sexta-feira, 15 de novembro de 2019

Odeio mentir - por Kelsen Bravos*



A arte existe porque a vida não basta.
Ferreira Gullar

Além da leitura, um de meus prazeres é escrever. Gosto de crônicas. Para mim é o que seria, para muitos, ver o time do peito vencer um clássico na final do campeonato, ou a escola de samba ganhar mais um carnaval, ou conquistar bonito o festival de quadrilha junina. Algo assim quase tão bom quanto beijar sob luar à erma praia e, depois do silêncio de depois, jogar-se com a amada no mar, já no tudo de novo outra vez…

Nesses tensos dias cheios de construção do nada, sinto a imprescindível necessidade de escrever crônicas, porque pressupõe a leitura atenta do contexto, obriga-me a refletir sobre o estado de coisas e a dialogar com o tempo presente para construir sentidos e, quem sabe, legar um registro ficcional importante para ajudar a interpretar a realidade e, assim, evitar a repetição da iniquidade tão perversa desses dias cheios de nada a legar…

Por estar tão caótico o contexto, resolvi pedir sugestão de temas para facilitar minha necessidade de escrever. Integro vários grupos em mídias de relacionamento. Um dos quais com pessoas de quem fiquei amigo há décadas e que bem recente nos reencontramos. Quando nos conhecemos, éramos muito jovens, passamos poucas e boas juntos. As dificuldades, que não foram poucas, nos uniram. Superamos todas elas e aprendemos muito com isso.

Quase quarenta anos depois, já com um pé no clube dos sessentões, senhores profissionalmente bem sucedidos, alguns com solar brilho no olhar ao exibir a netalhada... Pois lhes digo que o reencontro trouxe aquela juventude de volta, alguns reeditam a mesma imaturidade ao se provocarem e se debaterem numa discussão com argumentos que - num sei não viu? - causam risos até neles mesmos, até porque é isto sim o que querem: voltar a ser meninos.

A mesa do bar em que nos encontramos é um portal que nos transporta para eutopia de nossa velha juventude. Na evolução de lá para cá, histórias mil cada um tem para contar. Todas elas importantes. Acontecimentos felizes outros não. Dramáticos, trágicos, feios e cheios de beleza, tudo assim junto e misturado, porque falamos de vida e vida de verdade não é novela.

Sou professor e trabalho pela emancipação social por meio da Cultura, notadamente, pela arte, a arte literária, a leitura e a escrita e sei que cada pessoa tem sua trajetória e a trajetória de cada ser é milenar a se considerar toda a ascendência, a ancestralidade de cada uma. A essa história milenar que trazemos no DNA chamamos dignidade. Eu tenho uma tremenda consideração por essas trajetórias. Ferir uma sequer significa desrespeitar a dignidade de todos. Adoro gente! Amo essa diversidade de veredas e amplos caminhos unidos que compõem a história da humanidade.

As trajetórias de meus amigos são diversas, os pensamentos também, há polarizações ideológicas. A maioria defende a satisfação de interesses mais imediatos. Têm uma visão pragmática um tanto quanto deturpada, pois, uma vez satisfeito o imediatismo, não importam as consequências subjacentes. Outros defendem a evolução e o aprimoramento das garantias de um estado de bem-estar social.

Gosto de lhes ouvir os argumentos; gosto mais ainda das histórias bem despretensiosas. Daí resolvi dentre os muito grupos a que integro nas redes sociais eleger o desses meus bons amigos de quem tanto gosto para me sugerirem motes para escrever a bendita crônica semanal. Esta é a terceira, à primeira um amigo sugeriu “cuspiu no prato”. A segunda o mesmo amigo mandou o tema “peixe inteligente”. Para esta, ele resolveu não propor para dar vez aos demais.

Acontece que ninguém sugeriu um mote sequer. Acessei o grupo e perguntei. Um deles me disse ter até medo ou receio (sim receio e não medo) de propor. Fiquei intrigado. Que será que será que aconteceu nas crônicas anteriores?! Tentei entabular uma conversa esclarecedora, mas recebi a reticente resposta de que eu precisaria ler nas entrelinhas, decifrar metáforas… Estaria meu bom amigo a me aplicar um “je ne sais quoi” verissimoniano?! Não cri e descartei tal possibilidade.

