segunda-feira, 14 de maio de 2018

Nunca feito o tempo das águas de antes - Túlio Monteiro*

O burburinho macio começava leve sobre as telhas vãs do meu quarto de menino, lentamente aumentando até virar som de águas fortes, potentes, respingos frios se esgueirando pelas frestas caindo sobre meu corpo na cama q5uente, levando-me a traçar planos para o dia seguinte, onde, ao lado dos amigos, tomaria banho de chuva na rua, sob os beirais e biqueiras das casas vizinhas.

E como eu dormia tranquilo, embalado pela inocência da criança que minha mãe vinha cobrir nas noites de inverno de minha infância simples, mas tão cheia do sossego que hoje busco incessantemente e quase sempre não encontro.

Encantava-me o deslizar de águas velozes no chão da rua de terra batida em que nasci, os olhos sorrindo rumo aos barquinhos de papel que eu e os amigos montávamos com folhas arrancadas, às escondidas, dos nossos cadernos escolares.

Não havia trovões, relâmpagos ou reclamações de nossos pais que nos retirassem da rua antes que a chuva passasse. E mesmo quando ela partia, ainda havia tempo para os jogos de bilas ou de bolas; cheiro de terra molhada invadindo narinas infantes, crianças criadas e crescidas nos arrabaldes dessa Fortaleza que tanto amo.

Hoje, homem feito, o dia amanheceu escuro e carregado de águas depois de uma noite inteira de chuvas. Já não tenho mais a tranqüilidade do menino que fui, nem o teto forrado do apartamento que habito deixa passar aqueles respingos que traziam consigo a certeza da felicidade plena. Não há mais tempo para banhos, bilas, bolas ou barquinhos brancos.

Tenho que levantar! Vestir-me, entrar no carro e dirigir até o trabalho, sustento da família, homem da casa, como meu pai um dia foi. Circularidade.

Na saída, ouvindo o barulho entediante dos limpadores no pára-brisas, percebo que não mais me encantam as águas que agora deslizam furiosas pelo chão de asfalto da rua em que moro; um céu gris pressagiando que o menino de riso farto se foi e a chuva que cai nunca mais o trará de volta.
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*Túlio Monteiro – escritor, crítico literário, publica todas as segundas aqui no Evoé! O texto "Nunca feito o tempo das águas de antes" foi escrito em março do Inverno de 2008. Agora integra o projeto Abecedário de Crônicas do Evoé! Leia também Literatura com Túlio Monteiro

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