quinta-feira, 23 de outubro de 2014

Conversa de Botequim: Ciclopes vesgos

No limite de extrapolar o "Sancte Socrates, ora pro nobis!", assim encontrei o poeta Vessillo Monte no Botequim. Cheguei bem depois dele. Tentei estimar o tempo verificando quantas garrafas de cerveja consumira. Meia cerveja, constatei. Estranhei a razão de seu aspecto tão, digamos, quase fora de controle. Ao pedir explicação, ele com as mãos fez um gesto para eu me calar. Escuta só, Bravos! - exclamou baixinho. Ouve essas mesas todas e me diga que não estou louco! Olhei ao redor. Diferente do costumeiro isolamento, estávamos no epicentro do animado alarido do Botequim. Das mesas vizinhas, selecionei escutar uma a uma. Concentrei-me na primeira delas, onde uma mocinha falava para as demais colegas em tom indignado:

... "Vocês estão cristalizando uma postura androcêntrica em cada gesto, em cada fala - e o discurso é um gesto, sim! Esse teu abraço e esse teu beijo, por exemplo, - apontava para duas que se afagavam - isto é discurso e revela uma forma de submissão fálico-castrativa, já dizia Simone de Beauvoir, [tomou um gole de cerveja], reforçando o que preconizava a grande stalinista Simone Weil, afiançada por Margareth Melies, que estudou a sexologia entre os povos primitivo-chauvinistas. [Sancte Socrates, ora pro nobis! - murmurava em súplica Vessillo Monte].  Uma reprodução de dependência inculcada na relação patrilinear dominadora. Vocês, nós todas, cara, precisamos nos emancipar dessa relação monogâmica e evoluir para a liberação bio-poligâmica, exogâmica, mais que matrilinear, fraterlinear igualitária e desoprimida, porque..."

Assustado e evitando saber o porquê dela para aquilo tudo, foquei a atenção em outra mesa:

... "Macho, e aí, perdeu a palestra do grupo de estudo, cara... Foi massa.... Essa tipologia aculturada toda veio abaixo. Ficou claro o quanto essa geração massificada tem de feudal, vivemos uma anomia estratificada em linhagens étnico-integradas nesse mundo globalizado, entrópico, morfogenético, morfostático, homeorrético, auto-amplificado e de anarcomarxismo retroativo. Nossa única salvação será uma imediata adoção da doutrina maoísta-pentecostalesa. Aleluia, companheiros!" - falou em êxtase com o efeito das próprias palavras. "É foda!" - anuiu o mais sóbrio deles. "Do caralho, meu!" - exultou um outro recém-chegado de um doutorado na USP.

"Sancte Socrates, ora pro nobis" - murmurava em súplica Vessillo Monte. "Gastei quase uma existência inteira lendo uma biblioteca todinha, oito mil volumes, em três línguas, além da portuguesa, para constatar que não adiantou nada! Kelsen Bravos, não entendo porra nenhuma do que esses efedepês estão falando! Eles parecem os vinte e oito volumes da enciclopédia Larrousse embriagados! Os verbetes estão todos embaralhados!" Pra mim, poeta, - comentei - eles conseguiram a proeza de ser ciclopes vesgos. "Sancte Socrates! Ora pro nobis!..."

Preocupado com a reação por advir daquele deplorável estado do poeta, ia sugerir sairmos dali, quando adentra o Botequim, o guru de todos cicloples vesgos. Os braços arqueados e as passadas de caubói em pleno duelo ao pôr do sol, harmonizavam-se com os coturnos e indumentária ao melhor estilo punk-Rambo, mas contrastavam com o rabo de cavalo contido em um ibérico cocó. "Hoje vou tomar todas! - esturrou. "Vou botar boneco muito! Estou mais anarquista do que o big brother Bakunin! Acabei de ler "A Utopia" que George Orwel escreveu em 1984!

Sancte Socrates! - exclamei. Ora pro nobis! - respondeu Vessillo Monte em litania, antes de definitivamente reagir...

___________________
Continua...


Nenhum comentário:

Postar um comentário