quarta-feira, 16 de maio de 2018

Nada, nunca, nenhum... - Chico Araujo*

O despertador os fez abrir os olhos na hora de sempre de sempre de sempre... 5 da manhã. Sem galo. Sem quintal.

Mario e Maria se levantaram sem quererem dar atenção a qualquer cansaço que tivesse se escondido neles desde a noite, quando se iludiram de que poderiam enganá-lo.

- Bom dia.

- Bom dia, bem.

O selinho foi seguido de arrastados dos chinelos partindo de cada lado da cama os quais soavam como sonos ainda não despertos, talvez no assombro do sonho não concluído.

Mario, à padaria. Maria, ao café.

No reencontro, o encontro de olhares cúmplices e apaixonados. Nas bocas, o pão quentinho com manteiga se misturando com o café fresquinho.

- Que foi, Mário?

- Nada.

- Nada? Parece estar com olhar distante, um olhar que é mesmo o pensamento sabe-se lá em que lugar.

- Nada não. Só querendo adivinhar como será o dia, o que é impossível.

- Deixa acontecer. O que é pra ser será.

- Não é cem por cento assim. Às vezes conseguimos interferir e mudar algum acontecimento. Se não fosse assim...

- Que nada! Só impressão sua.

- Será?

Jovens ainda, ainda eram somente os dois. Quem saberia dizer o futuro? Não ousavam, ainda, pensar muito adiante, embora entendessem não puderem viver sempre os dois, sem a própria família formada.

Saíram de casa juntos, de mãos dadas, como ocorria toda manhã.

- Nunca mesmo conseguimos interferir? Os acontecimentos apenas acontecem?

- Ainda está pensando nisso?

- Nunca é uma palavra de difícil compreensão e profunda extensão, não acha? Nunca é igual a jamais e jamais implica negação, um “não” bem grande. Pelo que diz, é um “não” possivelmente pra tudo.

- Acordou exagerado hoje, hem?

- Será? Veja, se “nunca” impera, jamais sairemos da condição em que nos encontramos, ficaremos sempre – outra palavrinha chata de tão determinante – onde estamos. Nem avançaremos nem retrocederemos. O ponto e as questões se repetirão exatos em suas mesmices.

- Está mesmo inquieto hoje.

- É, acho que estou mesmo, Maria. Mas se estou assim hoje e não estava ontem, isso significa que o seu nunca não é nada permanente, ininterrupto, eterno. Então, minha reflexão quanto a nossa interferência nas coisas passa a ter sentido.

- ...

Chegaram ao ponto de ônibus de mãos dadas como ocorria em cada manhã. O beijo rápido. A despedida para lugares opostos, como em toda manhã.

De maneira síncrona, descem de seus coletivos, exata hora e meia depois de terem entrado neles. Mais dez minutos, aproximadamente, de caminhada, cada um chega ao local de trabalho. Tem sido assim diariamente, desde que morando onde moram após o casamento.

Não eram trajetórias opostas, caminhos contrapostos na vida decidida pelos dois para serem um. Naquele instante da vida em parceria, nenhum abria mão do outro, da companhia do outro, da existência do outro.

Nenhum, nunca, jamais, desejaria o nada em suas vidas compartilhadas. As discordâncias faziam parte do tudo a envolvê-los e tudo era o que almejavam um para o outro.

Sabiam: nunca abririam mão dessa vivência participada.
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*Chico Araújo - professor, poeta, contista e compositor, publica toda quarta-feira no Evoé! O título "Nada, nunca, nenhum..." compõe o Abecedário de Crônicas do Evoé e foi escrito em 15 de maio de 2018. Leia mais Chico Araújo em Vida, minha vida...

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