apoio de frente. Ele, em vez de ter raiva e puni-los, também se divertia. É que os filhos lhe deram a oportunidade de viver uma infância que não teve, sobretudo, na hora de irem dormir.

Mãe ausente, na hora de dormir, o pai crocitava para os filhotes a fábula musical de Zeré e Ibrahim, que dá conta de uma tragédia no fundo do mar desencadeada pelo assassinato de um camarão. As personagens, peixes, crustáceos, moluscos (na versão original não havia molusco, o pai acrescentou porque odeia lulas e polvo), todas elas tinham ações humanas, não necessariamente inteligentes. O siri, o caranguejo e o guaiamum eram os mais queridos da família.

O caranguejo levou preso o tubarão. O siri, vejam só, sequestrou a sardinha para ela confessar. O guaiamum, por quem tinham total empatia, disse que para investigar daria um pau nas piranhas “lá fora” e garantia que elas iam ter de entregar o assassino! O pai ria ao dizer que nem que morram umas trinta mil, elas iam ter de entregar lula, porra!!!

Os filhos cresceram odiando e temendo os tentáculos de lula e “povo” (assim pronunciavam polvo). Eles e o pai sofriam pesadelos com tentáculos a lhes apertar. Acordavam sem ar. Às vezes, o pesadelo era uma alucinação coletiva. Todos corriam para colocar os capacetes militares para se protegerem - mais que isso! - para virarem o siri, o caranguejo, o guaiamum. Era comum, o amanhecer surpreender pai e filhos entrincheirados no quarto, aninhados, em posição fetal, com a carapaça militar na cabeça. Claro, por debaixo dos panos.

O recalque pela falta da mãe e pela negação do pai, o pavor sempre crescente, o fez confundir realidade com fantasia. Vivia o próprio delírio. Achava mesmo peixes inteligentes, pois, quando da fabulosa tragédia no fundo mar, a tainha se mandou, o peixe-espada se entocou, e o peixe-galo bateu asas e voou, então, claro, que os peixes, que são inteligentes, fugiriam da mancha de óleo.

Em intensa crise delirante, a figura do pai se transformava em enorme lula com poderosos tentáculos a lhe oprimir e tirar o ar. Para se acalmar evocava a figura do mais poderoso dos guaiamuns, o comandante-em-chefe dos Estados Unidos! Detentor da mais poderosa força bélica do mundo! Essa pátria era para ele uma mãe, mamaria nela até se saciar. Submissa - e não respeitosamente, prestava continência militar a ela. Via no presidente dos Estados Unidos a figura do bom pai, perto dele experimentava um estado gozoso, misto de medo e segurança. Por sentir-se confiante, tirava do por debaixo dos panos de si mesmo o gozo em que se transformara.

E foi como um gozo que declarou ao poderoso guaiamum o que sempre teve vontade de dizer ao próprio pai, mas a garganta travava. Em outra língua talvez fosse mais fácil. Pareceria ser por debaixo dos panos. E, no por debaixo dos panos do inglês, pronunciou para a paterna figura do guaiamum o que não conseguia pronunciar em português: “Ailoveiú, Trump!”
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*Kelsen Bravos - professor, escritor, compositor, poeta, editor do Blog Evoé!

sábado, 2 de novembro de 2019

Cuspiu no prato e na própria existência - por Kelsen Bravos*

Foi surpreendido com a definitiva viagem em que partiu na primeira estrela da manhã e nem era aquela a sua estrela guia. Demorou para cair na real. Até tomar consciência da nova situação, viveu a ilusão de sua vidinha cotidiana; para ele, vida de rei, tal qual a do poderoso leão alfa da savana africana. Sim, um poderoso rei leão! Era assim que se sentia e vivia tal ilusão, com ares aristocráticos, para amenizar sua dura rotina semanal.

Na realidade, seus hábitos eram simples, achava-se um generoso patrão, embora explorasse o trabalhador e de tudo fizesse para instituir de forma consuetudinária o logro da mais-valia, que as leis trabalhistas não o deixavam obter. Leis, aliás, para ele, antiquíssimas e desonestas com quem investia e movia a economia do país, pois quase não lhe deixavam opções contra os direitos dos trabalhadores (para que direito maior do que o de estar empregado?! E ele, a realeza, gerava empregos!). Essas leis trabalhistas lhe sonegavam os lucros! Sentia-se injustiçado! Pior, sentia-se perseguido pelas leis e pelos impostos! Passou a cometer uma série de contravenções fiscais e financeiras para potencializar cada vez mais o seu império. Ouvia a voz da própria consciência em reprovação: você virou um serial lawbreaker! Não tinha mais paz!

Daí desenvolveu uma mania de perseguição, um medo de ser lesado, pânico de ser descoberto, indiciado e condenado. O caso descambou de vez quando começou a ver em todos, e, sobretudo, nos plebeus - assim ele denominava os demais cidadãos; pois sim passou a ver em todos um inimigo, uma iminente ameaça capaz de cometer um latrocínio contra ele e os seus. Por tudo isso vivia em surto.

Não foi, portanto, à toa que se regozijou com as propostas de um candidato a presidente da república que confessava aos gritos que sim, sonegava mesmo! Que ia acabar com os impostos! Que ia liberar armas para os cidadãos de bem (ou de bens). Que bandido bom é bandido morto. Que vai matar “uns trinta mil e daí, porra?!” Que ia acabar com a mamata dos povos indígenas, dos quilombolas, dos LGBTs, das escolas com ideologia, com a presença de pobre na universidade, com aposentadoria, com a Amazônia. Devastaria a porra das árvores e, onde havia floresta, para salvar o país, incentivaria a mineração, exploraria o nióbio! A identificação foi tanta que se encantou e somou-se ao coro de “mito, mito, mito” em favor do candidato Messias B que, fazendo arminhas com as duas mãos, vociferava “Brasil acima de tudo e Deus acima de todos!”

