sábado, 7 de dezembro de 2019

Se for assim, eu só sei que vou à luta - por Kelsen Bravos*

a Vinícius de Moraes, Manuel Bandeira, Aldir Blanc, João Bosco,
Ariano Suassuna, Zé Dantas, Gonzagão e Gonzaguinha



“Há mais coisas no céu e terra, Horácio,
do que foram sonhadas na tua filosofia”
(There are more things in heaven and earth, Horatio,
Than are dreamt of in your philosophy)
William Shakespeare, Hamlet


O bom de estar num bate papo com amigos é a falta de compromisso com qualquer coisa a lembrar a mínima formalidade acadêmica. Dispensa-se justificar qualquer argumento com um arrazoado conceitual de uma determinada teoria de base para demonstrar resultados empíricos sobre o tema de responsa em pauta.

Aliás, tema de responsa em um papo com amigos caracteriza-se pela gratuidade. Surge assim de repente da telha de quem nem se sabe quem o propôs. Daí ganha volume e explode em acaloradas afirmações as mais estapafúrdias.

São as mais estapafúrdias afirmações, eu lhes asseguro, todas elas dotadas dos mais densos sentidos, mas seria um rotundo despropósito levá-los a sério num bate papo, pois transformaria uma descontraída conversa em muito grave conflito entre emoção e razão.

Foi, pois, numa dessas conversas estapafúrdias que surgiu o tema para esta nossa hebdomadária crônica. “O homem quando nasce já está predestinado a morrer” e ainda foi-lhe acrescida, em tom pomposo, “entre o céu e a terra existe muito mais coisas que nossa vã filosofia”. Teríamos aqui uma citação de Hamlet, uma peça que permanece viva há mais de quatrocentos anos?!

Fico a imaginar agora o tremendo fracasso que seria Shakespeare se em suas peças fosse explicar com um arrazoado a podridão do poder. Imaginem se ele deixasse prevalecer a formalidade racional do personagem Horácio (que exclama como formidavelmente estranha a presença do fantasma do rei Hamlet) e não a passionalidade do príncipe Hamlet (que diz “se é estranho, então, dê-lhe boas vindas” [pois] “há mais mistérios entre céu e terra, Horácio, do que foram sonhadas na tua filosofia”).

Se em vez disso, fosse Shakespeare tergiversar sobre os mistérios do pós-morte, para justificar a vingança do príncipe Hamlet pela morte de seu pai e punir os corruptos, sua obra prima seria um fracasso, como está correndo risco de sê-lo agora, por enfadonho, este meu texto.

Isto posto, explicitamos como pressuposto único, tácito e universal, para um bate papo com amigos, não duvidar da verdade alheia. Não se deve questionar, por exemplo, - como verdade absoluta! - que o resultado quebrado da soma de dois mais dois seja de fato a origem da teoria terraplanar olaviana. E pronto!

E como esta crônica quer ser um bate papo com amigos, vou me furtar de falar de “O homem quando nasce já está predestinado a morrer”, primeiro porque não há morte. Vide o exemplo de William Shakespeare, o Bardo de Avon está vivo até hoje! Segundo, porque, se há morte, não se sabe nem quando, nem onde, nem como ela se dará, é, pois, também, como tudo no mundo, uma estranha incerteza. E, sendo, estranha, nos resta dar-lhe boas vindas!

Incertezas, é claro, devem ocupar o precioso espaço e tempo em nossas conversas com amigos. Ou vocês acham que o Ariano Suassuna, um mestre na arte de prosear, desprezaria o “eu num sei, eu só sei que foi assim” para explicar o inexplicável, o aquilo que é incerto para as filosofias, para a racionalização estraga-prazer?!

Uma roda de conversas entre amigos, um bate papo, um “diz-que-disse macio que brota dos coqueirais”, como nos cantou o Poetinha, é uma paratopia, uma espécie de Pasárgada, um lugar, ao mesmo tempo, sagrado e profano que para que se institua bastam pelo menos dois iguais se reúnam, como tantos outros iguais, para contar mentiras a fim de suportar a barra da realidade, essa contumaz estraga prazeres.

Ultimamente alguns amigos estão bem criativos nas mentiras que inventam para a gente suportar a barra da vida. Vejam só vocês que pérolas:

O presidente da Fundação Palmares, uma organização social de defesa da política afirmativa da negritude, declara que a escravidão foi benéfica, que Zumbi dos Palmares foi um atraso. Eita que mentira, que lorota boa!

O presidente do país, que diz “margens flácidas” ao cantar Hino Nacional, declara que peixes não se contaminam com óleo tóxico vazado no mar porque são inteligentes e fogem. O seu ministro do meio ambiente concorda e exemplifica. E tem mais, o presidente acusa Leonardo DiCaprio, um ator hollywoodiano, de ser o responsável pelos incêndios na floresta amazônica. Mas são umas lorotas e tanto!

O presidente da Funarte declara que os Beatles eram comunistas, que Althusser escrevia as letras da canção dos “comunistas de Liverpool". Quanta criatividade! Fantástico!!!

Todos eles acreditam que a Terra é plana.

O quê?! Não são mentiras?! Oh, Tupã, se a invasão da realidade ao espaço sacroprofano da conversa com amigos significa um rotundo despropósito contra a catarse das emoções reprimidas pela dura lida da vida, o que se dirá de a delirante catarse fascista ter virado a realidade?

Para tentar sanar a nação de tão surreal situação, vou seguir é o exemplo de Gonzaguinha, e ir com a juventude que não foge da luta a troco de nada, vou é junto do bloco da mocidade que sabe que é negro o coro da gente, e que, apesar dos pesares ainda se orgulha de ser brasileiro, que não está na saudade e por isso luta e constrói a manhã desejada. Evoé!

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*Kelsen Bravos - professor, escritor, cronista, compositor, poeta, editor do Evoé!
 

3 comentários:

  1. Não, não fracassa esse seu texto, bem como não fracassou o texto de Shakespeare.

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  2. Evoé! Meu caro amigo Chico Araujo, evoé!

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  3. Povo do Meu Bem-Querer,

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