sexta-feira, 23 de fevereiro de 2018

Boemia, Benfica, Belchior, Bienal - Kelsen Bravos*

Era o nono setembro da primeira década deste milênio. Gosto muito de setembro. Inaugura os bê-erre-ó-brós do ano; mas ainda tem a brisa amena de fim de inverno, algo parecido com o fim de outono e início da primavera no resto do mundo; não aqui, pois, no nosso Ceará, de modo amplo, há duas estações apenas, os nove meses de sol e os três meses de chuva. Se a quadra das águas é boa, o clima agradável permanece forte em agosto e vai até meados de setembro. Fortaleza fica, então, um paraíso.

Caminhar à beira-mar, nos fins de tarde até o chegar da noite, nesses agosto e setembro, proporciona sensação inesquecível de tão boa, fica fazendo parte da gente. Alguns só vão saber disso quando, bem longe daqui, derem por falta de alguma coisa em si mesmo. Vão ficar numa agonia de um num sei quê, até perceberem que a razão desse aperreio tem a ver com a falta em si da maresia aspergida pelo vento leste e o quebrar das ondas durante a caminhada na praia, sob o sol ameno das dezesseis até o sol-posto, com direito à água de coco geladinha, adoçada pelo contraste das gotas salgadas das brumas de espumas dos verdes mares bravios da terra natal.

O pôr do sol nos abduz e depois nos devolve a nós mesmos bem melhores. Uma experiência e tanto. Ela se potencializa, multiplica-se, torna-se plural, caso se esteja em muito boa companhia; e, se acontecer aquele hum-hum-hum-hum-hum... da canção Terral de Ednardo, ... aí tudo fica eterno.

Pois nesse nono setembro deste milênio, as meninas da Confraria do Café, nome de uma ação cultural - um bate-papo - que ocorria no espaço do café da extinta Livraria Lua Nova, me convidaram para falar de Boemia. Um profano sagrado tema para mim. Topei na hora.

Lembro delas avexadas com a pré-produção, se eu ia precisar disso e daquilo ou se num seria bem assim, seria assado. Eu lhes dizia sempre a mesma coisa: levarei uns textos, uns livros e o espírito boêmio. Levarei boêmios.

Acredito na simplicidade das coisas e na intensidade dos diálogos, mediados pela poesia. Queriam porque queriam saber do conteúdo e se o dito ia ser feito. Disse-lhes a mesma coisa, aliás, acrescentei um não sei. Quais os recursos vai usar? Gente. - eu respondia.

Ficavam num bem-humorado mas... num reticente ãh?!, num "Oi, como assim?!" de hoje (engraçado, hoje, até as falas, as expressões, os mungangos são carimbados, tudo igual de norte a sul do país golpeado...) A expectativa delas me deixou curioso. Lindas todas elas, cada uma a seu jeito; mas "cúmplices". O que estariam a preparar?

Chegou o dia, tive de abreviar minha caminhada boêmia à beira-mar. Rumei, sem me deixar abduzir pelo sol-posto, para um dos mais boêmios bairros de Fortaleza, o Benfica, mais precisamente o sonhado e boêmio PCdoB - Polo Cultural do Benfica, nosso Parnaso.

Quando entrei no Café que ficava no pavimento superior da Livraria Lua Nova, encontrei um cenário, segundo elas, boêmio. Capas dos discos do Waldick Soriano e congêneres, vitrolas com os vinis a tocar. Umas meninas com violões sentadas no chão e garrafas de bebida ao lado... elas caricaturaram como ninguém a boemia e os boêmios. A trilha sonora trazia Garçom, de Reginaldo Rossi. Era assim a interpretação delas da boemia; mas, me informaram, o convidado ilustre era eu, queriam me ouvir. Eu como convidado adorei tudo aquilo, dialogar é muito bom. Estava ali para isso.

Daí depois de chegar, sentar, ser apresentado, quis saber: Quem for boêmio ou boêmia, por favor levanta o braço. Fosse uma votação, a boemia estaria eleita por aclamação. Ao final do encontro, fiz a mesma pergunta, o número de adeptos reduziu bastante.

Falei que estávamos em um belo lugar boêmio, pois o lugar da boemia é onde o boêmio está. Costumo dizer que boemia é epifania que se constitui na gente. Ela está, portanto, em todos lugares e em lugar nenhum.

 Pedi que entendessem por boêmios aqueles que são contestadores, que têm o afã da liberdade, a emoção não lhes cabe em si, estão sempre - por mais que contidos - a transbordar de tristeza, de alegria, de inconformismo. Idealistas, por isso desconcertados do padrão. Daí a avidez com que vivem. Uma gente que por não caber em si reverbera arte e contestação em forma de poesia, música, dança, pintura, teatro, manifestos, política, enfim, na melhor acepção da palavra.

