O velho sentado na penumbra riscou o pires com o copo.
O garçom jovem foi até ele...mais uma dose!
(Ernest Hemingway – em Well-Lighted Place)
– O que foi, poeta? Está com nojo de mim? – Berrou-me asperamente o poeta Mário Gomes com sua argúcia de sempre.
Sempre de paletó e mangas longas, barba por fazer e livros e mais livros às mãos e sovacos, o poeta que morreu em um ano e foi sepultado no outro, fitou-me com aquele olhar esverdeado de sempre, saindo-se com mais uma de suas ácidas tiradas:
– Pare de me achar sujo e me dê um dinheiro, poeta. Pois se dinheiro trouxesse felicidade você estava morrendo de rir agora e não aqui, no velho Flórida Bar tomando essas cervejas quentes que o Bayma serve a troco de nada. Vamos lá que eu tenho pressa de chegar à Praça do Ferreira para as confabulações de sempre.
Não tinha jeito! Era puxar uma cadeira e ficar por minutos contemplando as sandices absolutamente cruciais do Mário. E olhe, menino, que o homem tinha livros dentro da cabeça, como se cirurgia tivesse feito e costurado lá por dentro coisas de deliciar-se comendo lagartas para excrementar borboletas. Tome conversa jogada fora com o talvez último dos grandes poetas de rua de Fortaleza: o velho Mário Gomes. Isso já no século 21.
E haja poesia junto com palavrões. Passasse um rabo de saia ele já ia cofiando o bigode e dizendo as paparicagens típicas de um poeta louco de amores desde os tempos em que cursara arte dramática na Universidade federal do Ceará para aprender como se achegar a uma bela mulher. Ficou pelo caminho o curso de ator em detrimento do autor de Lamentos do Ego e Violenta Orgia Universal, para citar apenas dois de seus livros.
– Olhe, poeta, já fui assim bonitinho que nem você, mas me enveredei por caminhos nunca dantes imagináveis. Você conheceu o “Barba Azul” e o “Buraco da Gia”? Não?! Pense em uns cabarés desgraçados. Lá peguei de tudo e de tudo passei. Conheci amigos cachorros e cachorros amigos. Aderi ao Fome Zero e estou aqui, sem nada. Sentenciou-me o homem em um rápido estalar de língua, acertando o copo de pinga exatamente no centro de sua goela. Mira perfeita. O velho olhou a praça através do copo, depois se virou para os garçons.
– Mais uma dose, disse, apontando para o copo. – O garçom que tinha pressa em vê-lo pelas costas veio atendê-lo já com meu consentimento de cabeça de que podia pendurar mais uma por minha conta.
A tarde sempre se tornava noite nos desvarios das sabenças de Mário. O cabra tinha cultura para dar e vender, mas não tinha o maldito vil metal e por isso mesmo era descartado das grandes rodas pelos escribas janotinhas sempre muito cheirosos e alinhados.
Com um tapa na mesa de metal, Mário levantou-se, balançou para um lado e para o outro, sungando as calças velhas para confidenciar-me: Poeta, mais uma vez obrigado... mas aquele trocado que você disse que ia me dar...olhe que dinheiro não traz felicidade...
Estava na hora de seu plantão noturno na Praça do Ferreira, onde morava. Foi a derradeira vez que troquei palavras com Mário Gomes. Dali para frente, nossos destinos foram outros, totalmente outros. Ele entrou para a eternidade falecendo no dia 31 de dezembro de 2014, sepultando-se no São João Batista em 1º de janeiro de 2015. Aos seus amigos e principalmente inimigos ele deixou o seguinte poema:
"Quando eu morrer
Irão distribuir minhas camisas,
Minhas calças, minhas meias, meus sapatos.
As cuecas jogarão fora.
Ninguém usa cueca de defunto.
Irão vasculhar minha gaveta.
Vão encontrar muita poesia,
Documentos e documentários.
Só sei dizer
Que foi gostoso viver.
Sentir o amor e proteção de minha mãe.
De conhecer meus irmãos, meus amigos.
De ver de perto as mulheres.
Só posso deixar escrito:
“Obrigado, vida”. "
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*Túlio Monteiro - poeta, contista, crítico literário, ensaísta, memorialista e pesquisador da literatura cearense.
Sem palavras para comentar.sem palavras para aliviar essa sensação de impotência por tê-lo visto pelas ruas, definhando e alucinado sem poder fazer nada!Fica a saudade do ser que conhecemos na lucidez e a dor da lembrança daquele ser demente. Poeta/escritor/contista,sua narrativa traz lágrimas aos olhos e aquele aperto no coração que é proprio na consciência das perdas! Mais uma vez, parabéns pela fluidez e domínio da palavra.
ResponderExcluirObrigado pelas maravilhosas palavras. Pena que não se identificou. (Túlio Monteiro).
ResponderExcluirFigura que admirei pela coragem de viver a vida no limite da liberdade e da poesia.
ResponderExcluirAo ler essa crônica, caríssimo Túlio Monteiro, me veio uma indagação existe Sentido para vida, ou uma vida pode ser sem sentido? Entretanto, quantos gênios da humanidade já morreram no ostracismo, em face dessa humanidade (sic) priorizar muito mais o TER do que o SER?
ResponderExcluirPrezado primo, como sempre você nos brinda com comentários ácidos porém acertados. Torna-se sempre um prazer saber que ainda existem pessoas como você, que se preocupa com os escritos desse pobre escriba. Obrigado. (Túlio Monteiro).
ResponderExcluirSalve, salve, Tulio Monteiro. Conheci o Mário. Ler sua crônica foi ter a possibilidade de ver novamente o Mario Gomes, tão acesa na memória sua figura, não só dos últimos tempos, mas de outros, quando ainda era festejado quando declamava seus poemas quase à entrada do São Luiz. Mais um belo texto. Agradeço.
ResponderExcluirEu que fico lisonjeado, Sérgio. Grato pela generosidade. (Túlio Monteiro).
ResponderExcluirOwwwwnntt... Meu suuuuuuuuper cronista poeticíssssimo Túlioooo Monteiroooo... Li cada léxico como quem descobre, aliás... redescobre um TESOURO! Este tesouro é, indubitavelmeeeeente, magistralmeeeeeente o nosso MÁRIO GOMES, o nosso Lima Barreto dos versos! O rechaçado por Tantos, o admiraaaaado por Outros Tantos! Tua verve, diletíssssimo Túlio, ao reportar tuas conversas e teus deleites mariogomesianos... Permitem-nos saborear daquilo que não tivemos, que não conseguimos, que talvez não tenhamos dado o real valor quando o tínhamos... E faz-nos refletir acerca das nossas prioridades, nem sempre as mais acertadas. Faz-nos repensar nos Outros Gênios que há nas outras Praças,nos outros bancos, desta urbe e de cidadezinhas ermas... E que não valorizamos! Eu NECESSITAVA DESTA IMERSÃO NA CULTURA QUE, POR INÚMEROS MOTIVOS, A OBLITERAMOS, e que FELICITAM-NOS EM DEMASIA!Sensacional texxxxxxto, meu Amiiiiiiiigo prosador... Eivado da sensibilidade e do fascínio da escritura que nos cativa para as próximas... que, em espera ansiosa, virão!
ResponderExcluirApesar de não ter assinado o comentário acima, Nádja Gurgel encanta-me por sua bela avaliação desse meu modesto texto. Fica aqui meu muito obrigado. (Túlio Minteiro).
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