quarta-feira, 15 de agosto de 2018

UM HOMEM DE CIÊNCIA - Epitácio Macário*

(Em memória do meu pai, Seu Raimundo Macário)


Episódio 1: a fama

I.

Desde que retornara do Maranhão, acompanhado da mulher e dos dez filhos, as histórias se multiplicavam a respeito de suas habilidades.

Já no meio da estrada, enquanto o pau-de-arara era consertado, as mulheres faziam o rancho debaixo das ingazeiras e as crianças brincavam de esconde-esconde na mata, ele criava fama junto aos homens, exímio que era na arte de confabular. Viajado, narrava com desenvoltura o cotidiano dos nordestinos que se amontoavam nas favelas lamacentas do Rio e de São Paulo, para onde iam fugindo da cerca, da seca e da fome. 

Dotado de perspicácia e de memória invejáveis, logo fez-se notar como leitor de mão, repetindo ao pé da letra os causos contados na espontaneidade da viagem e ardilosamente sistematizados em sua imaginação. Seguia um método lógico: ouvia as conversas, estabelecia algumas premissas pela oitiva dos pedaços de vida e daí deduzia todo o resto. Coisa simples para um atento observador da conduta humana.

A convicção traía-se, porém, no sorriso que escorregava no canto da boca ao cruzar o olhar com sua mulher que, de cenho franzido, reprovava sua atitude, ao mesmo tempo em que admirava a sua capacidade de deter a atenção dos pareceres. “Mais cedo ou mais tarde isto atrairia encrenca”, pensava ela. 

De fato, era o que viria a ocorrer na pracinha de uma pequena cidade maranhense, ao se apearem para o almoço. Um valentão irritou-se com a revelação dos segredos de sua jovem namorada e desafiou-o. Com a mão direita no cabo do facão, o vaqueiro estendeu-lhe a esquerda e sentenciou: “leia! Se errar...” A reticência reteve a respiração dos que se haviam aglomerado na roda. 

Sem tempo, Seu Raimundo Vitor, nascido Raimundo Macário, fitou os olhos do homem e enxergou a maldade que lhe cobria a alma. O braço estendido exibia rastros de lâminas e a camisa entreaberta deixava expostas as cicatrizes herdadas de um passado fácil de adivinhar. Então, antes da terceira expiração, pronunciou em tom firme: “não posso revelar seus feitos, caro amigo, pois não quero testemunhar em tribunal”, falou e virou de lado rumo aos dois polícias que chegavam para desmanchar a desavença. Olhando o chão, o homem foi saindo de fininho. 

Todos respiraram aliviados e a mulher fitou o céu num gesto de agradecimento.

II.

Apearam-se em São Benedito, para uma visita aos parentes, e o velho carro seguiu para o sertão, conduzindo passageiros e as histórias que presenciaram. Dois meses depois, Seu Raimundo, mulher e filhos completariam a viagem, chegando à localidade de Barra Nova, nas terras de Tamboril. Instalaram-se numa velha casa fora do povoado. 

Além das batalhas contra os percevejos (barbeiros) que infestavam as paredes de taipa, do trabalho árduo para fazer safra, alimentar e vestir mulher e filhos, tinha de desmanchar a fama que lhe imputavam. Cumpria acordo feito com a mulher que durante as sessenta noites no frio da Serra Grande relembrou a angústia daquele momento vivido na cidadezinha maranhense. Além do mais, lembrava ela: “os meninos estão crescendo; precisam de bom exemplo”. 

Mas, sabe como são boatos... Em Barra Nova eles só aumentaram.

III.

Contava-se de uma vez que ele enfrentou um bando de ciganos, portentosos no armamento, exuberantes no físico, montando possantes cavalos negros. Ao todo, eram mais de trezentas cabeças entre homens, mulheres e crianças que foram recepcionados no terreiro, a pé, porque, estranhamente, os animais estancaram no aceiro em linha tão reta que pareciam hipnotizados. Às esporadas na barriga, às chicotadas e aos gritos de “eia!” os corcéis negros reagiam em relinchos, ofegos e patas levantadas… mas nenhum passo à frente. 

Dizia-se que ele travara um duelo encarniçado com o líder daquela gente, fazendo-o rodopiar três vezes depois de cochichar em seu ouvido, ler algumas passagens num velho livro de capa preta gasta e apontar-lhe um sarrafo de jucá. Por um instante, é o que se popularizou, formou-se uma nuvem negra, ofuscando os olhares, inclusive deste narrador que era ainda muito criança. Depois, o que se seguiu foi uma reverência do ancião líder daquela gente que ordenava a montaria. Saíram em tropel, deixando marcas fundas das ferraduras na estrada de piçarra e uma densa poeira que encheu o desolado fim de tarde sertanejo.

Mesmo sem saber ao certo se ele trabalhava na linha preta ou na linha branca, todos aprovaram sua ação. Ora, duas vezes por ano - diziam no povoado - aquela gente passava pelo lugarejo, uma subindo para o Ipu e a outra descendo para Canindé, e deixavam uma subtração na miunça, nas latas de feijão, milho e arroz. “Bem feito! Rabos de burro!" – era o que dizia o povo da comunidade em silêncios, gestos e palavras. 

Em verdade, em verdade, eu vos digo, pelo tanto que lembro e presenciei, que o grupo não passava de trinta, em andrajos, puxando mulas sonolentas, exibindo tatuagens em pelancas, esquálidos. É bem possível que ele tenha declamado algum verso apreendido de oitiva, usado d’algum palavreado dos rituais de exorcismo de Padrinho Zé Bruno de Codó no Maranhão, ou utilizado alguma jinga impressionante, pois tinha longa experiência como magarefe nas festas de reisados. Mas sem dúvida, um olhar profundo, entre inocente e destemido, e algumas palavras escolhidas para o momento foram lançados naquele duelo. Isto ele sabia fazer como ninguém! 

