a Freud, Sartre, Lacan, Agepê
aos cantor e compositores da música General da Banda:
Blecaute, Tancredo Silva, José Alcides e Sátiro de Melo
Sensação de queda abissal, ou afogamento, ou perseguição, ou mesmo a de - quando se deixa de fumar - perder a respiração por causa da fumaça do cigarro... quem nunca acordou em sobressalto pela madrugada por causa de uma sufocante sensação de angústia? São tantas as formas de o nosso inconsciente nos proporcionar relaxamento. Uma delas é esta de tensionar o sono a ponto de nos acordar movido por estresse e depois, ao tomar ciência da situação, sermos envolvidos por profundo alívio que nos pacifica e nos aninha no sono dos justos.
A ciência afirma que ao dormir toda vez se sonha. O sono e o sonho são objetos das mais diversas análises. Do ponto de vista místico, a literatura cabalística sobre o significado dos sonhos é sem fim. Do ponto de vista científico, na psicanálise, por exemplo, Freud dedica capital importância aos sonhos e conclui que ele realiza desejos. Sartre diz que o homem dorme e sonha para satisfazer os seus desejos e acorda para realizar os seus sonhos. Lacan diz que só acordamos para continuar sonhando.
Acontece que muito pouco lembramos do que sonhamos; mas, a julgar verdadeira a afirmação sartreana, estamos todos, quando em vigília, a realizar o que sonhamos e isso nos dá prazer, alívio e paz de espírito. É, portanto, necessário, imprescindível, dormir, e bem. Mas a considerar Lacan, os devaneios, a fantasia, a angústia da vigília, consciente ou não, é também um sonhar. Então, o desejo de dormir, mais do que a necessidade, é um fator bastante considerável e carregado de sentidos.
Existe, entretanto, quem, embora sinta-se dominado pelo desejo de dormir, não consiga fazê-lo. É o caso daquele ser sombrio para quem o sono e o sonhar há muito não acontecem. Talvez por isso se atole numa ideia fixa, por ter cristalizadas as emoções mais pavorosas, em razão de não aliviá-las nem em sonho, porque não dorme. Acordado, vive seus pesadelos e não relaxa nunca. Vê em todos os desconhecidos uma ameaça, desconfia até dos amigos mais próximos. Vivencia a sufocante angústia acordado, desde o levantar ao amanhecer até a hora de deitar para (tentar) dormir.
Na hora de dormir, confere a arma sob o travesseiro, a outra na mesa de cabeceira e a da cintura. Longe delas não consegue nem deitar. Com elas, pelo menos tenta cochilar; é, porém, em vão. A acidez do estômago, o refluxo, a dor no fígado, o inchaço no pâncreas, a próstata inflamada, a incontinência urinária, a latejante e dolorosa hemorroida não o deixam em paz. Tal situação vem sendo agravada desde a colocação da faixa auriverde tiracolar que transformou um mito em comandante-em-chefe de uma republiqueta.
Vive transtornado por não conseguir dormir. Sonolento nele, só o raciocínio, a inteligência. O resto de si é uma insônia só. Que procure um especialista, recomendam os mais chegados, mas ele não confia em ninguém, vê traição na proposta.
Após incontáveis tentativas, a Menina de Cabelos Longos conseguiu convencê-lo a se tratar - assim chama a sua mulher, inspirado pela música de Agepê, não só por suas religiosas madeixas mas também porque sua presença o faz desejar comer, beber, dormir e não pagar; pois sim, ela o venceu pelo cansaço e fê-lo se consultar com um especialista ligado ao seu líder espiritual, pastor Mequetrefe, e ressaltou que foi indicado pelo Asqueirós, o sabe-tudo, seu homem de confiança.
O tal profissional dizia-se especialista em Lacan; mas era de araque, fazia mesmo era lacanagem. Com o conhecimento que tinha, seria bem capaz de ser convidado a assumir algum ministério do governo. Talvez o da Conversa para Boi Dormir.
Logo na primeira sessão, o especialista levou o paciente a concluir que o seu gostar da música Menina dos Cabelos Longos, de Agepê, não tinha nada a ver com a esposa, mas com o recalque contra nordestinos, nortistas e com a necessidade vital de usar armas.
O fato se deu pela insistência do paciente em deixar claro que só aceitou conversar com ele por causa da Menina de Cabelos Longos e também porque se negou a deitar num divã, preferiu ir para sua alcova, porque lá estavam suas armas fiéis.
