segunda-feira, 11 de novembro de 2019

Peixe inteligente é a mãe! Ailoveioú, Trump! - por Kelsen Bravos*


A Zeré e Ibraim, autores de "Tragédia no Fundo do Mar " (Assassinato do Camarão)


Sig não queria crer no que ouvia, pensou estar com súbita disacusia, quando recebeu a notícia de que a autoridade máxima daquele paiseco havia declarado achar peixes uma espécie capaz de, a cada situação inusitada de risco, elaborar estratégia de preservação por meio de raciocínio lógico dedutivo. Declaração - diga-se! - para minimizar os impactos mortais da contaminação dos mares da republiqueta, devido a um “misterioso” vazamento de toneladas de petróleo!

Superada a surpresa, Sig investiga o absurdo daquele ato de fala. Depois de apurada análise, conclui tratar-se de manifesto recalque por rejeição materna, ou seja: peixe inteligente é a mãe! É que Freud tudo explica! Ainda mais no caso em questão, a que se deve acrescentar como causa fundante o fato de aquela figura ter tido um pai durão, autoritário e ambicioso. Durão também no sentido econômico do termo, autoritário no sentido de não reconhecer a autoridade de outrem (e se for do gênero feminino… aí é que não dá a menor trela mesmo), ambicioso no sentido de sede de poder, de querer sentir-se superior, devido à muito baixa autoestima. O caso é grave e vem do berço!

Em criança, já era insaciável, consumia tudo com voracidade de famélico cardume de piranhas. É que, ainda bebê, o pai, por ciúmes da mãe, não o deixava mamar. Se insistia no desejo, levava um safanão, porque tinha de ser homem, porra! E engolisse o choro! A mãe - a verdadeira - foi ano a ano progressivamente anulada até sumir sem deixar lembrança a não ser a insaciedade, sempre contida à base de repelão. Desde então mamar por debaixo dos panos virou sua razão de ser.

Com o sumiço da mãe, apegou-se ao pai. Não era apego, era dependência, que aumentava a cada corretivo que levava, com direito a grito e punição física. Pleno de confusos sentimentos, cresceu oprimido, ameaçado e pobre. Queria a qualquer custo ficar rico, para livrar-se do pai satisfazendo-lhe a ambição. Experimentou várias profissões sem êxito. Quando tentou ser mineiro, sofria a humilhação a cada volta de mãos vazias à casa paterna. Para evitar a frustração do pai e os safanões, passou a trabalhar por debaixo dos panos.

Era a nulidade em pessoa. Sem competência para nada, apegou-se à vida militar. Durão, ele era só tiro, porrada e bomba. Sentiu-se com poder, mas o vazio existencial persistia. Insaciável, queria mais do que podia. Fez, por isso, carreira incerta. Por debaixo dos panos tantas fez o moço que foi expulso. Virou representante da causa dos soldados de vida vazia e armas na mão. Caiu na política, o mais suscetível lugar do por debaixo dos panos, e sua única conquista antes de ser comandante-em-chefe da republiqueta foi fazer dos filhos também políticos.

Sim, a despeito de seu recalcado sentimento pela figura feminina, fez filhos machos, fraquejou apenas uma vez quando gerou uma fêmea. Queria ser para os filhos o que fora para si o pai: algoz e mantenedor; o macho provedor do bando. O pai era o seu maior medo e a quem se submetia para sentir-se seguro. Não conseguiu no todo, pois queria ser disciplinador; mas era permissivo. As mães dos filhos, conseguiu fazê-las sumir paulatinamente, porque, por ciúme, ele não as deixava amamentá-los. Se os bebês choravam dava-lhes safanão, mas depois se arrependia. Transformara sua casa numa corruptela de quartel. Muito tiro, porrada e bomba, sem limites. Quando estava condescendente, ordenava: Paga uma completa de dez, porra! Comigo! Abaixo, acima… UM! Abaixo, acima, DOIS!...

A criançada caía na risada com o jeito por debaixo dos panos de ele fazer o apoio de frente. Ele, em vez de ter raiva e puni-los, também se divertia. É que os filhos lhe deram a oportunidade de viver uma infância que não teve, sobretudo, na hora de irem dormir.