Se tenho, pois, a certeza do que vi e aqui afirmo, sinto-me na obrigação, todavia, de advertir sobre as dúvidas que carrego há exatos 49 anos. Turvada por aquela poeira e pelo tempo está hoje minha lembrança, e os senões avolumam-se. Pois do que mais lembro – e já não posso garantir se de testemunho ou de oitiva – é dos cavalos paralisados em linha reta; ainda sinto o cheiro forte que exalavam, de suores e resfôlegos. E os rodopios do cigano velho sem que Seu Raimundo Vitor lhe tocasse um dedo?...


Além do mais, quem não se lembra daquela tarde de domingo, quando as mulheres já se enfileiravam na vereda da cacimba para fazer o asseio, trazer as cabaças cheias, empoarem-se e irem para o culto? Ninguém ali jamais esquecera, tampouco este narrador, aquele entardecer quando o sol é engolido pela torre de nuvens em cor chumbo e um vermelhidão se espraia a oeste, enquanto avoantes penetram o azul infinito dos céus. Sim, era um lusco-fusco enternecedor e morno no sertão dos Inhamuns, que fora interrompido abruptamente. 

Pois, quase hora do Ângelo, os devotos se arregimentavam em torno do rádio para o canto da Ave-Maria, quando se ouviu a gritaria da dezena e meia de filhos de Bibiano, organizados ao redor da panela de baião de dois. Dona Júlia, a mãe da família, surtou; apanhou uma faca e desembestou na carreira jurando suicidar-se.

Ele vinha dobrando o canto da cerca, montando seu jumento de cela, seguido por sua mulher e uma fileira de filhos, inclusive este narrador. Apeou-se e logo juntou-se a dúzia e meia de voluntários que entraram na mata para resgatar a mulher. Encontraram a coitada há dois quilômetros, encostada num pé de angico, delirando e com a faca em punho.

O primeiro a pronunciar-se foi Zé Mariquinha, cunhado dela por parte de marido, conhecido pela voz sonora de timbre grave. Esbravejou e em tom imperioso ordenou-a que largasse a faca. Ela respondeu com um olhar faiscante, a mão trêmula, os cabelos esfiapados, os lábios franzidos, uma espuma descia no canto da boca... Foi suficiente para fazê-lo calar e retroceder dois ou três passos, aumentando a distância de vinte metros, e acomodar-se atrás da touceira de mufumbo. 

O marido mantinha uma conduta entre indeciso e culpado, enquanto duas mulheres rezavam, choravam e se abraçavam. 

Foi então que Seu Raimundo Vitor afastou os homens com um gesto de mão, chamou as duas mulheres e foi tomando chegada. 

A uns cinco metros, os três acocoraram-se e ele começou a conversar com a suicida. Falou dos filhos que tinha e, certamente lembrando a variedade de condutas, riu sozinho. Contou causos curtos do cotidiano da comunidade, pronunciou sete vezes o nome do caçula dela – “ainda tão criança!”, “uma vida em germinação!”, exclamava – enquanto se aproximava. Quando a alcançou, ela já estava completamente desarmada e banhada em lágrimas.

Nada mais que isto fizera. Mas todos os que lá estavam, e principalmente os que não estavam, juraram que o ouviram proferir uma oração em língua desconhecida e viram mesmo o momento em que expulsara um espírito sujo do corpo de Dona Júlia. 

Este narrador é testemunha do esforço que ele fizera para desmanchar os boatos. Mas, na quadragésima vez em que teve de explicar o que acontecera, sapecou sua costumeira ironia: “morei no Maranhão por doze anos. Vi os rituais de exorcismo de Padrinho Zé Bruno de Codó. Eu não estava brincando, caro amigo!”. 

Desde então, sua fama deixou o campo do boato e cristalizou-se no imaginário daquele povo.

Doravante, passou a ser assediado por apostadores no bicho e na loteria, por pessoas enfermas e homens desconfiados de suas mulheres. Foi, também, muito procurado pelas moças noivas e velhos da comunidade que queriam saber como o INPS iria julgar seus processos de aposentadoria. Até caçadores, de indômita coragem, consultavam-no sobre caiporas e visagens que residem na mata densa.

E foi assim que Seu Raimundo Vitor, seresteiro, gritador de leilão, imbatível colhedor de arroz, brincante de reisado e contador de histórias passou a ser conhecido, também, como um homem de ciência.

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*Epitácio Macário - Educador com doutorado, mestrado (ambos pela UFC) e graduação em Pedagogia. Professor do Mestrado Acadêmico Serviço Social, Trabalho e Questão Social (MASS/UECE,  - instituição onde se graduou). Declara com convicção em seu perfil no FaceBook: "Sou professor por opção e por concurso público. Modo de vida não universalizável é frescura de rico." Autor de Estações (clique no título do livro para acessar o eBook), publicado em 2016 cheio de prazerosas crônicas e contos. 


Nota do editor do Evoé!

A literatura de Epitácio Macário (Mac) reverbera em sintonia com genial narrativa de um Ubaldo Ribeiro; mas sem o sarcasmo do autor de O albatroz azul. No lugar do sarcasmo, a narrativa de Mac envolve amor, muito amor à gente da qual descende a profunda Nação Brasileira. Ele nos universaliza os iguais.

Parabéns, amigo Epitário Macário, e obrigado pela honra de nos conceder autorização para publicar aqui "Um homem de ciência". Evoé! (KB)

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