segunda-feira, 19 de fevereiro de 2018

A BARRICA OU O BARRICA? NO CEARÁ TEM DISSO, SIM! - Túlio Monteiro*


Barrica: Óleo sobre tela - sem título

Abri o dicionário na busca aleatória de uma palavra iniciada com a letra B – como reza o projeto editorial de Kelsen Bravos para escrevermos um Abecedário de Crônicas – e me deparei com o substantivo feminino BARRICA, que nada mais significa para o “Aurélio” senão um tonel ou pipa pequena, de madeira, destinada a armazenar mercadorias em especial líquidos.

Imediatamente me remeti à história das Artes-Plásticas cearenses e voltei no tempo em época que eu trabalhava na FUNCET – Fundação de Cultura, Esporte e Turismo, àquele período regida pelo hoje saudoso poeta Barros Pinho, enquanto Fortaleza tinha como prefeito o médico Juraci Magalhães, na sua administração de 2001 a 2004. Bons tempos aqueles.

Lembro que a FUNCET estava instalada na rua Pereira Figueiras, número 4 e todos os eventos culturais de Fortaleza eram centralizados e decididos por lá. Eu, particularmente, era diretor da Galeria Antônio Bandeira e do Memorial Sinhá D’Amora, situados à rua Conde D’Eu, 560, prédio do antigo Mercado Central, então recuperado sob o projeto do arquiteto cearense Pepe Capelo como praça cultural coberta. Infelizmente, hoje sob a tutela do CCBNB – Centro Cultural Banco do Nordeste do Brasil, que tratou de remover de lá tanto a Galeria, quanto o Memorial, tão logo assumiu a direção do local.

Pois, bem! Mas de onde surge a pergunta que encabeça esta crônica? Eu respondo: Simples. Para além-Ceará, barrica é a barrica,  aquele substantivo comum feminino; mas para o Ceará e do Ceará para o mundo é o Barrica, substantivo próprio, cujo significado encapsula a arte pintora, ceramista, restauradora e desenhista, e representa o nome Guilherme Clidenor de Moura Capibaribe, homem nascido em 1913 no Crato e que viveu até o ano de 1993, quando se foi em Fortaleza. Clidenor adorava ser chamado de “Barrica” desde muito cedo por conta de ser gordinho e relativamente atarraxado, eis porque surgiu o nome que fez tal palavra deixar de ser substantivo feminino para nós e para a Cultura do Ceará. 


A importância de Barrica para o Ceará associa-se a de seus contemporâneos. Quando garoto aprendeu com o fotógrafo Valter Feliciano a técnica de pintar retratos e com o pintor e crítico de arte Carlos Cavalcante estudou pintura. Conviveu com os pintores Gerson Faria (1889 -1943), Pretextato de Bezerra (o TX) - autor do primeiro quadro modernista pintado no Ceará em 1936, fato que influenciou a tendência moderna de Barrica - e Otacílio de Azevedo (1896 - 1969).

Já homem feito, Barrica foi corresponsável por um divisor de águas nas artes cearenses quando juntou-se a nomes do porte de Antonio Bandeira (1922 - 1967), Aldemir Martins (1922 - 2006), Jean-Pierre Chabloz (1910 - 1984) e Estrigas (1919 - 2014) e fundou o primeiro grande movimento das Artes-Plásticas cearenses em 1941, e participou febrilmente do surgimento do agregador Centro Cultural de Belas Artes (CCBA), mais tarde transformado na Sociedade Cearense de Artes Plásticas (Scap), em 1944, que deu origem ao Salão de Abril de Artes Plásticas, hoje sexagenário.

Pois bem de novo! Mas o que tem a ver ter surgido do labirinto de minhas lembranças o tempo  em que ocupava um cargo de confiança na FUNCET? Eu respondo:  Complexo! É que logo na entrada daquela FUNCET, quem chegasse se deparava com um belíssimo armário todo construído em vidro contendo os pincéis, cavaletes, paletas, tubos de tintas e o último quadro – uma “marinha” ainda por ser terminada – do pintor Barrica. Eram os seus objetos de trabalho quando faleceu.

Lembro que quando a segunda prefeita de Fortaleza eleita assumiu, a Direção que eu ocupava  passou a não me pertencer mais. Chegou janeiro de 2005 e eu estava a passar todos os processos, regulamentos dos Salões de Abril dos Novos e Zé Pinto de Escultura, Memorial Sinhá D’Amora e, por fim, o acervo de quadros e esculturas contidos na FUNCET para uma moça quem me sucederia.

Relembro que fiz uma lista reunindo tudo o que ficava sob minha tutela, inclusive o acervo de nosso Barrica, quando a tristeza que me bateu machucou muito. Uma vez que havia posto os pés no chão e tomei consciência de que a equipe que eu gerenciava nunca mais iria se reunir novamente em sua completude. Saí de uma forma sincera e definitivamente, trancando a fechadura e pondo a chave por debaixo da porta, para não pensar em uma volta... Passaram-se uns dois anos até que eu tivesse coragem de voltar ao prédio da FUNCET, quando decidi que era hora de saber se tudo o que havia por lá havia sido conservado.

Surpresa!

Mal pus os pés na entrada, já me deparei com uma parede cor de gelo no lugar de onde antes repousavam as relíquias de Barrica. Busquei saber imediatamente o que havia ocorrido e recebi como resposta que as mesmas haviam sido “removidas” para dar mais espaço ao local. Aquilo doeu, minha gente! Isso porque não se sabe até hoje, quase 15 anos decorridos, onde foi parar tal acervo. Das coisas que Barrica deixou antes de partir nunca mais se soube e a última notícia que tive é a que seus descendentes haviam entrado com um processo para recuperar o que pudesse. Uma flagrante constatação de como parte da memória cultural do estado do Ceará está deixando de existir.

Fico por aqui, crendo estar cumprindo com o desafio lançado pelo escritor e agregador de talentos Kelsen Bravos. Quarta-feira é a vez de Chico Araújo!
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*Túlio Monteiro - Escritor e crítico literário, publica todas as segundas aqui no Evoé! Leia também Literatura com Túlio Monteiro.

2 comentários:

  1. Caríssimo pesquisador escritor, o que doi mesmo nesse seu relato emocionado e porque não dizer emocionante é saber quão, desrespeitados são nossos artistas e sua obras. E pensar que tudo poderia ter sido colocado "numa barrica" e ser transportado para um museu (se é que existe museu cultural na nossa loura desposada do sol)para se perpetuar na história. Mas bravo, com abecedário ou não, vai cumprindo teu mister de nos deliciar com relatos históricos tão contundentes...agora o que causa mais espécime.. foi retirar "obras de arte para sobrar espaço" , espaço esse que deve ter faltado na cabeça da Prefeita que sucedeu o Juraci Magalhães...

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  2. Caro Túlio Monteiro, Clauton Rocha está certíssimo em seu comentário: a crônica de Túlio Monteiro nos põe diante da História, uma História de Arte contada com sentimento genuíno de perda, saudade e indignação. Como leitor, agradeço.

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