sábado, 18 de agosto de 2018

LAMPEJOS: DIOGUINHO E AS CORES DO ARCO IRIS - Túlio Monteiro*

Eis que me chega, através de correspondência eletrônica, o mais novo e ainda inédito livro do irisante poeta Diogo Fontenelle. São exatamente 363 poemas. Trezentos e sessenta e três gotas prismáticas das mais encantadoras emoções do universo infantil, com minucioso apuro formal, desde a definição da cabalística quantidade de poemas, em que os extremos somados equivalem ao cerne. Vale ressaltar que Dioguinho me confiou Lampejos ainda em sua matriz para uma breve apreciação; arrebatado, porém, por tão sinestésico conteúdo, decidi desenvolver o presente artigo sem querer me deter aos traços acadêmicos que costumam permear minha escrita analítica. 

Óbvio que algumas técnicas aprendidas no transcorrer de minha formação em Letras na Universidade Federal do Ceará virão à tona no percurso literário deste ensaio sobre a enlevada expressão de um dos maiores bardos da Literatura da Infância no Ceará. 

Bom. Mas iniciemos nosso passeio que, prometo, será brando como as variantes do Azul na vasta e rica obra de Diogo Fontenelle. 

Lembro que tudo começou em uma conversa via messenger que tive com Dioguinho. Entre as muitas reflexões que costumam ter os poetas, ele falou-me de um novo livro que está às vésperas de ser publicado, tendo o mesmo sido sacramentado por Fontenelle com o doce epíteto de Lampejos. Edição que desde já, aviso, será de grande valia para a Literatura praticada nas terras de Alencar desse começo de século 21.

De modo similar a Marcel Proust no seu imortal Em busca do tempo perdido, Dioguinho lança mão de todos os artifícios que possui para nos presentear com uma coletânea de poemas da mais fina estampa. Algo assim para ser degustado como a buscar o sabor das madeleines que o menino Proust tomava no chá da tarde com sua mãe, Jeanne Well. Assim, pois, feito Proust, Fontenelle mergulha em suas referências afetivas para reviver e reafirmar a absolutamente salutar infância, em poemas repletos de sonhos dourados do sol da manhã que tanto cativam o filho de D. Carmelita. Se não, comprovemos no poema “O meu jeito menino de ser’:

Como um veterano ator ancião sem texto nem direção,
Surpreendo-me qual menino aprendiz a cada santo dia.
Ainda sigo a girar pião pelas manhãs da cor de açafrão,
Sigo a erguer castelos de sonho ao soprar da tarde fria.
Ainda sigo a preludiar a invernia pelos estios do sertão,
Sigo a empinar arraias pelo céu nublado do além-mar,
Sigo a garimpar afetos pelo horizonte cinza do coração,
Sigo a cavalgar a solidão da brava madrugada sem luar,
Sigo a dourar meu olhar ao luzir da infantil imaginação.

Como Proust, que, em seu livro autobiográfico, lança mão da peripécia de utilizar-se do personagem Charles Swann, Diogo Fontenelle viaja pelas translúcidas imagens que marcaram sua infância, adolescência e idade adulta, transformando Lampejos em um livro autobiográfico que eu diria obra completa sem mais necessidade de outros números pósteros, não fosse pela eloquência de um Dioguinho que passa a impressão de ser capaz de produzir por toda a eternidade poesias da mais simpática e cativante semeadura. 

À maneira Proustiana, Fontenelle nos brinda com reminiscências que tratam da mesma solidão que sofreu o bardo francês nos já idos anos finais do século 19. Observemos para uma análise mais comparativa “Fora do tempo, dentro do meu tempo”:

Vivo à mercê das forças de encantamento magistral.
São coisas sem raízes que me salvam da rude solidão,
Coisas fora do tempo, mas dentro do tempo pessoal,
Coisas fora da razão, mas dentro da bela imaginação.
É o olhar inalcançável de uma criancinha adormecida
Que me ilumina ao encontro de centauros e dragões.
É o vagalumear inalcançável de uma estrela foragida
Que me acolhe ao tanger de sinos, violinos e violões.
É o meu coração sonhar adentro em sempre partida.

Proust recorda a infância através de madeleines molhadas em uma simples xícara de chá, que o transporta para Combray, uma pequena vila que frequentava quando criança. Já as lembranças do menino Dioguinho nos remetem ao seu bairro de infância, o Parque Araxá, de maneira singela, porém bela:


O meu bairro Parque Araxá
Para Juracy Mendonça, um sempre menino do Parque Araxá

Era a Fortaleza pequenina de uns cinquenta anos atrás,
O Parque Araxá era o bairro classe média de bons ares
Com chalés ajardinados de flores boa-noite da cor lilás,
Ruas estreitas e incertas salpicadas de verdes pomares
A nutrir risonhos canteiros de rosas e frutas da estação.
Foi-se o meu Parque Araxá da Nossa Senhora das Dores,
Com as procissões de junho e anjos de asas de algodão.
Esse bairro foi batizado por sua água cristal sem odores
E ficou assim, sempre encantado no meu infantil sonhar
Entre as lembranças de avozinhas a fiar rendas brancas,
Entre os pregões matinais dos verdureiros a cantarolar,
Entre as benzedeiras a curar bebê com orações francas.

