sábado, 2 de novembro de 2019

Cuspiu no prato e na própria existência - por Kelsen Bravos*

Foi surpreendido com a definitiva viagem em que partiu na primeira estrela da manhã e nem era aquela a sua estrela guia. Demorou para cair na real. Até tomar consciência da nova situação, viveu a ilusão de sua vidinha cotidiana; para ele, vida de rei, tal qual a do poderoso leão alfa da savana africana. Sim, um poderoso rei leão! Era assim que se sentia e vivia tal ilusão, com ares aristocráticos, para amenizar sua dura rotina semanal.

Na realidade, seus hábitos eram simples, achava-se um generoso patrão, embora explorasse o trabalhador e de tudo fizesse para instituir de forma consuetudinária o logro da mais-valia, que as leis trabalhistas não o deixavam obter. Leis, aliás, para ele, antiquíssimas e desonestas com quem investia e movia a economia do país, pois quase não lhe deixavam opções contra os direitos dos trabalhadores (para que direito maior do que o de estar empregado?! E ele, a realeza, gerava empregos!). Essas leis trabalhistas lhe sonegavam os lucros! Sentia-se injustiçado! Pior, sentia-se perseguido pelas leis e pelos impostos! Passou a cometer uma série de contravenções fiscais e financeiras para potencializar cada vez mais o seu império. Ouvia a voz da própria consciência em reprovação: você virou um serial lawbreaker! Não tinha mais paz!

Daí desenvolveu uma mania de perseguição, um medo de ser lesado, pânico de ser descoberto, indiciado e condenado. O caso descambou de vez quando começou a ver em todos, e, sobretudo, nos plebeus - assim ele denominava os demais cidadãos; pois sim passou a ver em todos um inimigo, uma iminente ameaça capaz de cometer um latrocínio contra ele e os seus. Por tudo isso vivia em surto.

Não foi, portanto, à toa que se regozijou com as propostas de um candidato a presidente da república que confessava aos gritos que sim, sonegava mesmo! Que ia acabar com os impostos! Que ia liberar armas para os cidadãos de bem (ou de bens). Que bandido bom é bandido morto. Que vai matar “uns trinta mil e daí, porra?!” Que ia acabar com a mamata dos povos indígenas, dos quilombolas, dos LGBTs, das escolas com ideologia, com a presença de pobre na universidade, com aposentadoria, com a Amazônia. Devastaria a porra das árvores e, onde havia floresta, para salvar o país, incentivaria a mineração, exploraria o nióbio! A identificação foi tanta que se encantou e somou-se ao coro de “mito, mito, mito” em favor do candidato Messias B que, fazendo arminhas com as duas mãos, vociferava “Brasil acima de tudo e Deus acima de todos!”

Fascinado, nem reparou que o nome Messias B significa falso Messias; o lado B do Messias. É o contrário do Messias. Essa marca do mal estava explícita nas bravatas do candidato. Até no lema de campanha, o candidato pronunciava em vão o nome de Deus. De nada adiantava alertá-lo, até porque ao constatar que o guru do Messias B era o mesmo astrólogo que
numa entrevista lhe proporcionara a revelação profissional, perdeu de vez o senso crítico. Vivia a repetir que Olavo, o mesmo “gênio” que lhe iluminou o caminho, era o guru do Messias B.

Na entrevista, o guru dissera que o melhor negócio do novo milênio seria investir em impressoras 3 D. Ele vislumbrou a oportunidade e com determinação desprezou tudo que até então houvera conquistado e virou empresário da área gráfica. Claro que não tinha capital para investir em impressoras 3 D; mas, decidido, iniciou com uma pequena empresa. Beneficiou-se de todos os programas de incentivo a microempreendedores e a pequenas empresas criados pelo governo de Luís Inácio Lula da Silva. Não só dos incentivos, mas também das circunstâncias favoráveis do mercado criadas pelas excelentes relações internacionais geradas pelo governo petista.

De microempreendedor tornou-se um bem sucedido pequeno empresário; mas já se considerava um leão alfa da savana africana, tal qual o mascote do seu time de futebol do coração. Logo logo esqueceu dos compromissos com os programas de incentivo, desprezou tudo quanto era ético e passou a burlar todas as leis, as mesmas que lhe asseguraram o sucesso. Passou a cuspir no prato que comia. Que ingrato! E só para viver uma vida fingida como se fosse real.

