sexta-feira, 18 de maio de 2018

N de noturno e Noel, de nevoeiro e nadir, de navegar... - Kelsen Bravos

Estava a buscar o tema em N para esta nossa conversa do "Abecedário de Crônica do Evoé!" e, entre uma conversa e outra aqui e ali, solicitava alguma sugestão. Numa dessas, minha amada prima Vanessa Monte, por quem tenho um bem-querer profundo, exclama: "estava escutando ainda agorinha sabe o quê? Noturnos de Chopin!". Respondi tê-lo descoberto, na discoteca de meu pai, no comecinho dos 1970, e o ouvia durante horas a fio. Os noturnos me diziam muito de mim. Sou um solitário sorumbático, um romântico incorrigível. Confessei-lhe ainda que toda vez que escuto "Três apitos", de Noel, lembro de Chopin. Soturno e noturno se encontram em mim. Ela, então, arrematou: "Dá um negócio legal isso aí"

Pois passei o dia sentindo a memória reverberar em mim os acordes de Chopin. Neste momento, estou a escutar os seus Noturnos, com destaque às três peças dedicadas à Madame Camille Pleyel. Marie era uma virtuosa pianista por quem o compositor Berlioz - grande amigo de Chopin - se apaixonou e com quem noivou, mas ela se casou foi com Camille Pleyel. Não sei mais dessa história. A bem da verdade, ela não me importa. Os Noturnos em mim têm outra dimensão. Tenho mais a ver com a de um romântico poeta muito soturno, junto ao piano do juízo, a fazer versos à mulher desejada, como canta Noel em Três apitos...

Todo romântico tem um tanto assim de amor platônico. Se apaixona demais, deseja muito, viaja na imaginação, sonha mil encantos sôfregos ao ponto de se sufocar e, quando chega a esse nível de verdade em si, vai em busca da realização da paixão; mas, quase sempre, ao compartilhar o seu amor, não é correspondido. Daí mergulha em profunda melancolia. Se for poeta, cria em qualquer expressão. O músico, por exemplo, pode fazer noturnos. Menestréis feito Vinícius e Noel transformam suas lancinantes dores em canções.

Meu dna romântico vem de meu pai, um incorrigível sonhador. Está bem velhinho o meu melhor amigo. Passa o dia ouvindo - horas a fio - "música clássica", dorme ouvindo-as e acorda com elas. Chopin decerto integra o repertório. É comum surpreender-lhe o olhar iluminado. Quem busca superficialmente saber para onde ele olha, dirá que está a mirar o nada. Engana-se, pois ele olha para dentro de si mesmo, onde um universo de sonhos o satisfaz. Sua imaginação é poderosa e a força de seu pensamento, mais potente ainda. O longo tempo da solidão de marinheiro embarcado só lhe adensou a capacidade de sonhar. Hoje, entretanto; a fragilidade do corpo de noventa anos lhe tolhe o impulso de cumprir a máxima sartreana de que sonhamos para satisfazer nossos desejos e acordamos para realizar nossos sonhos. Quando penso, porém, encontrá-lo rendido por essa condição humana, apenas surpreendo - com raridade! - um aborrecido instante e, até nesses momentos, ao lhe perguntar o habitual como vai, pai, a resposta vem com um sorriso: "Navegando..."

Tenho transformado o "Navegando..." de meu pai em mantra. Tamanha elasticidade de consciência de si mesmo, ante as circunstâncias, tem a ver com a sabedoria do povo do mar, cantada nos versos de Paulinho da Viola: "faça como o velho marinheiro, que durante o nevoeiro, leva o barco devagar."

Vivemos um nebuloso tempo. As circunstâncias não são favoráveis. O país se esfacela, a Nação Brasileira tem seus direitos usurpados. A capacidade de realização de sonhos está oprimida, pois estirpada nos está sendo a esperança. Tenho paixão pelo socialismo como expressão democrática. A situação de nadir a que chegamos resulta da estratégia de quem gerou o nevoeiro e a turbulência; a nós, nos resta a tática de sobrevivência, resistência e desmonte dessa trágica realidade. Para tanto, devemos cumprir a sabedoria do velho marinheiro de levar o barco devagar e seguir, firmes e fortes, "Navegando..." Evoé!
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*Kelsen Bravos - professor, escritor, compositor, editor do Evoé!

9 comentários:

  1. Chopin, Noel, Vininha, Paulinho, noturnos, soturnos e românticos. Como isso me identifica. Naveguei na leitura e mergulhei no meu eu, esse romântico incansável. Maravilha, Kelsen.

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  2. Se não fosse tão cedo, abriria una Stela.

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  3. Quando abrir, se não estivermos juntos, amigo Pantico, mesmo sem mim brinda comigo brinda à vida, assim: EVOÉ!

    Kelsen Bravos

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  4. Navegar é preciso
    viver ñ é preciso

    estamos em águas revoltas e tempestades ferozes.

    resta-nos a Resistência e o alento das boas falas de amigxs q ñ nos afogam.
    Grande beijo, poeta do "meu bem querer!" Kelsen

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    1. Gláucia, meu amor! O nem o nosso navegar é preciso, pois, quando nos dá na telha, pulamos do barco para singrar a nado o nosso destino que é sempre bom porque assim o queremos e fazemos. É muito bom estarmos juntos. Evoé!

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  5. Eu, que somente vejo essa maravilha de texto agora - e agora é "já o instante" preciso -, digo também estar navegando... navegando... navegando... Mesmo sem a "Stela", Pantico, brindemos todos a nossa existência, capazes que ainda somos de sonhar e de navegar...

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    1. Meu Caro Amigo Chico, o melhor desse nosso navegar é que ele não é preciso, mas porque somos dispostos e mais ou menos preparados, dessa imprecisão não tememos. A Vida é mesmo incerta, mas o saber navegar, não. É muito bom cumprir rotas e mais rotas muito bem acompanhado. Aqui estamos a cumprir o itinerário do Abecedário das Crônicas do Evoé! É uma honra navegar com dois queridos - Túlio Monteiro e você, Chico - e com uma boa turma de internautas a singrar conosco esses mares que, mesmo dantes navegados, nos são novidades porque somos dialéticos desde antes mesmo de Heráclito. Evoé!

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