segunda-feira, 10 de setembro de 2018

MONÓLOGO DE UMA MORTE ANUNCIADA II: Florbela Espanca - Túlio Monteiro*

Dorme, dorme, alma sonhadora,
Irmã gémea da minha!
Tua alma, assim como a minha,
Rasgando as nuvens pairava
Por cima dos outros,
À procura de mundos novos,
Mais belos, mais perfeitos, mais felizes.

Criatura estranha, espírito irrequieto,
Cheio de ansiedade,
Assim como eu criavas mundos novos,
Lindos como os teus sonhos,
E vivias neles, vivias sonhando como eu.
Dorme, dorme, alma sonhadora,
Irmã gémea da minha!
Já que em vida não tinhas descanso,
Se existe a paz na sepultura:
A paz seja contigo!

(À Memória de Florbela Espanca, do espólio de Fernando Pessoa)

Hoje é meu aniversário!

Trinta e seis anos completos de tormentas e espasmos psicóticos que teimam em não me deixar em paz um momento sequer desta minha existência terrena iniciada no Alentejo, desde que rompi do ventre de minha mãe Antônia.

Sempre fui tanto singular, dizia meu pai José Maria, o antiquário por profissão e divulgador do Vistascópio de Edison nas terras portuguesas por amor à sétima arte. O que dizer e não dizer de uma filha fecundada de maneira tão ímpar quanto eu, uma vez que Mariana, minha estéril mãe e verdadeira esposa de meu pai, permitiu o enlace conjugal do mesmo com mama Antônia?! Mas que bela caricatura sou eu: filha de uma vistosa e bela criada de servir que também trouxe à luz Apeles, meu amado irmão, dois e poucos anos mais novo que eu. Fazer o quê se as correntes escravocratas ainda imperavam no meu Portugal de fins do século dezenove, e amas de leite eram criaturas presentes em quase todos os lares?

Fui capturada cedo pelo mundo das Belas Letras. Enquanto ainda frequentava a escola primária de Vila Viçosa do Alentejo, já arriscava meus primeiros versos, sendo que em 1907, aos 13 anos, redigi “Mamã”, meu primeiro conto dedicado a Antônia, minha mãe de parto que viria a falecer no ano seguinte vitimada por uma sequência de incansáveis ataques de nevrose. Maldita herança materna!

A morte de mamãe foi o gatilho à minha mudança para a cidade de Évora, onde fui uma das primeiras mulheres a cursar por completo escola Liceal. Foi requisitando livros do Liceu de Évora que conheci alguns monstros sagrados na Literatura Mundial, a exemplo de Dumas, Balzac, Garrett, Camilo Castelo Branco e Guerra Junqueiro.

Os joviais anos escolares passaram rápidos até que em 1913 decidi por casar-me com Alberto Moutinho, meu colega de Liceu. Não tínhamos posse, o que nos levou a morarmos precariamente na Vila de Redondo, passando a residir, a partir de quinze, na casa de meu pai em Évora mesmo.

Em 1916, já trabalhando como jornalista para O Século de Lisboa, para A Voz Pública e Notícias de Évora, retornamos à Vila de Redondo, onde organizei uma detalhada coletânea de meus escritos, publicando-os sob o título de Trocando Olhares. Não foi um sucesso de público, o que me levou a uma crise de neurose, mal que me acompanharia por toda a existência.

Com a chegada de 1917, concluí o Curso Complementar de Letras e matriculei-me na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, de onde fui uma das únicas catorze mulheres a lograr aprovação. Felicidade, enfim!

Entretanto, veio o famígero ano de dezoito, a Primeira Grande Guerra e meu aborto involuntário, o que me agrediu de maneira profunda os ovários e pulmões. Neurose e a culpa jogada sobre os ombros de Alberto. Estava se findando o meu casamento e a alma de poeta carecia de novos amores, novas aventuras por corpos nunca dantes desnudados.