Propus pensarmos para que serve a arte e por que ela é tão odiamada. Ele respondeu que não sabia dizer; mas ela é imprescindível. Falei que minhas crônicas são apenas alegorias, que a arte imita a vida, que são ficcionais, que existe um contrato tácito entre autor e leitor de aceitarmos um mundo paralelo para entender o real. Por fim citei Gullar para o meu bom amigo: “a arte existe porque a vida não basta”. E, parodiando o poeta maranhense, falei que não escrevo para temer (ou recear), mas para livrar do temor (ou do receio).

Depois dessa conversa com o meu bom amigo, ficou-me renitente a questão da ficção e da realidade nesse contexto de pós-verdade em que qualquer história manipulada por interesses políticos, por mais absurda que seja, acaba considerada real, verdadeira, porque nem mais contestada é. Estamos imersos no reino do consumismo, onde impera o descartável e, no que deveria ser o campo das ideias, foge-se da verticalização das coisas. Os argumentos têm profundidade pireslesca. A leveza do pensar foi corrompida. O pior sentido da leveza do pensamento, o senso crítico zero, é soberano. Daí quanto mais rápida e fútil a comunicação, mais ela é cegamente viralizada. Qualquer imbecil vira “influencer”, sobretudo, se contar com uma legião de robôs. Então o tal “influencer”, segundo o apólogo de Trilussa, cresce em importância quanto mais são os zeros a segui-lo - e a viralizá-lo.

Nesse contexto absurdo, abcego e abmudo, o tal contrato discursivo entre autor e leitor sobre o mundo do faz de conta se liquefaz e evapora. Tudo no universo da pós-verdade é incontestável. Cochilei com essa frase retinindo em meu juízo. Acordei em sobressalto delirante, o fim do compromisso com a verdade trará o caos. A fusão entre ficção e realidade transformará em verdadeira a história do Coringa - agora com muita fidelidade difundida no cinema - haverá a supremacia anarquista, a pós-verdade vai parir o pós-caos, as peças da Dragonauta vão virar cantigas de ninar.

Para espairecer fui à vendinha do bairro, o Mercadinho Seu Luís. Lá histórias reais e divertidas lorotas são contadas à moda antiga. Peixe, pesa aí essas bananas para mim. Já que peso, Peixe. - respondeu com desânimo. Todos lá se tratam assim, peixe pra lá, peixe pra cá. Acho que por influência do filho policial do dono da venda. Eu prefiro chamar as pessoas pelo nome.

O Seu Luís, meu bom vizinho, é um figura simpática. Ninguém, porém, é perfeito. Eleitor do gozo Bozo, está depressivo. Sua antes sortida venda está de mal a pior. Os credores cada vez mais agressivos. Ele me olhou profundamente e me disse que hoje em dia ninguém respeita mais ninguém, que a situação não está boa, fez uma pausa longa: "do jeito que o senhor me avisou na época da eleição". Tive vontade de dizer: Peixe, procura o Sebrae; mas, penalizado, só consegui lhe falar que vai melhorar…

Odeio mentir.
 
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*Kelsen Bravos
- professor, escritor, cronista, compositor, poeta, editor do Evoé! 

10 comentários:

  1. Respostas
    1. Obrigado, Solidade, meu bem-querer. Conheço o teu compromisso com a literatura e o prazer e a importância da leitura para ti. Esse teu comentário me afaga de um jeito muito, muito bom!

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  2. "...Alguns reeditam a mesma imaturidade ao se provocarem e se debaterem numa discussão com argumentos que ...causam risos até neles mesmos,..." As palavras, e até mesmo a ausência delas, muitas vezes, nos desnudam e deixam transparecer o real pensamento ou ideia que queremos, a princípio, transmitir. Mas poucos conseguem extraí-lá num primeiro momento. Você está entre esses poucos.
    A mais pura verdade, caro amigo!
    Mais uma produção literária de alta qualidade. Sem mais comentários.

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  3. Que crônica. Vai do mundo liquefeito às durezas da existência de homens zero e outros cem. O que vê, perescruta e escreve sobre tudo isto, é o cara - que odeia mentir.
    Parabéns pela verve e profundez

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  4. Meu caro amigo Macário!

    Dos novos cronistas um dos meus preferidos é você, cujo registro é sensível, denso, mas com leveza das boas, cheio de radicalidade, humano ao extremo no sentido de revelar a beleza do existir seja na urbe ou no sertão. Gosto das memórias, sobretudo. Você é um prosador que vale a luta e proporciona prazer e reflexão a quem o lê.

    Obrigado por ser meu leitor, amigo!

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  5. Respostas
    1. Bananada com bastante e mais um pouco de mel ajudam.

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