Por conta da intensa profusão de ideias, decorrentes dos infinitos questionamentos, não conseguem dormir, não cabem em si e buscam os encontros, buscam a noite, têm sede - uma imensa sede! - não a de vinho, mas de justiça, de liberdade. Daí a rebeldia, não aquela sem causa, mas a consequente rebeldia de, por exemplo, fazer o Polo Cultural do Benfica ser uma realidade, liberdade em expressão e expressão de liberdade.

Não podemos confundir boemia com a banalização da busca de satisfação, coordenada por interesses consumistas, seja de moda, de jeito igual de falar, de entorpecentes ou quaisquer drogas. Uma geração inteira a sublimar a insatisfação saciando os instintos, passando de homem a lobisomem e de lobisomem a lobo de si mesmo e da humanidade. A quem interessa uma juventude bêbada, sem causa, sem rumo?

Os boêmios somos resilientes, somos da estirpe que ficou de fora da Arca de Noé, mas tamanho é o nosso apego à Vida que chegamos a nado. Se por vezes um de nós esteve na segurança da Arca, enfrentou a sua imposição contra a livre expressão e a liberdade de ser, questionou a limitação de comportamento, a total anulação da idiossincrasia, pulou de volta ao revolto mar para viver todos os riscos das braçadas libertas.

Liberdade! Essa utopia nos move e cobra caro, mas sem lutar por ela melhor nem existir. Falei isso e falei que em vez da bebedeira melhor se embriagar de uma causa social, em vez de brincar de sofrência, melhor pisar no quente asfalto do dia a dia, em vez de fazer arte sem vivência, melhor viver o Cântigo Negro de José Régio, melhor ainda se alucinar e delirar com as experiências das coisas reais, como nos ensinou Belchior, se jogar no dilúvio da vida com toda coragem e medo.

Então li Vinícius, Antônio Maria, Airton Monte, citei Alfonsina Storni, Noel, Vessillo Monte, Lira Neto, Karlo Kardozo (ali presente), Ricardo Guilherme, Linda Dias, Ítalo Castelar, Baudelaire, Carlos Emílio Corrêa Lima, Fernanda Meireles, fosse hoje incluiria Vander Lee, Alexandre Lucas, Efigênia Alves, Inês Pinheiro Cardoso, Ivânia Maia, Everthon Damasceno, Telma Pacheco, Evaldo Lima, Sílvia Moura, Ricardo Kelmer, Lidiane Moura, Raquel Gadelha, Paulo Maranhão, Andrea Vasconcelos, Gláucia Lima, Gero Camilo, Cláudio Ivo, Lúcio Ricardo, Cleudene Aragão, Fabiano Piúba, Mileide Flores, Lourival Veras, Karla Gomes, Klévisson Viana, Marcus Rocha, Ellis Mário, Teddy Williams, Adriana Calaça, Almir e Júlia, Elias, Mara Monteiro, Marcos Renato Silva, Zé Bocca, Benita Prieto, Rosana Mont'Alverne, Elvira Nadai, Ruby Araújo, Nina Simone, Régis Freitas, Tino Freitas, Nelson Augusto, Túlio Monteiro, Chico Araujo... o tempo era pouco.

A energia presente na Confraria "Boêmia" do Café estava muito boa e intensa. Por fim, refiz a pergunta sobre quem ali era de fato boêmio. Uns disseram que o jeito deles era mais feliz. Aquiesci, pensando nos versos de Vinícius no Samba da Bênção. Muitas e muitos o eram sim, o brilho no olhar não negava. Preferiram, entretanto, ficar silentes ou responder que não, mas foi só da boca pra fora. Adorei isso, estavam já se levando bem mais a sério.

Incitei a todos e a todas a ampliarem esse papo, a replicarem a Confraria do Café, uma ação tão linda e numa livraria! Um clube de leitura. Conceito que defendo desde sempre e objetivamente desde 2002 como política pública. A Confraria do Café hiberna; mas os clubes de leitura estão espalhados Ceará adentro como espaço de promoção da leitura e convivência literária.

Na 12ª Bienal Internacional do Livro do Ceará, da qual fui curador com Lira Neto e Cleudene Aragão, o Café Literário e a Fortaleza Boêmia, respectivamente, sob a tutela de Alan Mendonça, e Carlos Macêdo e Márcio Porto, foram um exemplar espaço boêmio. O Espaço Fortaleza Boêmia fez uma citação do Cais Bar - um dos muito redutos boêmios de Fortaleza que se desmancharam no ar, como o Cirandinha, o Estoril, a Estudantina (esta merece uma crônica à parte). Evocamos esses espaços na Bienal pela sensibilidade imensa de Fabiano Piúba e Mileide Flores, gestores de grande espírito público.