Fascinado, nem reparou que o nome Messias B significa falso Messias; o lado B do Messias. É o contrário do Messias. Essa marca do mal estava explícita nas bravatas do candidato. Até no lema de campanha, o candidato pronunciava em vão o nome de Deus. De nada adiantava alertá-lo, até porque ao constatar que o guru do Messias B era o mesmo astrólogo que
numa entrevista lhe proporcionara a revelação profissional, perdeu de vez o senso crítico. Vivia a repetir que Olavo, o mesmo “gênio” que lhe iluminou o caminho, era o guru do Messias B.

Na entrevista, o guru dissera que o melhor negócio do novo milênio seria investir em impressoras 3 D. Ele vislumbrou a oportunidade e com determinação desprezou tudo que até então houvera conquistado e virou empresário da área gráfica. Claro que não tinha capital para investir em impressoras 3 D; mas, decidido, iniciou com uma pequena empresa. Beneficiou-se de todos os programas de incentivo a microempreendedores e a pequenas empresas criados pelo governo de Luís Inácio Lula da Silva. Não só dos incentivos, mas também das circunstâncias favoráveis do mercado criadas pelas excelentes relações internacionais geradas pelo governo petista.

De microempreendedor tornou-se um bem sucedido pequeno empresário; mas já se considerava um leão alfa da savana africana, tal qual o mascote do seu time de futebol do coração. Logo logo esqueceu dos compromissos com os programas de incentivo, desprezou tudo quanto era ético e passou a burlar todas as leis, as mesmas que lhe asseguraram o sucesso. Passou a cuspir no prato que comia. Que ingrato! E só para viver uma vida fingida como se fosse real.

A vida real e a fingida cada vez mais se misturavam. A sua situação lembrava a dimensão do poema Autopsicografia em que Pessoa diz que o poeta finge tão completamente que chega a fingir que é dor a dor que deveras sente. Aos domingos, pois, a realeza gostava de se fingir plebeu para
tão completamente misturado a eles degustar feito um gourmet a mais popular das paneladas do mercado público. Virou um hábito sagrado. E foi exatamente no ciclo dominical da centésima septuagésima primeira semana após a inesperada e definitiva partida na primeira estrela da manhã, que nem era a sua estrela guia, que aconteceu o fato que o fez começar a tomar consciência de estar na erraticidade.

Essa tomada de consciência, esse momento epifânico se deu no mercado público, depois de insistir no pedido da desejada panelada. Era em vão, pois lhe ignoravam. Quando pareceu ser atendido, sentou-se à mesa em frente a um dos habitués dominicais feito ele. Tentou entabular uma conversa, mas o outro não largava o celular, fotografou o prato enviou a foto, seguida de uma mensagem de áudio que não deu para ouvir direito. Achou que a atenção que dera ao outro o distraiu a ponto de agora o prato que era seu estar sendo devorado por um estranho. Que insolência!!!

Indignado tentou cuspir no prato alheio. Não conseguiu cuspir. Insistiu em vão. Isso lhe deu um estranhamento. Começou a ouvir vozes em ladainha. O que as vozes diziam, pareceram-lhe vagamente familiar: E agora? Já não pode beber, já não pode fumar, cuspir já não pode… Tapou os ouvidos em vão; não conseguia se tocar… a luz apagou..., o povo sumiu, olhou para o lado, o mercado sumira, ... sozinho no escuro… tentou gritar, tentou gemer, tentou acordar, mas percebeu que não dormia… fechou os olhos e a imagem de sua amada suplicante apareceu em sua mente. Concentrou-se nela, viu que estava em uma alcova, de camisola, segurava uma cueca sua.

Ele meneou a cabeça e abriu os olhos. Estava num quarto estranho em cuja parede um cartaz informava: “Centro Espírita Prazeres do Além: Viúvas, passem momentos de prazer com seus falecidos maridos. Importante trazer uma cueca do defunto”.

A ficha caiu, quando viu alguém vestido com sua cueca, a beijar sua amada que sofregamente correspondia… Ao tentar falar, ouviu a ladainha… está sem mulher, está sem discurso, está sem carinhotudo acabou, tudo fugiu, tudo mofouE agora... 

Sentiu uma lancinante agonia e foi abduzido dali por um pé de vento que aumentou o vozerio em ladainha … e agora, você? ... que é sem nome, que zomba dos outrose agora

JOSÉ! Gritou ele, ao lembrar do poema de Drummond que fora obrigado a ler na escola. O tempo ficou estático. Mas José, sem parar de marchar, sempre seguido pelo rei Leão, respondeu que sim era ele… E-eu… eu morri?!... Não há morte… você cuspiu na existência que consumiu… vai ficar a vagar na erraticidade… a não ser que esclareça alguém para não cometer o mesmo erro que você…

Dito o que era para ser dito, José seguiu marchando ninguém sabe para onde. E ele, o rei leão, estava de volta ao mercado, chegou bem na hora em que o habitué da panelada gravava mais uma mensagem de áudio: “E aí, Memé, você tá vindo?”... Daí entendeu sua missão para sair da erraticidade e começou a lhe soprar ao ouvido: “Sebrae, procure o Sebrae…”

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*Kelsen Bravos - professor, escritor, cronista, compositor, poeta, editor do Evoé!