segunda-feira, 5 de novembro de 2018

Das coisas da poesia cearense: Mário da Silveira – um breve texto em primeira pessoa - por Túlio Monteiro*




A riqueza de um homem.

Quando encontraram Mário da Silveira
na mortalha de suas vestimentas,
notaram que o jovem poeta,
coroado de rosas e de espinhos,
carregava consigo um de seus sonetos,
e eu, ao lê-lo, hoje,
noto que ele morreu ricamente,
tendo poesia sobre seu peito!




Tomo I

Permitam-me apresentar-me: Sou Mário da Silveira, poeta, trovador, boa gente e, sem desvelo, um boa praça gentil com as mulheres e sensível ao toque dos aromas femininos.

Nasci em Fortaleza, capital do Ceará aos dezessete de setembro de 1899, filho de Raimundo da Silveira Gomes e dona Teodolinda Matos da Silveira. Estudei no Colégio Nossa Senhora do Carmo e Instituto de Humanidades, onde fui alvo do suave vício pelas letras clássicas, o que me tornou um precoce no que se refere ao erudito. Tanto é que, mal completados dezesseis anos, publiquei pela Tipografia dos Irmãos Jatahy o livro No Silêncio da Noite: fragmentos.

Em 1919, proferi na Casa de Juvenal Galeno a conferência A Eterna Emotividade Helênica, que me tornaria conhecido em Fortaleza bem como no Rio de Janeiro, onde em breve passagem pela então capital do País, trabalhei como secretário do escritor João do Rio no Jornal A Pátria, onde cativei em forma de amizade as companhias de Ronald de Carvalho e Raul de Leoni que, à época, idealizavam o que viria a ser a Semana de Arte Moderna.

Mas, voltando à conferência na Casa de Juvenal Galeno, que foi prestigiada por um sem número de pessoas, decantei o período Helênico em seus três principais critérios bem aos moldes de um Fernando Pessoa. Onde o primeiro deles aplica-se ao conjunto da vida, no qual a temos por imperfeita por nos parecer que ela vem a falecer naquilo mesmo por que se definem, ou seja, naquilo mesmo que parece que deveria ser. Sendo assim, todo corpo é imperfeito e toda a vida é imperfeita porque dura, mas não dura para sempre. Já em relação ao prazer físico há outra imperfeição porque o envelhece o cansaço. Quem sente desta maneira a imperfeição da vida e quem assim se compara a ela própria, tem neste ideal de perfeição o Ideal Helênico, assim designado pelos gregos antigos, o povo que mais distintivamente o praticou, deixando-o como herança maior às civilizações pósteras.

Como segundo critério, destilei aos presentes a vida imperfeita no tocante à deficiência quantitativa de sua essência, quando a considero inferior a qualquer coisa ou princípio, no qual, em relação a ela, resida a superioridade dos deuses. Sendo esta inferioridade essencial no relevante ao corpo humano e seu prazer sexual. Sendo ele vil e terreno, morre e com ele também se vai o prazer dos chacras, uma vez que a juventude se esvai como fumo leve: foge, mas porque a vida seja breve, há sempre um dia a mais para quem ama. Murcha a beleza que vemos porque cresce na haste temporal. Pois só Deus e Alma que Ele criou e a Ele se assemelha são, perante à ótica do Cristianismo, a forma ideal de existência.

Crendo que havia me feito entender até o presente momento da minha explanação, findei a palestra com o terceiro Ideal helênico, que aborda a vida por imperfeita por a julgarmos, enquanto seres humanos passíveis da morte eminente, nos deixamos levar pela suprema negação de que a vida é uma absoluta imperfeição. E é deste conceito de imperfeição que nasce a forma do ideal que nos é mais familiarmente conhecida como budismo, que trata da vida como um mero substrato metafísico.