Dezenove e vinte foram anos de uma certa paz interior. No primeiro, publiquei duzentos exemplares de meus sonetos no Livro de Mágoas. Desapareceu rápido das prateleiras, vindo a se tornar obra rara. Já no segundo, e ainda casada por aparências com Alberto, conheci o Antônio José Marques Guimarães, alferes da Artilharia da Guarda Republicana. Paixão arrebatadora, mas impossível de ser vivida plenamente, o que me levou, após mais de seis meses de traição a separar-me oficialmente de Alberto, permitindo-me com isso casar-me com Antônio Guimarães, passando a residir na cidade do Porto e, no ano seguinte, em Lisboa, onde Guimarães se tornou chefe do gabinete do Ministro do Exército.

Tudo parecia divino, não fossem as incessantes tentativas de gravidez sem sucesso e a ascensão meteórica de meu marido, o que me resignava a ser uma mera coadjuvante em um mundo plenamente machista e cheio de preconceitos. Confesso-lhes: fui até onde minha alma de poeta aguentou! Esforcei-me, os Céus sabem quanto, para manter viva a chama do amor que havia de mim para com Antônio. Até publiquei, em janeiro de vinte e três, meu segundo livro de sonetos, o Livro Sóror da Saudade. Novas e excelentes vendas o que me acalantou o regaço de poeta nada pudica em relação aos males do coração e desejos febris por ser amada.

Não me perguntem como, mas desde de vinte e um que já caíra de amores pelo médico Mário Pereira Lage. Ao contrário do rompante entre mim e Antônio, fui mais regrada e secreta no tocante a esse novo amor. Foram quatro os anos em que nos relacionamos amiúde em encontros joviais para uma mulher de trinta e qualquer coisa.

Veio 1925 e com ele a definitiva separação de Antônio. Casei-me, pois, com Mário em Matosinhos, região do Porto, onde passamos a residir. Mário e sua abastada condição me davam asas a uma livre produção literária. Tinha ao meu dispor penas e papeis, o que me levou a colaborar, a partir de vinte e sete, no Civilização e Figueirinhas do Porto e no D. Nuno de Vila Viçosa. Tudo parecia tão bem naquele primeiro semestre. Até que “Ela” se apresentou novamente fria e tenebrosa ante meus olhos: em junho, nas proximidades da freguesia de Belém, meu único irmão o aeronauta Apeles Espanca sofreu um fatídico acidente aéreo. Devastação total de Minh´alma de sonhar-te! Crises nervosas, neuroses, pensamentos pessimistas me invadiram a mente. À pena corri e escrevi quase que de uma vez só a série de contos póstumos As Máscaras do Destino. Mais um ser amado tinha-se ido!

Sem filhos, sem disposição aos textos e sem a compreensão de meu marido tentei por cabo à minha vida em 1928, Exaurida, nada mais me dava prazer a não ser o fazer de minha autobiografia iniciada em trinta e interrompida bruscamente por mais duas infames tentativas de partir para sempre.

Contudo, ainda reuni forças para colaborar jornal feminino e feminista Portugal Feminino, no Primeiro de Janeiro do Porto e Revista Civilização, Tentativas insanas de me reencontrar naqueles outubro e novembro de um trinta demoníaco. Nada resolvia! Nem os carinhos parcos de um Mário já deveras distante me calavam alto o coração quando, no início de dezembro, o fatal diagnóstico de um severo edema pulmonar me arrebatou de vez a vontade de viver.

Era manhã do dia oito de dezembro, dia de meu trigésimo sexto aniversário, quando o maldito Veronal enfim fez efeito...
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*Túlio Monteiro - é poeta, contista, crítico literário, publica todas as segundas aqui no Evoé!  Leia mais em Literatura com Túlio Monteiro.

Um comentário:

  1. Incríííííííível texto, fidelíssimo ao confessionalismo florbeliano!!!!!!! O Brasil deveria ler e aplaudir tamanho lirismo e ressignificação desta que fora, é e será, AD INFINITUM, uma MULHER DAS MAIS AUTÊNTICAS E INSTIGANTES... E que, desde seu natalício, não tivera os mares da vida dos mais fáceis a serem singrados! Parabéns por mais esta produção, carísssssimo escritor Túlio Monteiro!

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