A vida real e a fingida cada vez mais se misturavam. A sua situação lembrava a dimensão do poema Autopsicografia em que Pessoa diz que o poeta finge tão completamente que chega a fingir que é dor a dor que deveras sente. Aos domingos, pois, a realeza gostava de se fingir plebeu para
tão completamente misturado a eles degustar feito um gourmet a mais popular das paneladas do mercado público. Virou um hábito sagrado. E foi exatamente no ciclo dominical da centésima septuagésima primeira semana após a inesperada e definitiva partida na primeira estrela da manhã, que nem era a sua estrela guia, que aconteceu o fato que o fez começar a tomar consciência de estar na erraticidade.

Essa tomada de consciência, esse momento epifânico se deu no mercado público, depois de insistir no pedido da desejada panelada. Era em vão, pois lhe ignoravam. Quando pareceu ser atendido, sentou-se à mesa em frente a um dos habitués dominicais feito ele. Tentou entabular uma conversa, mas o outro não largava o celular, fotografou o prato enviou a foto, seguida de uma mensagem de áudio que não deu para ouvir direito. Achou que a atenção que dera ao outro o distraiu a ponto de agora o prato que era seu estar sendo devorado por um estranho. Que insolência!!!

Indignado tentou cuspir no prato alheio. Não conseguiu cuspir. Insistiu em vão. Isso lhe deu um estranhamento. Começou a ouvir vozes em ladainha. O que as vozes diziam, pareceram-lhe vagamente familiar: E agora? Já não pode beber, já não pode fumar, cuspir já não pode… Tapou os ouvidos em vão; não conseguia se tocar… a luz apagou..., o povo sumiu, olhou para o lado, o mercado sumira, ... sozinho no escuro… tentou gritar, tentou gemer, tentou acordar, mas percebeu que não dormia… fechou os olhos e a imagem de sua amada suplicante apareceu em sua mente. Concentrou-se nela, viu que estava em uma alcova, de camisola, segurava uma cueca sua.

Ele meneou a cabeça e abriu os olhos. Estava num quarto estranho em cuja parede um cartaz informava: “Centro Espírita Prazeres do Além: Viúvas, passem momentos de prazer com seus falecidos maridos. Importante trazer uma cueca do defunto”.

A ficha caiu, quando viu alguém vestido com sua cueca, a beijar sua amada que sofregamente correspondia… Ao tentar falar, ouviu a ladainha… está sem mulher, está sem discurso, está sem carinhotudo acabou, tudo fugiu, tudo mofouE agora... 

Sentiu uma lancinante agonia e foi abduzido dali por um pé de vento que aumentou o vozerio em ladainha … e agora, você? ... que é sem nome, que zomba dos outrose agora

JOSÉ! Gritou ele, ao lembrar do poema de Drummond que fora obrigado a ler na escola. O tempo ficou estático. Mas José, sem parar de marchar, sempre seguido pelo rei Leão, respondeu que sim era ele… E-eu… eu morri?!... Não há morte… você cuspiu na existência que consumiu… vai ficar a vagar na erraticidade… a não ser que esclareça alguém para não cometer o mesmo erro que você…

Dito o que era para ser dito, José seguiu marchando ninguém sabe para onde. E ele, o rei leão, estava de volta ao mercado, chegou bem na hora em que o habitué da panelada gravava mais uma mensagem de áudio: “E aí, Memé, você tá vindo?”... Daí entendeu sua missão para sair da erraticidade e começou a lhe soprar ao ouvido: “Sebrae, procure o Sebrae…”

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*Kelsen Bravos - professor, escritor, cronista, compositor, poeta, editor do Evoé! 

2 comentários:

  1. Excelente texto. Incrível capacidade de conectar palavras, assuntos e situações de público conhecimento. Não conhecia o notável escritor e cronista em que o então colega de caserna Kelsen se transformou. Daí meu orgulho em tê-lo como amigo. Parabéns!

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    1. Querido Alberto, sou muito grato por tua amizade. É muito bom te ter como leitor. Evoé!

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