Mergulhado em meu ego um tanto elevado ante meus dezenove anos de idade, rio-me por dentro ao captar rostos estupefados diante do que ouviam. Estava eu tratando e gerenciando uma palestra sobre ideais gregos na capital cearense. Algo assim sobre a civilização helênica que foi, essencialmente, uma civilização artística que, de certa forma, negligenciou o lado prático da vida, coisa que, confesso, também me atingiu em cheio, uma vez que nunca parei quieto em um emprego sequer que fosse, doando-me, incontingente, aos versos e ao farfalhar das saias das donzelas alencarinas. Pois fazer arte é querer tornar o Mundo mais belo, isso porque a obra de arte, uma vez gerada, constitui-se em beleza objetiva e que sempre deve ser acrescentada àquelas que existem na Terra. Pois é mister haver um critério objetivo de beleza ou de perfeição. Ora, dos três critérios de perfeição só o dos gregos tem objetividade. Que impulso natural pode ter para criar obras de arte, formas que pertencem ao Mundo e à vida, quem, como o cristão, tem o mundo por pó e mal, a vida por vileza e pecado, ou quem, como o místico da Índia, tem toda a Aparência por ilusão absoluta, flor que nasceu murcha na haste da Mentira? Se a criação artística não procedesse de um instinto irreprimível nas comunidades civilizadas, nunca teria havido arte índia, nem cristã. Onde O cristão é metafisicamente feliz. Tem os olhos da alma postos naquela perfeição divina em que não há mudança nem cessação. Pesa-lhe pouco a vileza do mundo: viver e ver são para ele um mal-estar transitório. Ao índio nada dói o haver Mundo; volta para o lado o rosto, e contempla em êxtase o Todo a que nem o Nada falta. É, o índico, metafisicamente feliz também.

Findada a palestra, os paparicos de costume me foram dados. Ciente de que a maioria dos presentes nada entendeu, senti meu alter-ego massageado. Coisas de um poeta insano, com seu um metro e oitenta de altura e peso bem distribuído. Cativador de corações femininos que tremem em seus balouçantes vestidos esvoaçados. Tendo por companhia minha eterna bengala, usada apenas como acessório de minha beleza ímpar, despedi-me de meu anfitrião, o poeta Juvenal Galeno e dirigi-me à Praça do boticário Ferreira. É domingo e, como de costume, vestes sacerdotais farfalham abundantes por aquele logradouro. Hora dos flertes às donzelas mais atiradas, ou não! Pena mesmo, como disse, ser tão ligado ao Ideal helênico que negligenciei o lado capital da vida, uma vez que só possuo dos paletós: um no corpo e outro no varal. Rio-me! Mas vou à caça.


Tomo II
É chegado o ano de 1920. Meus neurônios e hormônios joviais não me deixam mais quieto. Preciso e necessito trilhar novos horizontes. Conhecer novas plagas e descobrir novos corpos e olhos femininos. Despeço-me de pai e mãe e embarco em um vapor marítimo rumo à capital do Brasil. Rio de Janeiro, aqui vou eu. Por promessa trabalhista, pasmem, recebi um convite do poeta João do Rio para trabalhar n’ A Pátria, periódico de linha Modernista que precedeu a Semana de Arte que ocorrerá em 1922. Desembarco na capital fluminense e me extasio. Tudo é novo ante meus olhos de jovem moço. As praias são lindas e as moçoilas mais liberais que as do Ceará. Faca e queijo nas mãos.

Meus contatos cariocas não poderiam ser melhores, pois João do Rio, um senhor de trejeitos afeminados, fez questão de apresentar-me à fina flor da poesia local. Agora no Rio, decido por aqui passar breve temporada de um ano, com pretensões de voltar ao Ceará em 1921, onde irei produzir com afinco a poesia que direi à época da Semana de Arte, uma vez que o convite já me foi feito por Raul de Leoni e Ronald de Carvalho.

E pelo Rio fico-me. Um ano de prazeres intelectuais e carnais. É insana a vida carioca. Suas noites não se comparam às das plagas cearenses. São extremamente ativas, cheias de mais vitalidade e mocidade. Por cá componho como um louco. Poesias saltam-me aos dedos e penas insanas, donde, certa manhã compus Laus Purissimae, composto não somente de versos polimétricos, mas também de versos livres – bem ao fazer Modernista – porém com características Simbolistas. Apresento-os, a seguir, a abertura desse poema helênico com setenta e sete versos livres:

Laus Purissimae

Para louvar-te,
Para dizer da tua Forma, eu deixo
Minhas antigas, bárbaras roupagens
De grego jônico, e venho
Como um dórico
Num metro novo,
Numa nova expressão de arte quase intangível,
Platonicamente serena
(Que é o sonho louco dos mediterrâneos)
Venho, repito,
Para eterno ciúme dos Deuses,
Anunciar a rodos os estetas
Que nem tudo se foi da Beleza-Perfeita;
Que tu chegaste, ó minha Palas-Atenas,
Ó Suma Reveladora,
Ó Quase-Fluida! Ó Leve! Ó Subjetiva!


