O primeiro ato ao chegar: inspecionou o ambiente, à porta ainda do restaurante. Avaliou a quantidade de pessoas presente - queria estar distante de qualquer possibilidade do mínimo tumulto ou barulho -, a disponibilidade dos garçons - não pensava pudesse haver demora em seu atendimento -, a disposição das mesas - intentava sentar próximo à janela, para alongar seu olhar pela avenida que bem perto dali se abria em estrada. Entrou. Sentou-se à mesa onde pensara ficar.
- Bom dia.
- Bom dia.
- O senhor é bem pontual.
- Embora sempre tente, nem sempre consigo. As nuances da vida.
- Verdade. Não temos controle sobre sua dinâmica.
- Nos iludimos, apenas, quando julgamos que temos.
- Trago o de sempre?
- Sim, por favor.
O bom dia desejado ainda valia, mas em verdade verdadeira dali a meia hora a tarde sopraria seus ventos mais aquentados. Pelo costume e horário, dali a meia hora o ambiente teria um pouco mais de barulho, suportável, pois estava onde queria estar.
- Com licença. Sua cerveja, "véu de noiva", como gosta.
- Obrigado.
- Vai querer algum papel hoje?
- Não, não. Hoje vim acompanhado de um caderninho.
- Então, me dê licença. Fique à vontade. Precisando, é só chamar.
- Combinado.
O "combinado" foi dito com um leve sorriso seguido de ligeira mudança na ação de olhar. O objeto da atenção agora era novamente a avenida-estrada, o sabor da cerveja preferida já aprazível.
De imediato não lhe chegou vontade alguma de escrever. No entanto, a avenida-estrada, como nunca antes, prendia sua atenção, convidava-o a fixar-se no olhar para ela. Ela como que o encantava para deter-se naquele olhar que, a princípio, não tinha clareza sobre o porquê daquela detenção intensa e extensa.
No movimentar-se da Terra, o Sol ia anunciando a passagem do tempo, impondo mais claridade em certos lugares, instaurando sombras em outros. O dia, assim, prosseguia, enquanto a cerveja era sorvida, o barulho no ambiente criava vida, o calor se intensificava. Sinestesias. Olhava e olhando saboreava não somente a bebida, mas a própria atitude de permanecer olhando, percebendo que os sons lhe tocavam.
- O senhor me dá licença?
- Pois não?
- O senhor está aqui sozinho já faz um tempo... Posso sentar um pouco com o senhor?
- Mas há outros lugares livres no recinto!
- É verdade - disse ela já puxando a cadeira e se sentando -, mas gostaria mesmo de conversar um pouco com o senhor?
- Mas por quê?
- Curiosidade. O senhor, sempre que vem aqui, chega no mesmo horário, senta à mesma mesa, bebe o mesmo tipo de cerveja, come a mesma comida - aliás, daqui a pouco o garçom lhe perguntará se já pode fazer o pedido - e, o que chama mais a atenção, o senhor sempre fica olhando pela janela, creio que sempre para o mesmo lugar.
- A senhora está me observando? Quem é a senhora mesmo?
- A proprietária. Costumo ficar naquela sala ali em cima, por trás daquele vidro escuro. De lá vejo todo o movimento, observo as pessoas, observo os funcionários... Na verdade, tudo o que é possível. O senhor sempre está só, sempre olhando pra avenida, pensando, creio.
- Gosto de ficar assim e aqui. Fico olhando para a avenida e para a sequência dela, a estrada. As estradas costumam levar e trazer, mas há momentos em que elas nem trazem nem levam. Ficam como se não houvesse sentido em seu existir.
- Mas isso não é eterno. Haverá sempre um momento em que o fluxo naturalmente retornará.
- Os instantes de depois jamais podem ser iguais aos de antes. Toda a paralização de agora não será recomposta adiante. A diferença entre um momento e outro deve ser bem observada, avaliada, para que não se tenha a falsa ideia de que o que vem depois é melhor. Nem sempre é. A existência carece de equilíbrio.
- O senhor fala como se aquela estrada a qual olhamos agora não fosse exatamente aquela vista pelo seu olhar. A cada nova palavra sua chega-me a ideia de outra estrada, outro caminho, talvez não tão concreto como nossa visão vê agora... Quem sabe algo mais subjetivo, numa dimensão simbólica não alcançável de imediato...
- Nosso cotidiano nem sempre é, de fato, objetivo. Há muitas entrelinhas, muitas metáforas em cada novo dia. O Sol é um só; seus brilhos, no entanto, apresentam matizes e a percepção deles dependerá da percepção de cada um.
- Tal qual a noite...
- Tal qual a noite... Tal qual falas de quem fala - as minhas falas, por exemplo -... Tal qual ideias de quem as tem e as divulga... Metáforas exigem interpretação; elas dizem muito, mas não diretamente. E há discursos criados no sentido de que as entrelinhas não sejam facilmente compreendidas...
- Há de se ter atenção aos discursos...
- Sim... Há de se ter atenção aos discursos...
Naquele ponto, o diálogo silenciou, enquanto dois copos de cerveja eram novamente enchidos. Agora eram efetivamente dois olhares perscrutando a avenida-estrada...
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*Chico Araujo - professor, poeta, contista e compositor, publica toda quarta-feira no Evoé! O título "Olhando com olhar que se alonga..." compõe o Abecedário de Crônicas do Evoé e foi escrito entre 16 e 19 de maio de 2018. Leia mais Chico Araújo em Vida, minha vida...
*Chico Araujo - professor, poeta, contista e compositor, publica toda quarta-feira no Evoé! O título "Olhando com olhar que se alonga..." compõe o Abecedário de Crônicas do Evoé e foi escrito entre 16 e 19 de maio de 2018. Leia mais Chico Araújo em Vida, minha vida...
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