quarta-feira, 12 de setembro de 2018

CRÔNICA DE UMA MORTE ANUNCIADA III: QUEM TEM MEDO DE VIRGÍNIA WOOLF?! - Túlio Monteiro*

O efeito da morte sobre aqueles que continuam
vivos é sempre estranho, e muitas vezes terrível,
pela destruição de desejos inocentes.
(Virgínia Woolf)

Ah, essas malditas pedras!

Nasci pelo janeiro de 1882, em Kensington, bairro de Londres situado em zona limítrofe com o Hyde Park, lugar habitado em minha contemporaneidade pelos terríveis atos criminosos de Jack, o estripador. Cresci com as hostis histórias de mulheres sendo desencarnadas por um maníaco nunca descoberto.

Preciso confessar, no entanto, que vim ao mundo em berço esplêndido. Nunca me faltando qualquer coisa que fosse do ponto de vista material ou cultural. Filha de Sir Leslie Stephen e Julia Prinsep Jackson, fui criada e educada em uma família austera, já que meu pai era um editor de renome, bem como foi escritor, historiador, ensaísta e biógrafo. A ele devo minha rígida educação, fato que me levou já aos nove anos a publicar o Hyde Park Gate News, um pequeno jornal de tiragem caseira destinado a divertir literatos do porte de Thomas Hardy, Alfred Tennyson e Henry James, sendo este último um dos fundadores do Realismo literário e amigo pessoal de Gustave Flaubert.

Pena que, desde cedo, eu já apresentava crises depressivas. Talvez por conta de meus meios-irmãos por parte de pai em seu primeiro casamento terem me tocado intimamente quando eu ainda era uma criança. Vis lembranças de irmãos que vi morrerem antes de mim. Seleta vingança. Ao Inferno com eles. Decerto que as crises de insônia e desespero de meu pai, bem como seus casos de autodúvida e estresses diários contribuíram para meu fracasso social. Isso é fato! Mas, voltemos à pena!

Impressionada pela literalidade e pelo trabalho de editor do monumental Dictionary of National Biography, obra-prima de meu pai e também por sua vasta biblioteca particular, desde cedo manifestei a expressão de tornar-me escritora. Porém, a arrebatadora morte de minha mãe logo aos meus 13 anos de idade e os insistentes assédios de meus irmãos levaram-me em 1885 ao meu primeiro colapso nervoso. Médicos apostos no número 22 do Hyde Park Gate. Ao meu pai e aos meus consultores nunca revelei os motivos de minhas crises nervosas. Para quê? Se de nada resolveriam meus incontáveis apelos em plena era vitoriana onde as mulheres eram meros abrigos de filhos a serem nascidos e procriados?! O silêncio seria meu abrigo até nos íntimos escritos. E casei-me! Sim! Como filha do recém-nomeado Cavaleiro da Mais Honorável Ordem do Banho, período em que escrevi a perder de vista ensaios para o jornal The Guardian, conheci Leonard Woolf, amigo íntimo de meu irmão legítimo Thoby Stephen. Foi por assim dizer uma válvula de escape para uma criatura de trinta anos e já dada como de certa idade em tempos de começo do século 20. Emancipação! Felicidade plena e a fundação, em 1917, da Editora Hogarth Press, que revelou escritores do porte de T.S. Eliot, um tal Prêmio Nobel de Literatura em 1948.

Filhos? Não os tive! A bem da verdade, meu sobrinho Quentin Bell, foi um seleto ouvinte de minha trajetória sexual. Forçada que fui por meus irmãos a libertinagens mil, tornei-me um tanto arredia aos carinhos masculinos. O que transformou meu casamento com Leonard em um grande erro e fracasso, levando-me a dar-lhe liberdade para aventuras extraconjugais em detrimento de aparências e nada mais.

E foi assim minha cara e minha cruz onde assinalo que, apesar de não termos um “casamento com sexo”, no sentido estrito, eu e Leonard Woolf fizemos esforços e desafiamos as evidências para forjar uma relação verdadeiramente humana. Mas sem nenhuma paixão. Se havia uma paixão, entre os dois, era o culto à boa literatura e à boa conversa com os amigos, como o economista (bissexual) John Maynard Keynes. Eu, por minha vez, embora admirasse homens talentosos, tinha mais intimidade com mulheres, como Vita Sackville-West e Ethel Smyth. Aqui me confesso homossexual assumida! Lampejos de uma alma aturdida e sacrificada pelos beijos e carícias de meus malditos irmãos por parte de pai.

Era 1941! Enquanto Leonard se ocupava na luta contra os nazistas, eu preparava os frutos de minhas inserções pelo mundo do Fluxo da Consciência de Édouard Dujardin e Willian James, técnica literária em que se procura transcrever o complexo processo de pensamento de um personagem, com o raciocínio lógico entremeado por impressões pessoais momentâneas e exibindo os processos de associação de ideias, onde a característica não-linear deste processo de pensamento leva frequentemente a rupturas na sintaxe e na pontuação.

Mas as crises sexuais e existenciais nunca me deram trégua. E apesar de conviver e muito bem com a sociedade britânica de então, meus fantasmas me assombravam soberbamente. Não me largavam os malditos! Invadindo-me as têmporas para lá de cansadas. Atormentando-me noite e dia entre corpos femininos e masculinos. Crivo das cores. Abordagem maior de um ser humano coberto de erros e pecados. Seria eu a única a pecar em desvelo de um santo corpo? Nunca irei saber!

É manhã de 28 de março de 1941!

Nossa casa em Londres, no Hyde Park, foi destruída pelos bombardeios de Hitler e nada mais me resta de sobriedade. Temo por mim e corro à pena para mais um desabafo a Leonard, meu fiel companheiro de vida e descasos. Teimo em escrever-lhe mais uma missiva, mas ao mesmo tempo sinto-me livre após anos de torturas íntimas; E escrevo:

Querido Leonard,

Tenho certeza de que enlouquecerei novamente. Sinto que não podemos passar por outro daqueles tempos terríveis. E, desta vez, não vou me recuperar. Começo a escutar vozes e não consigo me concentrar. Por isso estou fazendo o que me parece ser a melhor coisa a fazer. Você tem me dado a maior felicidade possível. Você tem sido, em todos os aspectos, tudo o que alguém poderia ser. Não acho que duas pessoas poderiam ter sido mais felizes, até a chegada dessa terrível doença. Não consigo mais lutar. Sei que estou estragando a sua vida, que sem mim você poderia trabalhar. E você vai, eu sei. Veja que nem sequer consigo escrever isso apropriadamente. Não consigo ler. O que quero dizer é que devo toda a felicidade da minha vida a você. Você tem sido inteiramente paciente comigo e incrivelmente bom. Quero dizer que – todo mundo sabe disso. Se alguém pudesse me salvar teria sido você. Tudo se foi para mim, menos a certeza da sua bondade. Não posso continuar a estragar a sua vida. Não creio que duas pessoas poderiam ter sido mais felizes do que nós.
V.

Após isso, o desenlace final me aguarda. Visto o casaco em desalinho e caminho rumo às margens do Rio Ouse, tão perto que fica de minha casa. Quanto ao meu corpo? Só depois de três semanas foi encontrado por um grupo de escoteiros perto da Ponte Southease. Já era abril e cinzas virei.

Enfim as benditas/malditas pedras surtiram efeito!

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*Túlio Monteiro - é poeta, contista, crítico literário, articulista do Evoé! Leia mais em Literatura com Túlio Monteiro.



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