quarta-feira, 11 de julho de 2018

Vacilante - Chico Araújo*

Com cara de quem vira fantasma, eis que chegou trêmulo (justamente ele, supersticioso até a última raiz do cabelo), mudo (justamente ele sabidamente falador pelos cotovelos), olhos arregalados. Sua branquidão facial denunciava uma palidez inusitada, extraordinária de tão toda.

Sentou-se à mesa em que eu estava bem acompanhado de minha cervejinha gelada e me olhou fixamente como se não me visse. Estava como se olhasse para um lugar qualquer além daquele no qual nos encontrávamos, além mesmo das paredes, além mesmo de além das paredes e do universo a partir delas.

- Seu Luiz, por favor, traga um pouco de água com açúcar para esse apavorado aqui.

- Já tô levando. Parece ter visto coisa do outro mundo.

Seu Luiz entregou a água às mãos trêmulas. Uma parte do preparo açucarado caiu sobre a mesa, mas a maior parte foi ingerida pelo atônito. Seu Luiz e eu ficamos em silêncio, observando aquele ser tão indefeso naquele instante, perplexo, perturbado. Aos poucos ele foi voltando e, quase sem descoramento e tremedeira, falou em tartamudeio:

- E-E-Eu fui a-a-avi-sado.

- Avisado? De que?

Não falou de imediato. Pegou meu copo de cerveja, completou-o e verteu o precioso líquido em um único gole. Aí olhou menos aflito para o seu Luiz e, em resposta à pergunta feita, repetiu:

- Eu fui avisado.

- Avisado de que, homem de Deus? Desembucha logo – arrematou seu Luiz, aparentemente assumindo a perplexidade.

Antes de rezar a missa, encheu mais uma vez meu copo de cerveja e sorveu tudo novamente de uma só golada.

- Seu Luiz, por favor, traga outra, bem gelada, e outro copo, que esse aqui parece estar precisando de combustível pra soltar a língua.

O silêncio perdurou enquanto seu Luiz foi e voltou. Cerveja aberta, enchi o copo dele, também o meu e fiquei aguardando já um pouco ansioso. Ele olhou para mim, para seu Luiz, de novo para mim, até alcançar com a mão direita o copo disponível a ele. Dessa vez bebeu mais devagar e não tudo de uma vez. Pôs o copo na mesa. Ele olhou para seu Luiz, para mim, de novo para seu Luiz e, ainda malseguro, ensaiou uma fala:

- Um aviso. Quando eu estava quase chegando aqui, ouvi um aviso.

Seu Luiz começou a perder a muito conhecida pouca paciência:

- Se você não desembuchar logo de uma vez vou lhe botar porta afora dando chutes no seu traseiro.

Ele respirou fundo, buscando, talvez, um pouco mais de domínio sobre si, porquanto ainda instável. Tomou mais um pouco da cerveja e aí começou a narrativa:

- Eu tava quase chegando aqui, tava passando ali perto das árvores do nosso resto de floresta quando ouvi uma voz me chamando. Ou pelo menos pensei que alguém me chamava. Mas olhei pra traz e não vi ninguém. Aí me virei e comecei a vir pra cá de novo, mas ouvi de novo alguém me chamando, só que dessa vez a voz tava bem mais perto.

A mão dele deu novos sinais de tremedeira. Ele bebeu mais cerveja e despejou mais no copo. E continuou, sob a atenção minha e de seu Luiz.

- Eu me virei de novo e... ninguém! Ninguém estava ali, nem perto nem distante. Aí eu parei por um tempinho, olhando para tudo que era lado e nada. Ninguém nem perto nem longe. Aí eu cismei e fiquei na dúvida se corria pra casa ou se corria pra cá. Aqui era mais perto, então decidi correr pra cá.

- E correu.

- Corri logo não. Quando eu já estava quase dando a primeira passada, uma voz disse bem perto do meu ouvido:

- Prepare-se. O futuro está chegando.

Não deu pra segurar a gargalhada dupla, uma do seu Luiz, outra minha. Seu Luiz arrematou:

- Mas você tá no vacilo mesmo, hein? E distraindo a gente do nosso precioso tempo. Ora, mas tenha santa paciência! O futuro sempre está chegando!

Sem mais rir, seu Luiz saiu, resmungando, pondo-se por trás do balcão, agora recebendo fregueses. Eu fiquei, ainda rindo, pelo menos até perceber que ele me olhava sério. Fui investigar:

- Tá falando ajuizado?

- Não brinco com essas coisas. Escute o resto da história.

- Tem mais além dessa chegada do futuro? – zombei um pouco, enquanto ele manteve o rosto sisudo.

- Quando aquela voz falou no meu ouvido Prepare-se. O futuro está chegando, apesar do susto e do tremor, quis me voltar pra ver quem brincava daquele jeito comigo, mas não consegui me virar. Meu pescoço não se mexeu pra trás, eu só podia olhar pra onde eu já estava olhando, a porta daqui do bar do seu Luiz. Eu olhava pra cá, queria correr pra cá, mas não conseguia. Estava paralisado, totalmente preso por aquela voz. Aí ela disse outra coisa, também bem baixinho, no meu ouvido: O futuro é o progresso que muda tudo.

- Mas isso também não é novidade. O futuro sempre traz progresso e o progresso resume-se exatamente em mudanças. Algo deixa de ser, de existir, para existir outro algo. É sempre assim.

- Depois de dizer essa outra frase, meu corpo como que se livrou da prisão daquela voz que me fazia ficar parado, imóvel. Foi depois dessa liberdade que corri para cá, mas sentindo no corpo todo um vento frio e violento vindo de lá das árvores. Era como se o resto de nossa floresta soprasse em cima de mim aquela predição. A ventania fria somente parou quando consegui entrar aqui.

- Você está é vacilando, vendo coisas onde não existem.

- Diz isso porque não foi com você.

Olhei para ele agora sem nenhuma vontade de rir. Ele continuava sério e pude notar certo tremor rápido percorrendo todo o seu corpo, naturalmente viajando por toda a espinha. O rosto não estava lívido como antes, porém sua mão estava novamente trêmula, quando pegou novamente o copo para beber mais cerveja.

Me virei pro seu Luiz e apenas pude dizer:

- Seu Luiz, traga mais uma, por favor.

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*Chico Araujo - professor, poeta, contista e compositor, publica toda quarta-feira no Evoé! O título "Vacilante" compõe o Abecedário de Crônicas do Evoé e foi escrito entre 10 e 11 de julho de 2018. Leia mais Chico Araújo em Vida, minha vida...

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