sexta-feira, 25 de maio de 2018

Ó de orla, de ola e muito oh! entre um e outro... - Kelsen Bravos

A orla de Fortaleza me traz lembranças tantas. É tão linda a beira-mar, tão cantada em verso e prosa, a ponto de se ter a impressão de a metrópole se resumir ao cenário das velas do Mucuripe,  onde só sorrisos respondem entre luzes que se escondem, do farol novo encantado ou do velho apagado... mas num é mesmo, é bem mais! Entretanto, minha cidade vive a colocar à margem seus demais cenários e, pior, seus filhos e filhas.

Sobre essa marginalização, uma vez meu compadre, afilhado, amigo e amado irmão Lira, numa conversa vespertina à beira-mar, sob o verde do finado Cais Bar, onde hoje está o Centro Cultural Belchior, me disse que quem lhe disse o que me disse sobre Fortaleza ser uma "porca velha, aquela que devora os próprios filhos", fora o compositor Antônio José Forte, tão irritado estava com a Capital cearense o seu talentoso filho músico.

A origem dessa perversa porca velha está na sua histórica elite econômica e política, cuja formação lastreia-se no preconceito, na bajulação e na corrupção. Jáder de Carvalho, em seu roman a clef  "Aldeota", chama a atenção ao narrar como o Ceará, um estado com uma precária indústria manufatureira de algodão, conseguiu erguer na capital um luxuoso bairro só comparável ao da alta burguesia industrial paulista da época. Uma história de crimes contra a economia pública, por meio de sonegação, contrabando, evasão fiscal, conchavos políticos, bajulações, subornos, apadrinhamentos e catervagens afins.

O poeta se entrincheirou na ficção, para revelar a realidade, mãe da "porca velha" Some-se a isso uma índole autoritária e preconceituosa a imitar a metrópole da moda, no vestir, no "pensar" (na reprodução mal lida do pensar) e no agir caricato. O resultado nada mais é senão uma ridícula, grotesca e perversa repulsa a tudo que lhes lembre a origem cabocla, mestiça, misturada e verdadeira de filhos e filhas da terra.

Forjou-se uma cultura para dar sustentação a tamanha aberração social. Fortaleza ganhou a antonomásia de "Loura Desposada do Sol". Que loura o quê, cara pálida?! É morena, mestiça e ... quase... livre. A literatura mitifica uma elite cultural, a bem da verdade fútil e artificial; mas reproduzida e comentada de modo superficial entre os incultos poderosos. Raras são as honestas exceções, como Adolfo Caminha o foi. As expressões literárias, em maioria, estão eivadas de preconceitos e de um olhar de cima para baixo para o povo, com misto de mangofa, pena e certa simpatia pela ingênua índole do povo simples. Vemos  a fartura dessa mazela social confirmadas em cantorias, cordéis, dramaturgias, crônicas e contos  e romances cearenses, desde sua origem.

Não é à toa o autodesprezo do cearense por suas expressões mais legítimas, que faz, por exemplo, um fenômeno como Xico da Silva ser considerado um primitivista quando na verdade criou um estilo; assim bem o fez, de certa forma, também Francisco Magalhães Barbosa, o escultor Zé Pinto, hoje ignorado. Como ignoradas são as expressões legítimas de nossa Cultura Profunda. Nessa vertente, me orgulha ser contemporâneo de Nonato Araújo, Francisco Almeida,  Cizin (Cícero Simplício), Descartes Gadelha, Zé Tarcísio, pela memória de Sérvulo Esmeraldo, Leonilson, Aldemir Martins e Antônio Bandeira, Deus os livre da porca velha!

Não fora a construção de políticas públicas como a dos Mestres da Cultura, o etnocídio em curso já estaria por finalizar sua missão. Precisou termos os governos de esquerda de Lula e Dilma para se imprimir uma política de reconhecimento e valorização da cultura brasileira profunda. Por cá no Ceará, fomos exemplo para a formulação de certas políticas nacionais; tudo, agora, sob ameaça golpista.

Em Fortaleza, essa política de valorização da Cultura ainda não se realiza com o vigor necessário, apesar de todos avanços da gestão municipal, tudo ainda é incipiente. A continuidade de ações de políticas públicas de uma gestão para outra demonstra compromisso e respeito da atual administração municipal. Devemos aproveitar a oportunidade e dialogar para buscar construir o ideal. Temos espaços culturais muito bons, para além da orla, temos os Cucas, temos as praças (temos?), temos escolas, bibliotecas públicas municipais e comunitárias, temos ateliês, museus... e temos artistas em potencial latentes que precisam dialogar com outros artistas como os vivos já citados até aqui e mais gente feito Calé Alencar, Alan Mendonça, Carri Costa, Ricardo Guilherme, Izaíra Silvino, Fabíola Líper, Carlos Emílio Corrêa Lima, Gilmar de Carvalho, Pingo de Fortaleza, Parayba, Preto Zezé, Oswald Barroso, Cláudio Ivo, Klévisson Viana, Rouxinol do Rinaré, Rejane Reinaldo, Ivânia Maia, Pedro Gonçalves, Fabiano Piúba, Guilherme Sampaio, Mileide Flores, Evaldo Lima, Felipe Barroso, Cleudene Aragão, Túlio Monteiro, Sérgio Araujo, Lira Neto, Tino Freitas, Almir Mota, Gylmar Chaves, Silvia Moura, Pedro Domingues, Jane Azeredo, Elvis Matos, Ellis Mário, Ednardo, Rogério Soares, Rodger, Gladson Carvalho, Marcus Rocha, Luciano Bezerra, Fausto Nilo, Wolney Oliveira, Romeu Duarte, Rosemberg Cariry, Mário Mesquita, Tarcísio Lima, Jáder, Clébio Viriato, Ângela Escudeiro, Dora Andrade, Anália Timbó, Mona Gadelha, Ricardo Kelmer, Dalwton Moura... uma ação por uma Fortaleza Mestiça Amante da Sua Gente, que contemple para além da orla e una, e esplenda, por meio de políticas públicas de cultura, ciência, tecnologia, inovação e educação, seus cidadãos e suas cidadãs.

Por falar em orla e em educação e tecnologia, torço muito para que o Acquario se realize. Ele é  um investimento para além do turismo, será também um laboratório oceanográfico. Em um estado de extenso litoral, em um pais continental, é importante, é estratégico é fundamental investir em conhecimento e tecnologia marinha.

Ouvi dizer que vão colocar uma ola gigante na orla. Será um colosso a enfeitar o cenário do cartão postal da Fortaleza praieira e grande atração turística.  Sou meio resistente a essa miamização de Minha Cidade. Um amigo querido, um publicitário, me disse certa vez sobre isso "ah se fosse pelo menos como Miami, seria ótimo", lá tudo funciona. Tomara, então, aqui funcione também, mas do nosso bom jeito e que nós, os nativos, sejamos de fato os anfitriões e não os alijados da orla. Que possamos expressar todo o vigor de nossa cultura mestiça e dialoguemos, coluna ereta, de igual para igual com o mundo. Evoé!

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*Kelsen Bravos - professor, escritor, compositor

4 comentários:

  1. A PONTO DE...E NÃO AO PONTO DE! AO PONTO É COMIDA.

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  2. Fiquei perplexo, ao ponto de degustar teu texto grande escritor, que na minha opinião estava no cozimento correto, trazendo todos os ingredientes para uma saborosa leitura.

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  3. És um gourmet, Clauton, de refinado paladar.

    Que bom teres gostado.

    Kelsen Bravos

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