sexta-feira, 11 de maio de 2018

M da mão de Mistério e outros emes... - Kelsen Bravos*

à Fabíola Líper e sua "De Andarluz", com Tim Fonteles 

O motivo desta nossa conversa em M aconteceu na Praia do Francês. Deu-se quando, ao fim da década de 1990, estive a trabalho por cerca de uma semana em Alagoas. Fui, a serviço de uma instituição nacional de formação profissional, participar de um evento de Comunicação & Marketing em cuja programação constavam encontros para repasse de experiências,  oficinas de formação, planejamento, atividades sociais e culturais.

Atividades sociais e culturais sim, pois, nesses eventos, sói aliar-se o útil ao agradável. Em comunicação e marketing, aproveita-se de tudo e tudo se avalia. Desse modo garantimos pelo menos dois dias para nos deleitar em passeios turísticos por lá. Eita Brasil de beleza sem fim! De Maceió a Marechal Deodoro, onde fica a praia-cenário de nossa grata lembrança, é um pulo de pouco mais de vinte minutos.

O caminho esclarece o porquê do nome Alagoas, existem dezenas delas naquele pequeno estado. Duas das quais, verdadeiros lagos, porque gigantes e navegáveis, Mundaú tem 23km² e Manguaba, 34km². Da Praia de Ponta Verde, onde estávamos hospedados, à do Francês, praticamente se sai do berço do lago de Mundaú para o de Manguaba. Um trajeto memorável.

Também inesquecível é o passeio de catamarã à Praia do Gunga, no município de Roteiro, a 82 km de Maceió, nome também da lagoa local. A bem da verdade, a Lagoa do Roteiro é uma laguna, pois na maré alta, suas verdes águas misturam-se com as azuladas águas do mar compondo um verde profundo. A praia fica na ponta de uma península, bem no encontro das águas, depois da qual se tem aberta a imensidão do Atlântico.

Recomendo ir antes até o Mirante do Gunga de onde se divisa: a paisagem de vasto coqueiral, a laguna, o mar e o desafiante e poético horizonte. Tenho até hoje em mim o calor e o cheiro desse visual e o sabor das ostras fresquinhas, servidas em tabuleiros, na praia do Gunga, logo ao se descer do catamarã que vai até a beira areia, mas este é assunto para um outro papo, pois o acontecimento em M, objeto dessa nossa prosa, se deu mesmo foi nas areias da famosa Praia do Francês.

O paredão de arrecifes, marca registrada da afamada praia, resguarda das ondas bravias do Atlântico os banhistas das cristalinas águas azul-turquesa das piscinas naturais formadas entre ele e a areia. Festejei estar na praia num dia de semana, pois havia espaço para deitar e rolar, uma raridade aos sábados e domingos.

Extasiado com tudo que via, mesmo estranhando a falta do iluminado verde-marinho do Ceará, pois verde mesmo por lá só o bem escuro como o da Praia do Gunga, nem vi se aproximarem de mim aquelas mulheres de indumentária típica. Uma delas se dirigiu ao nosso grupo e perguntou quem queria saber o que o futuro lhe reservava. Bastava deixá-la ler a mão para ter desvelados o povir e os fatos despercebidos do passado. Houve breve silêncio com troca de olhares entre as pessoas do grupo e depois os nãos.

As negativas se lastreavam nos mais batidos chavões. "O futuro a Deus pertence...", "o passado é imutável"... e congêneres. Eu num tive nem tempo pro sim ou pro não. Carente do verde-esmeralda do mar da minha terra natal, fiquei hipnotizado pelos reluzentes olhos daquela cigana. Eles se mexiam a reger a vez da fala em resposta de cada pessoa. Eram sempre acompanhados de um sorriso estonteante a complementar o sereno semblante no rosto daquela linda e misteriosa mulher. Quando seu olhar se deparou com o meu, arregalou os olhos revelando por um átimo um clarão, um brilho verde e intenso, depois do qual apurou bem a vista apertando as pálpebras, mirando-me as pupilas e falou com um sorriso sedutor e sotaque arrastado: "o moço me dê a sua mão para eu ler, não custa nenhuma fortuna, não."

A voz parecia um canto de sereia. Em meio a uma repentina ventania, vi-me arrebatado por tamanha beleza, senti o calor de suas mãos acariciando as minhas duas mãos, no dorso e na palma, aproximou seu corpo do meu, encostou o colo do seu coração nas minhas mãos, sentou-se puxando-me de tal modo que fiquei de joelhos a sua frente. Ainda ouvi dizer-me: "O moço tem um M desenhado bem forte em cada uma das mãos."

Seria Yemanjá aquela andaluza? Ou Iansã seria? A fina areia branca se alaranjou em redemoinho-de-poeira ao sol vespertino e não tive mais dúvidas. Iansã. Do movimento de seus lábios, em vez de sua fala, ouvi uma vozearia estonteante, mas mantive-me concentrado na beleza morena daquela moura andaluza enfeitada de sol e halo esmeralda a exalar excitante perfume de mulher excitada. Senti-me agarrado a ela a dançar flamenco ao som de atabaques no lugar de guitarras.

Do quase transe, fui retirado pelo sopro sorridente da cigana em minhas têmporas. Sobre as linhas de minha mão não sei, não ouvi nada inteligível. Queria saber era do telefone dela, o endereço, se o meu desejo era seu, se queria brincar de casar comigo, essas coisas simples e sinceras que só os de feitio romântico conseguimos fazê-las verdadeiras... ela respondia, entre sorrisos, qualquer afirmação de talvez, quem sabe... e expressando reprovação marota com os olhos, me fez ver o entorno de nós.

Estávamos cercados. Acabara de voltar por definitivo, creio, do arrebatamento onírico. Fiz menção de pegar a carteira para lhe pagar o que não soubera. Ela depressa me conteve o gesto com um sussurrado "espera mais um pouco, Moço Bonito, se avexe não". E se afastou para, com as outras, já atender uma "multidão".

De repente, todos pareceram se interessar em saber do futuro... muitos, antes de entrar na fila, se me chegaram respeitosos a fazer reverência solene. Os mais chegados batiam no meu ombro numa expressão de "aheeê!..." De fato todos pareciam dizer que há tempos desconfiavam haver algo muito especial em mim...

O que aquela andaluza revelara sobre mim, que já anda nas cabeças e, pior!, já anda nas bocas e eu não sei?!

Deu a hora de ir embora e não consegui saber o que revelara e nem conseguira ainda pagá-la. Bati a mão na carteira e lá dentro do bolso ao lado dela havia um bilhete: "pague e pergunte a uma próxima cigana e terá, Moço Bonito, o mistério revelado..."

Até agora não encontrei uma cigana próxima. O certo é que desde aquele dia nunca me faltou um bom contato com o mistério e nem deixo de levar dinheiro na carteira para uma andaluza, afinal "não é nenhuma fortuna". Evoé!

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*Kelsen Bravos - professor, escritor, compositor, editor do Evoé!




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