Não só o Café Literário e a Fortaleza Boêmia, a 12ª Bienal Internacional do Livro do Ceará inteira foi sim, por ser espaço de promoção do Livro, Leitura e Literatura e de convivência literária, um evento boêmio!, um imenso Clube de Leitura e muito mais. Sua arquitetura integrou Praça do Cordel, Mestres e Mestras da Cultura, Café Literário, Fortaleza Boêmia e Natércia Campos à feira de livros. Nossa proposta era oferecer modelos de espaços de convivência e fruição literária a serem replicados pós-bienal.

Até agora e por ora, estamos a cumprir a missão de dar exemplo de resiliência boêmia e convocar todos a unir forças por uma sociedade mais democrática, justa, amorosa e de respeito à Vida. Fico feliz porque, hoje, vemos eventos literários em espaços públicos e privados. Leitura e lançamento de livros, rodas de conversa, saraus literomusicais a ocuparem praças, a desligarem televisões em bares e proporcionar conversas estimuladas pela arte. É o que anda fazendo, a despeito disso, o Ricardo Kelmer. É o que anda fazendo, a despeito disso, Nelson Augusto. É o que faz, Inês Pinheiro Cardoso, com o seu Leituras na Praça, Ivânia Maia, nos Quintais, Andreia Vasconcelos, no Circo, Klévisson Viana, Lucarocas e o povo do Cordel, Alexandre Lucas, na Comunidade do Gesso em Juazeiro, Efigênia Alves em Jaguaribe, Paulo e Toinha Araújo em Lisieux e Sobral, com Iracema Sampaio, Adriana Mesquita, Andrea e Taffa, é o que faz Célia Monteiro, Isabel Nogueira, Noélia Melo em Tamboril... É o que faz e incentiva Lílian Martins, em seu programa de rádio. É o que precisamos fazer em toda a periferia de Fortaleza e em todas as cidades do Ceará. Temos gestores da Cultura Boêmios! Oxalá já seja prenúncio de novo tempo da delicadeza. Evoé!

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Kelsen Bravos - professor, escritor, poeta, compositor, editor do Evoé!

8 comentários:

  1. Pois é, estimado escroemio (escritor boemio) há muito ue se fala em liberdade, em projetos sociais e coisas afins, mas , a boêmia como expressão literal de liberdade e avanço, vai se perdendo no espaço, confundem bêbados e drogados, com alucinados gênios..confundem gênios...confundem liberdade .. e lutas sociais... com desordem e anarquia... mas, parabenizo o nobre escritor, por fazer da "boêmia" uma luta incessante de divulgação e propagação da arte , cultura sintetizando nos já vitoriosos clubes de leitura espalhados pelos mais variados confins de nosso estado. Não vou comentar sobre os aspectos , diria, lúdicos, de nossa loira desposada do sol, pois, cearense que se preza , leva sua Fortaleza e seus pôr dos sois.. no coração... e parafraseando o projeto do ilustre editor , no abecedário, duas palavras para finalizar esse singelo comentário....BELEZA, BRAVOS...

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    1. Evoé! Clauton, evoé!

      Somos boêmios!

      E vamos harmonizar o mundo.

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  2. Obrigado, Clauton.

    Os Clubes de Leitura ainda não são vitoriosos, pois estão no comecinho. Enfrentam batalhas. Às vezes não perdem, mas ganham até nas derrotas. Eles só começaram a ser vencedores mesmos quando geração pós geração à menor descontinuidade deles sintam um num sei quê de vazio dentro de si mesmo e entendam que sem eles a vida vale menos. Evoé!

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  3. Boêmia como resistência politico-poetica... Linda ideia, linda proposta, amigo querido. Evoé Kelsen Bravos.
    Elvira Nadai

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    1. Elvira Nadai, meu amor, você é uma das minhas mais radicais referências. Que bom receber um comentário seu. Evoé!

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  4. A propagação das artes, a ampliação da capacidade leitora de cada integrante da sociedade é postura radicalmente positiva como proposta de desenvolver nas pessoas atitude de resistência ao que precisa ser resistido. Uma melhor compreensão do mundo é o que de mais digno se pode encaminhar pelos vieses da leitura. Por seu poder, tantos desejam - e mesmo atuam - para que não chegue a todos. Sua postura "boêmia" é valiosa, sedutora, incentivadora. Evoé, Kelsen Bravos!

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  5. A 12º Bienal, foi realmente boemia. Curti pouco, porque sou professora no Ceará, mas do pouco que curti, senti a poesia, a simplicidade, a competência e a bormia, transbordarem.
    Esse seu artigo, Kelsen Bravos, me fez ir a estante. Obrigada.
    Klaudiana Viana Torres

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  6. O importante é que ela está em ti, querida Klaudiana, linda!

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