quarta-feira, 21 de fevereiro de 2018

Na bodega... de *cócoras com eles - CHICO ARAUJO*

Pois ele chegou chegando, como dizem hoje alguns mais jovens que eu.

- Como, exatamente?

- Primeiro entrou sem pedir a mínima licença, sem desejar boa tarde a ninguém, batendo as botas firme no chão como se soldado fosse e falando alto talvez para que toda a vizinhança da rua ouvisse a sua ordem:

- Bota aí um copo de pinga pra mim que hoje eu tô é arretado da vida e vou começar é pela quente.

- E o seu Luís serviu, invocado daquele jeito no estilo seu Lunga?

- Ia perder a venda? Também acho que seu Luís ficou foi meio assustado com aquele desconhecido chegando e vociferando. Seu Luís nem gosta de perder venda e também não gosta de se arriscar, né?

- E aí, no que deu?

- No que deu? Os dez que estávamos no bar paramos o que fazíamos e falávamos e ficamos olhando o desconhecido. Parecíamos onze apalermados, incluindo aqui o próprio seu Luís. O grandalhão nem botou pro santo; verteu o copo todo de uma talagada só e nem cuspiu nem avermelhou os olhos.

- Eita!

- Pois foi. Todo mundo atento a ele, ele percebeu. No silêncio, olhou pra cada um alguns segundos quase exatos, meio que assuntando, estudando. Aí olhou de novo pro seu Luís:

- Como é seu nome, bodegueiro?

- "Bodegueiro"? Chamou seu Luís de "bodegueiro"? Deu confusão...

- Deu não. Quem tava ali também ficou de boca aberta pela passividade do seu Luís, ele que não é de levar desaforo pra casa e acha que tudo é desaforo. Depois eu acho que entendi a falsa tranquilidade do "bodegueiro": ele estudava o desconhecido mal-educado; não sabia até onde um e outro poderia ir sem se criar problema sério.

- Luís. Todos me chamam de "seu Luís", ninguém aqui me chama de bodegueiro.

- Hummmm... Pois "seu Luís bodegueiro", eu sou Carlão. Só Carlão. E eu quero que o senhor me sirva agora uma dose da mesma pinga, mas só dois dedos, não mais que dois dedos desses meus, exatamente.

- O tal Carlão botou os dedos médio e indicador juntos colados ao copo e esperou que o seu Luís despejasse a cachaça. E antes de beber ordenou:

- Ô "seu Luís bodegueiro", bote aí uma dose igual a esses meus dez amigos que estão olhando pra mim. Bote aí que eu pago.

- Seu Luís encarou o tal Carlão e mandou o seguinte recado que fez todo mundo tremer um bocadinho, menos o desconhecido:

- Vou botar. Mas se me chamar mais uma vez de bodegueiro, o senhor sai do meu estabelecimento à força.

- Olhe, foram alguns segundos de silêncio, os dois se encarando, os outros dez observando os dois, até que o desconhecido deu uma sonora gargalhada e desculpou-se:

- Bem, bem, "seu Luís", o senhor me desculpe. Não queria aborrecê-lo. Se é dono de bodega e não gosta de ser chamado bodegueiro, não serei eu a chamá-lo assim. Então, seu Luís, pode abastecer o copo dos meus novos amigos com a bruta?

- Posso... Se eles quiserem. Se não quiserem, não pingo nem uma gota.

- Olhe, naquela hora pensei que as coisas fossem esquentar um bocadinho mais, que já estavam meio esquisitas. Ali no seu Luís, você sabe, tudo sempre foi na paz, nenhuma confusão até hoje, apesar da brutalidade do próprio dono. Mas naquela hora o negócio tava ficando esquisito demais. O tal Carlão que já se declarava amigo de todos os presentes olhou de novo cada um e jogou uma pergunta meio esquisita:

- E então, alguém aí vai recusar essa pinga?

- No novo silêncio que veio todo mundo olhou todo mundo, até eu me adiantar e dizer que aceitava a dose. Depois de mim todo mundo aceitou. Seu Luís, muito sério, botou as doses, todo mundo bebeu a que lhe coube e momentos depois o que se viu no bar foi um clima mais tranquilo, conversaria animada, gargalhadas e o tal do Carlão praticamente tomando conta de toda a falação, vozeirão que encobriu a fala dos outros. De repente ele olhou pro seu Luís e determinou:

- Seu Luís, o senhor agora suspenda a cachaça e sirva cerveja pra nós. Se preocupe não que eu pago.

- Eu olhei pro seu Luís e vi que ele me encarava, como que me dizendo de sua desconfiança daquele sujeito aparecido do nada. Um sujeito diferente de nós ali não só na voz e na arrogância sem disfarce, mas também nas roupas, nas botas, no corte de cabelo, no aparado da barba. O seu Luís foi colocando as garrafas de cerveja na longa mesa onde o Carlão abrigou todos e foi nessa hora que ouvimos a declaração impactante:

- Meus amigos, já percebi que vocês não se ligam muito em política. Já faz mais de uma hora e meia que estamos aqui e ninguém me reconheceu. Pois eu me apresento: sou Carlos Lopes de França – Carlão, para os amigos – e sou deputado federal.

- E isso é bom ou é ruim pra nós? Sei que ser deputado federal é muito bom pro senhor e pra sua família, mas é pra nós? Isso é bom, ou ruim pra nós? – levantou a voz um surpreso e sincero seu Luís.

- O tal deputado olhou firme pro seu Luís alguns segundos e falou não só para ele, mas para todos nós: Estou de mudança com minha família para essa cidade que possui melhores ares para a saúde de minha filha. Isso foi muito divulgado pela imprensa. Estou surpreso que não saibam disso. E afirmo estar à disposição de vocês para o que desejarem e precisarem.
- Houve novamente um breve silêncio, quebrado dessa vez pelo próprio seu Luís:

- Se é assim, senhor deputado Carlão, já posso trazer a próxima rodada de cervejas?

- O Carlão abriu o sorriso o mais aberto que pode e em meio a uma larga gargalhada disse apenas "Claro seu Luís, claro. Traga logo a próxima rodada de cervejas que estão bem no ponto do gelado. Ah, e veja também uns tira-gostos aí que o senhor tenha, que até agora não comemos nada".

- Eu tenho certeza de que vi o seu Luís sorrindo. Foi um sorriso rápido, bem ligeiro, mas eu tenho certeza de que vi. E eu nem me lembrava de que ele era capaz disso... Mas até agora não tenho certeza de que o sorriso tenha sido sincero, ou se foi irônico, ou se foi apenas desconfiança...
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*Chico Araújo - professor, poeta, contista e compositor, publica toda quarta-feira no Evoé! O título "Na bodega... de cócoras com eles" foi escrito em 11/02/2018. Leia mais Chico Araújo em Vida, minha vida...

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