No início do ano de 1921, decido-me por voltar ao Ceará. Despeço-me dos amigos e amores e embarco em mais vapor marítimo rumo ao torrão natal. É hora de novas publicações. Inveterado boêmio, não fumo, não bebo nem entro em jogatinas. Entretanto, o serpentear de saias sempre foi o meu fraco e a noite minha eterna companheira. Absorto e livre do trabalho braçal, amanheço como anoiteço tendo por amiga eterna minha bengala e o velho par de paletós. Ainda assim, a beleza um tanto ímpar que me foi dada compensam a falta de vinténs.
Mário da Silveira - única foto do poeta

Tarde-noite do dia 22 de julho de 1921. Como de costume, estou na Praça do Ferreira a conversar amenidades. Sentado em de seus muitos bancos e tendo por apoio a velha bengala, não percebo o seu aproximar. Ele vem lento e um tanto indeciso. Titubeia o meu executor. No entanto, sua fúria é maior. A vingança vem a cavalo e por conta de um assédio mal resolvido. Era bela a moça, porém comprometida com uma abastada figura alencarina.

Só recordo do cano da arma. Escuro. Uma Smith-Welson carregada com cinco balas em seu feroz tambor. Mal tive tempo de bramir a bengala e os cinco balaços me transpassaram o corpo. É agonizante a minha morte. Apinham-se curiosos enquanto meu carrasco foge. Foge Carlos Gondim, mas não escapará de apodrecer na Cadeia Municipal – atual EMCETUR – onde morrerá louco e arrependido por ter estragado a sua e acabado com a minha vida. Em meus bolsos nada. Apenas um poema alexandrino perfeito, posteriormente publicado em Coroa de Rosas e Espinhos, livro póstumo onde amigos do porte de Antônio Sales publicaram em minha homenagem. 500 exemplares apenas.

Em seu prefácio, Antônio Sales assim descreveu minha morte e vida:

Este punhado de versos e prosa foi tudo quanto se pode recolher da vida e produção literária de Mário da Silveira, tragicamente desaparecido, com vinte e dois anos de idade. É muito pouco, mas é o bastante para dar uma ideia de sua estranha e vigorosa mentalidade.

Pagando, porém, tributo à sentimentalidade da raça, ele conservava uma ingenuidade de criança e uma afetividade de moça, e, é desse subconsciente moral que lhe vinham as notas líricas de seu estro, onde o pensamento filosófico se alia tão estreitamente aos sentimentos passionais, como se vê dos dez formosos e vigorosos sonetos de COROA DE ROSAS E ESPINHOS.

A adversidade colhe-o cedo em suas garras, e só o largou inerte, no chão de uma praça pública, com o corpo traspassado de balas. É preciso crer na predestinação para compreender a fatalidade de seu destino.

Aos mais amigos, um soneto de despedida escrito de próprio punho por Mário da Silveira. Predestinação?

COROA DE ROSAS E ESPINHOS
Sedenta de ódio, cega de despeito,
Nesta penosa e transitória lida,
A alma dos homens, pérfida e atrevida,
Perde às cousas mais nobres o respeito.

Dizem: “Tudo o que sentes no teu peito
Há de um dia passar, - porque na vida
Tudo é incenso sutil, poeira diluída,
O que é terreno é efêmero e imperfeito.

Um grande amor é como o resto...A gente
Quando menos espera, logo sente
Apagar-se o clarão de Ignota chama.”

Eu sei que tudo é como fumo leve:
Foge: mas, porque a vida seja breve,
Há sempre um dia a mais para quem ama!

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*Túlio Monteiro - é poeta, contista, crítico literário, articulista do Evoé! Leia mais em Literatura com Túlio Monteiro.



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