Caso algum purista veja exagero de minha parte ao “comparar a obra de um monstro da Literatura Universal com a de um mortal cearense”. Recomendo ler o restante deste artigo para conferir que muitas são as características comuns entre os dois, presentes na arte de Fontenelle, com certeza decorrentes das suas leituras aprofundadas da obra de Proust. 

O memorialismo, por exemplo, é definitivamente o campo dos sonhos dos escritores aqui em questão. Vamos deixar de lado, por enquanto, as recordações infantis para nos deter em outras questões mais aprofundadas da mente humana, pois, uma vez que, quando nada subsiste de um passado antigo, após a morte dos seres, após a destruição das cores, apenas o cheiro e o sabor - mais frágeis, mais vivazes, mais imateriais, mais persistentes, mais fiéis - permanecerão ainda por muito tempo, como fantasmas a fazer-se lembrados à espera sobre a ruína de todo o resto, carregando sobre a sua gotinha sem vacilações outra gotinha quase impalpável, chamada de edifício imenso da memória. E foi de um desses edifícios imaginários, que Fontenelle trouxe à luz Sonhos de menino, sonhos de hoje:


Os sonhos de menino rasgavam a noite rumo ao dia,
Os sonhos de hoje rasgam o dia rumo à noite serena
Com o apiedado Senhor a velar a eternidade fugidia.
Sonhos de menino bailavam no jardim qual açucena,
Sonhos de hoje são as rosas idas em livros de poesia.
Os sonhos de menino anunciavam luz de primavera,
Sonhos de hoje tangem perfumes suaves do poente.
Sonhos de menino e de hoje encantam a atmosfera,
Norteiam as frotas à luz do farol de poesia clemente.


Em busca do tempo perdido – No caminho de Swann, Proust trata, principalmente, da memória, da família, do amor e de todos os sentimentos. Uma vez para que Combray era um lugar muito triste, assim como as suas ruas, cujas casas construídas com pedras enegrecidas da região, precedidas de degraus exteriores, encimadas por frontões que faziam descer a sombra à frente delas. Eram tão escuras que era preciso, mal o dia começava a declinar, erguer as cortinas nas salas. 

Não podemos deixar de atentar nossos leitores sobre o fato de ser Charles Swann o alter-ego do próprio Proust, peripécia de que Fontenelle se vale por várias vezes em seu Lampejos, quando se faz criança a rememorar as brincadeiras e fatos – corriqueiros ou não – de sua infância. Como Swann no capítulo que trata de seu amor por Odete, Dioguinho relembra amores antigos entre cartas e camafeus de outrora:

Meu outro eu

Engavetadas no ébrio criado-mudo,
Tropeço em velhas cartas de amor.
Eis outro mundo paralelo desnudo,
Sombra de mim mesmo ao sol-pôr.

Fui outro sem que ninguém me visse,
Fui outro além deste que sou agora.
Traí-me duas vezes por pura sandice,
Sou duas incompletudes sem aurora.

Outra característica marcante na obra de Diogo Fontenelle é a temática das cores, onde o azul é a cor favorita do nosso poeta, o que não subtrai seu apego às outras habitantes do arco íris. Sua verve pertence definitivamente ao lugar mais alto da atual geração de poetas cearenses. Uma vez poesia sempre poesia. Essa é uma meta de Fontenelle que às vezes passa horas a burilar seus versos de modo a deixá-los acessíveis aos menos dotados de veia poética sem, no entanto, pecar por falta de zelo e qualidade dos seus escritos. 

E são essas cores e suas nuanças que permeiam seu mais novo livro, onde ele passeia maneiro por entre suas reminiscências de homem-menino eterno a prelibar cada um dos versos e rimas escandidas. Analisemos os versos do poema que se segue para termos um pequeno exemplo do que nosso poeta costuma empregar aos seus versos:

Travessia pelo azul e pelo cinza

Voo pelo azul do tempo qual um dócil beija-flor:
Eis que estou no colo de minha mãe a cantarolar,
Luzente canto de ouro filigranado em doce amor.
Era um tempo de sonho no meu peito a marolar.

Voo pelo cinza do tempo qual passarinho ferido:
Eis que estou febril na cama com mamãe ao lado
A orar para Santo Antoninho com amor reluzido.