Conversa vai, conversa vem, ele pediu que cantasse pelo menos um trecho da música e dela só lembrou de “eu sei que no nordeste tem cabra da peste /e no norte tem faca de corte e calor/ mas vou levar cheio de bala/ um trezoitão [pá-pá-pá-pá] na mala e um ventilador. [Porra!]”.
Daí, revelou a realidade, não era por causa da Menina de Cabelos Longos que gostava da música, mas pelo trezoitão na mala. Em epifânico êxtase, gritou aliviado que era isso aí, era isso mesmo [porra!], era pelo trezoitão, pá-pá-pá-pá! Você é bom mesmo, vai acabar ganhando um ministério [Porra]!
Naquele dia conseguiu mais do que um cochilo, chegou a dormir e sonhar; mas o sono acabou em angústia, viu-se sufocado por alguma coisa que lhe prendia o pescoço e gritava repetidas vezes a palavra “calma” com a letra L bem pronunciada e um som de R no final: “callllmar”...
Ao revelar o sonho de angústia para o especialista em lacanagem, este fez cara de estou entendendo e pronunciou calllmar bem interrogativo. Pediu que repetisse várias vezes tentando imitar a voz do sonho:
Calllma, calama, calama, calamar, CALAMAR! CALAMAR! CALAMAR! CALAMAR!... repetiu a ponto de perder o sentido de tudo ao redor, como em transe hipnótico.
No alto da sua sapiência lacanagemética, o terapeuta perguntou qual era o seu maior medo. E afirmava, você tem um medo colossal. Qual é o seu maior medo? Responda para si mesmo! Admita para si mesmo! Quem estava sufocando você no sonho?
O paciente começou a se contorcer em surto, tentava livrar o pescoço de um aperto, e também tentava livrar a cintura, as pernas, um braço, se contorcia, a coisa que o envolvia parecia ter vários braços. Entrava em desespero ao tentar sem êxito alcançar os trezoitões. Já quase sem ar, num fio de voz, conseguiu falar: calamar, calamar, calamar…
Lula! - exclamou o terapeuta. É uma lula-colossal! Calamar é sinônimo de lula-colossal. Ao ouvir o nome Lula, o paciente adotou posição fetal, foi-se encolhendo, dobrando-se sobre si mesmo até travar, e cair num soluçante choro aliviador. O terapeuta o envolveu e lentamente o trouxe do transe. Estava completamente extenuado e feliz, porque aliviado.
Dormiu profundamente naquela noite. Na sessão seguinte, estava bem tranquilo. Sonhara com a lula-colossal sendo dominada por Moros - o deus da sorte, do destino e da morte, um demônio (daemon), segundo a mitologia grega. Moros me salvou, porra! - exultou em pleno alívio.
Feliz da vida começou a cantarolar a música General da Banda: "Chegou o general da banda, êh-êh... mourão, mourão, vara madura que não cai/mourão, mourão, mourão, cutuca por baixo que ele vai..."
Mas o especialista em lacanagem ao ouvir a música lhe revelou algo muito mais grave, disse-lhe que o nome científico de lula-colossal é Mesonychoteuthis hamiltoni.
A revelação lhe trouxe acidez do estômago, refluxo, dor no fígado, inchaço no pâncreas, próstata inflamada, incontinência urinária e intestinal, seguida de latejante e dolorosa hemorroida, por fim o colocou num surto irreversível, depois de gritar: HAMILTONI?! Porrrrrr...
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*Kelsen Bravos - professor, escritor, cronista, compositor, poeta, editor do Evoé!
Hahaha fui até ouvir a música do Agepê para conhecer [porra].
ResponderExcluirHahaha fui até ouvir a música do Agepê.
ResponderExcluirE a General da Banda? Ouça porque não se deve ignorar uma lacanagem, ademais a principal função de vice numa republiqueta é conspirar.
ResponderExcluirObrigado, meu querido irmão Edgar Borges, Poeta dos Melhores!
Que intimidade com as palavras, amigo! Admirável seu controle sobre elas e a forma inteligente como as insere no texto,deixando para nós leitores a incumbência de identificar, o personagem nele tão bem retratado. Parabéns!
ResponderExcluirQue intimidade com as palavras, amigo! Admirável seu controle sobre elas e a forma inteligente como as insere no texto,deixando para nós leitores a incumbência de identificar, o personagem nele tão bem retratado. Parabéns!
ResponderExcluirObrigado pela leitura e gentil comentário. Gostaria muito de, ao te agradecer, pronunciar teu nome.
ResponderExcluirKelsen Bravos