Mãe ausente, na hora de dormir, o pai crocitava para os filhotes a fábula musical de Zeré e Ibrahim, que dá conta de uma tragédia no fundo do mar desencadeada pelo assassinato de um camarão. As personagens, peixes, crustáceos, moluscos (na versão original não havia molusco, o pai acrescentou porque odeia lulas e polvo), todas elas tinham ações humanas, não necessariamente inteligentes. O siri, o caranguejo e o guaiamum eram os mais queridos da família.

O caranguejo levou preso o tubarão. O siri, vejam só, sequestrou a sardinha para ela confessar. O guaiamum, por quem tinham total empatia, disse que para investigar daria um pau nas piranhas “lá fora” e garantia que elas iam ter de entregar o assassino! O pai ria ao dizer que nem que morram umas trinta mil, elas iam ter de entregar lula, porra!!!

Os filhos cresceram odiando e temendo os tentáculos de lula e “povo” (assim pronunciavam polvo). Eles e o pai sofriam pesadelos com tentáculos a lhes apertar. Acordavam sem ar. Às vezes, o pesadelo era uma alucinação coletiva. Todos corriam para colocar os capacetes militares para se protegerem - mais que isso! - para virarem o siri, o caranguejo, o guaiamum. Era comum, o amanhecer surpreender pai e filhos entrincheirados no quarto, aninhados, em posição fetal, com a carapaça militar na cabeça. Claro, por debaixo dos panos.

O recalque pela falta da mãe e pela negação do pai, o pavor sempre crescente, o fez confundir realidade com fantasia. Vivia o próprio delírio. Achava mesmo peixes inteligentes, pois, quando da fabulosa tragédia no fundo mar, a tainha se mandou, o peixe-espada se entocou, e o peixe-galo bateu asas e voou, então, claro, que os peixes, que são inteligentes, fugiriam da mancha de óleo.

Em intensa crise delirante, a figura do pai se transformava em enorme lula com poderosos tentáculos a lhe oprimir e tirar o ar. Para se acalmar evocava a figura do mais poderoso dos guaiamuns, o comandante-em-chefe dos Estados Unidos! Detentor da mais poderosa força bélica do mundo! Essa pátria era para ele uma mãe, mamaria nela até se saciar. Submissa - e não respeitosamente, prestava continência militar a ela. Via no presidente dos Estados Unidos a figura do bom pai, perto dele experimentava um estado gozoso, misto de medo e segurança. Por sentir-se confiante, tirava do por debaixo dos panos de si mesmo o gozo em que se transformara.

E foi como um gozo que declarou ao poderoso guaiamum o que sempre teve vontade de dizer ao próprio pai, mas a garganta travava. Em outra língua talvez fosse mais fácil. Pareceria ser por debaixo dos panos. E, no por debaixo dos panos do inglês, pronunciou para a paterna figura do guaiamum o que não conseguia pronunciar em português: “Ailoveiú, Trump!”
________________
*Kelsen Bravos - professor, escritor, compositor, poeta, editor do Blog Evoé!

10 comentários:

  1. Bom dia, Cmte! Mais um excelente texto. Admiro sua habilidade com as palavras. Parabéns por Ailoveiú,Trump!

    ResponderExcluir
  2. Texto genial. Surpreendente como encaixou certinho com uma das pérolas do nosso cancioneiro. Coisa de gênio.

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Obrigado, Ledinha, meu bem-querer. tua sensibilidade é que é generosa e genial.

      Um beijo azul, querida. Evoé!

      Excluir
  3. Texto repleto anônimos. Realismo mágico? Creio que sim.

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Este comentário foi removido pelo autor.

      Excluir
    2. Caro Vicente Martins, esse "texto repleto anônimos" é intrigante. Seria uma forma de intertextualidade?

      Excluir
  4. Texto repleto anônimos. Realismo mágico? Creio que sim.

    ResponderExcluir
  5. Um dos mais belos e criativos que li este ano. Parabéns, Bravos!

    ResponderExcluir
  6. Vicente Martins, tua leitura e comentário me animam.

    ResponderExcluir