Para atestar a influência da obra do autor de Em busca do Tempo perdido em Fontenelle, vamos considerar o excerto de Marcel Proust, no qual podemos notar como a luz e as cores dominam a pena do autor francês quando, “vestindo-se” de Swann, expõe sensações em primeira pessoa e na condição de narrador onisciente, as recordações pueris de um Proust visivelmente, tal qual Fontenelle, influenciado por sua mãe. Vejamos:

Em Combray, todos os dias desde o fim da tarde, muito antes do momento em que seria preciso me deitar e ficar, sem dormir, longe de minha mãe e de minha avó, o quarto de dormir se tornava o ponto fixo e doloroso de minhas preocupações. Para me distrair nas noites em que me julgavam muito infeliz, haviam inventado de me dar uma lanterna mágica, com a qual cobriam minha lâmpada, enquanto esperávamos a hora de jantar; e, à maneira dos primeiros arquitetos e mestres vidraceiros da era gótica, a lanterna substituía a opacidade das paredes por irisações impalpáveis, aparições sobrenaturais multicores, onde eram pintadas legendas como num vitral vacilante e instantâneo. Porém, isso fazia aumentar ainda mais a minha tristeza, pois a mudança de iluminação destruía o hábito do meu quarto, graças ao qual, salvo o suplício de me deitar, ele se me tornava suportável. Agora, não o reconhecia mais e sentia-me inquieto, como num quarto de hotel ou de um chalé, ao qual tivesse chegado pela primeira vez ao descer de um trem.

Ao passo sacudido de seu cavalo, Golo, cheio de um desígnio atroz, saía da pequena floresta triangular que aveludava de um verde sombrio a encosta de uma colina, e avançava, aos solavancos, para o castelo da infeliz Genevieve de Brabant. Esse castelo era recortado conforme uma linha curva que era apenas o limite de uma das ovais de vidro inseridas no caixilho que deslizava à frente da lanterna. Não passava de um muro de castelo e tinha diante dele um campo aberto onde meditava Genevieve, que usava um cinto azul. O castelo e o campo eram amarelos e eu não esperava o momento de vê-los para saber a sua cor, pois, antes dos vidros do caixilho, a sonoridade vermelho-dourada do nome de Brabant mostrara-o em toda a sua evidência..

Com essas breves assertivas espero ter elaborado uma abordagem livre dos excessos que costumam atingir a pena dos críticos quando o assunto trata de novas obras de amigos do quilate de Dioguinho Fontenelle. Acreditando ter sido justo nessa pequena análise comparativa a que me propus construir. No mais é desejar que Lampejos venha para ficar e se tornar livro referencial aos que aqui estão e aos que ainda virão a nascer. Vida longa à escrita de Diogo Fontenelle.

11 comentários:

  1. Surpresa maravilhosa testemunhar mais uma obra de meu querido poeta Dioguinho.Tulio Monteiro desfolha a alma e os sentimentos desse Diogo/ menino que conheci pouco mais que um menino. Uma análise não só do texto mas, nas entrelinhas, da alma do poeta.Ao mesmo tempo repassa informações preciosas sobre outros poetas, propiciando a nós, neófitos da literatura, adquirir, sem muito esforço, mais cultura e conhecimentos.

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    1. Jane Azeredo é fonte de água cristalina da Terra Mãe com o reluzir do olhar encantado pela alma sempre menina.

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  2. Túlio Monteiro é fonte de luz maior a nos guiar pelas profundezas da alma e pelas azuis alturas do Mais Além, é violinista a dedilhar mistérios profundos do mar e do céu mediante o azular do sonho e o acinzentar da realidade.

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  3. Reitero - após apreciação deste novíssssimo ensaio tuliano, desta feita referente à verve e à escritura do genial Dioguinhooo, meu amiiiiiiiiiigo- o quanto é salutar singrar as entreletras e entrelinhas que nos são fornecidas a cada publicação neste imprescindível meio cibernético de alta literariedade! Ler tais análises acerca da similitude entre Fontenelle e Proust e todo o universo memorialístico e poético pujante que detectamos em ambos.. é, no mínimo, um deleite fascinante! Imensameeeeente parabenizo estes meus dois amigos da Terra Alencarina e louvo seus influxos que nos instigam, incessantemente,a louvar nosso tempo, nossa existência... Em nome da purificação da Arte e da Vida!

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    1. Salve o Amigo Desconhecido de tanto conhecimento profundo, de tanto saber Mais Além!

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  4. Tulio Monteiro neste revoar pelo seu verbo-cantoria de rouxinol nos traz dimensões insuspeitas - em releitura do gênio Proust ao reluzir do aqui-agora! - para minha poesia de ex-menino a empinar arraias de encanto pelo telhado de um mundo desencantado.

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  5. Parabéns ao nosso escritor "cabeça chata" Diogo Fontenele pelo belo trabalho que humildemente, deu o titulo de Lampejos. Ja pensou o rapaz usando toda sua intelectualidade, pois so com "lampejos" ja nos honra com essa obra luteraria? Agora o que me entristece sao as comparações de Tulio Monteiro com um "tal de Proust" , sera que Tulio Monteiro esqueceu que nós CEARENSES somos incomparáveis....

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  6. Tem razão o nobre Clauton. Há no Ceará escritores do quilate de um Proust. No entanto, na literatura comparada sempre se faz necessário comparar os grandes do porte de Diogo com maiores do peso de um Marcel Pruost. (Túlio Monteiro).

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  7. Gosto da poesia do Diogo. Gostei do texto. Valeu!

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  8. Tulio Monteiro, o Teórico iluminado de Poesia que faz dos estudos profundo Encantamento e Magia? A ciência precisa ser despoetizada???

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