quinta-feira, 6 de setembro de 2018

MONÓLOGO PARA UMA MORTE ANUNCIADA? Hemingway - Túlio Monteiro*


O meu é uma resposta aos que chamam ao suicídio um fim de covardes e de fracos, quando são unicamente os fortes que se matam! Sabem lá esses pseudo-fortes o que é preciso de coragem para friamente, simplesmente, dizer um adeus à vida, à vida que é um instinto de todos nós, à vida tão amada e desejada a despeito de tudo, embora esta vida seja apenas um pântano infecto e imundo!
(Flor Bela Espanca)



Diachos! Nessa última meia hora nada mais fiz que relembrar e remoer o meu passado. Seis décadas inteiras de impotência, neuroses, alcoolismo e depressão. Já não consigo raciocinar direito nem lembrar bem de como se datilografa um escrito, um rabisco que seja nessa velha Smith-Corona que já me acompanha há anos por cada atril nos quais ela bem quis e descansou.

Eis que por um momento me vem à mente o velho Fitzgerald, que já partiu há pelo menos vinte anos, quando disse-me em uma carraspana memorável que para cada livro escrito eu teria que ter uma nova mulher. E rio por dentro ao ter afirmado a ele e a outros da minha estirpe, que não me apaixono, mas, sim, caso-me! Sim, caso-me como mal tendo completado 20 anos e já servindo à Primeira Guerra Mundial como motorista de uma ambulância da Cruz Vermelha, decidi por me casar com a bela Elizabeth Hadley Richardson, com quem tive um filho. Foi por influência dela e da enfermeira Agnes Von Kurowsky, que me atendeu após um bombardeio do qual me restaram centenas de estilhaços de uma bomba que explodira próximo ao local onde eram resgatados alguns soldados americanos, que dediquei às duas, em 1929, Adeus às armas.

Mas as Guerra de 1918 chegou ao fim e o Condado de Oak Park, onde nasci, ficou muito monótono para um homem grande e robusto como eu, 1.96m, de altura por 118 quilos de peso. Era demasiado curto ficar escrevendo para o pequeno jornal de minha terá natal. Precisando, urgente, conhecer novos horizontes. Novas plagas, outros arrabaldes.

Sem pensar duas vezes, mudei-me com Elizabeth e o menino para a doce Paris, que sempre foi e será uma festa. Estava empregado como correspondente da revista canadense Toronto Star Weekly. Não fosse essa mudança, nunca teria conhecido vates do porte de Ezra Pond, Sherwood Anderson, Waldo Peirce, John Dos Passos, T. S. Eliot, James Joyce e Gertrude Stein. Estava formada, em plena depressão do pós-guerra dos “Loucos anos 1920”, a “Geração Perdida” da Rue de Ledeon, número 12, e seu inesquecível Café-Livraria Shakespeare and Company.

Droga! Já lá se vão quinze minutos e eu neste polimento monótono e cansativo!

Entretanto, o tempo passou e como todos os grupos de pensadores nós nos afastamos. Cartas eram nossas relíquias trocadas com frequência britânica. Alívio às dores da alma que já me escancaram o cérebro.

Em Paris, meu primeiro casamento se foi, tendo eu me apaixonado pela jornalista Pauline Pfeiffer, com quem casei em 1927 e tive mais dois filhos, nesta época já morando na Flórida e frequentando bares do submundo, dentre eles o Sloppy Joe's Bar, de Joe Russell, até então meu confidente e companheiro de farras.

Amante que sempre fui de esportes, na década de 1930 parti com Joe rumo a uma pescaria de Marlins nos mares cubanos de Fidel Castro e sua Revolução Socialista. Foi paixão à primeira vista me hospedar no Hotel Ambos Mundos, localizado na Vieja Havana, onde passaria as próximas duas décadas em intenso combate aos meus transtornos mentais e depressões profundas.

Na ilha de Guevara, duas arrebatadoras paixões poriam fim ao já combalido casamento com Pauline. Primeiro, foi com Jane Mason, que era casada e não mediu esforços para estar em minha cama. Era a famigerada década de 1930. Em 1936, contumaz apreciador de mulheres destemidas que sempre fui, surgiu-me às já velhas e cansadas retinas a figura destemida de Martha Gellhorn, jornalista de guerra que de passagem por Cuba partiria para a Espanha em busca da cobertura da Guerra Cívil daquele país. Com o coração livre e um novo romance que daria à luz Por quem os sinos dobram, de 1940, parti às terras dos loucos moinhos de Cervantes como jornalista do North American Newspaper Alliance e, claro, para os braços de Martha.

E toda a Segunda Guerra passei nas terras de Fidel ao lado de minha terceira esposa. Foram anos duros de chumbo, recessão e milhões de mortes. 1946 chegou e com ele a Paz aparente. Cuba, como as touradas espanholas, já não me agradavam mais. Precisava voltar ao meu ninho norte-americano, mais precisamente à cidade de Ketchun, no condado de Blaine, estado de Idaho. Martha e eu havíamos decidido por não mais dividirmos vidas, o que mais uma vez me levou a uma profunda tristeza de viver ao alcoolismo exacerbado.

Diacho de polimento bolorento!

Porém, entre minhas andanças por revistas e jornais, encontrei a frágil e tímida jornalista Mary Welsh, um oposto completo das mulheres arrebatadoras que haviam passado por minha vida nada monótona. O diabetes, alcoolismo, depressão e a maldita homocromatose se aliavam à minha perda de memória com rompantes de lucidez que me trazem à lembrança a personalidade dominadora de minha mãe Grace, que sempre insistiu em me recordar do fim trágico que meu pai havia posto à sua vida terrena.

Lá se vão vinte e cinco minutos de uma apavorante solidão, do qual sei que não sairei ileso. A mente alucinada como os exaustivos monólogos interiores de Faulkner em seu Palmeiras selvagens.

E falo comigo mesmo e com meus pares já idos. Atormenta-me a imagem das orelhas de Van Gogh e a quintessência do gênio incompreendido, o artista onde discursos sobre loucura e criatividade convergem de maneira ao já esperado.

É 2 de julho de 1961 e a manhã se anuncia entre os pássaros que teimam em piar ao surgir de um novo arrebol. Já à beira de meus sessenta e dois anos dentro dos próximos dias, sinto-me cansado! Já não consigo dedilhar minha velha máquina de escrever e isso se torna dor suprema em articulações e nervos sacrificados. Escrever em pé, à maneira de tantos outros loucos que passaram pela História é conservadorismo que não mais posso exercer. E isso dói como doem as faltas dos amores partidos. Mary dorme. Já não há mais amor de mim para com ela. Como também já não há mais amor pelo Pulitzer de Ficção de 1953, nem pelo Nobel de Literatura de 1954. Nada mais vale a pena. Filhos distantes, cada um se ocupando de sus afazeres diários. De mim, o pai, somente uma lembrança amarelecida feito velhos papeis de carta.

Já é manhã feita. E o tempo se arrasta agourento, feito os corvos de Poe. Fim do polir e azeitar de meu velho rifle de caça. Um calibre 22 da Abercrombie & Fitch de minha estima. Lembranças de caçadas indeléveis na África Central.

Ora de ir!

Partir aos braços de Morfeu e ao reencontro de amigos que se foram antes de mim. Que fique meu legado!

E Hemingway não quis...

______________
*Túlio Monteiro - escritor, poeta, crítico literário e articulista do Evoé!

Um comentário: