quarta-feira, 28 de fevereiro de 2018

Consilium fraudis - *CHICO ARAUJO


A cidade nem é pequena nem é metrópole, então é considerada entre mediana e grande. Não se encontra na região metropolitana nem está distante da capital – e isso é considerado muito bom, pois permite acesso rápido a ela, por via terrestre, em estradas muito bem pavimentadas.

O clima ali é muito agradável, também a tranquilidade impera, não havendo mesmo registro qualquer de ações de violência, dois fatos que têm levado algumas famílias a se mudarem para lá. Foi para lá que se mudou o deputado federal Carlos Lopes de França com sua família.

É nela que encontramos o “Bar do seu Luís”. Ostenta esse nome porque começou mesmo assim, um bar, um boteco pequeno onde os homens adultos do lugar se encontravam para doses de cachaça, cervejas, tira-gostos e conversas. Depois cresceu um pouco, pois seu proprietário, o seu Luís, tendo terreno disponível, ampliou o comércio para uma mercearia, criando dois ambientes distintos, mas interligados e com acesso um ao outro sem qualquer empecilho.

Já sabemos que o seu Luís, por natureza, não é daquelas pessoas em quem se reconhece facilidade no trato. No entanto, depois de tantos anos à frente da bodega mais conhecida e festejada do bairro – e mesmo da cidade inteira – era bem aceito por todos que a ela iam para compras diversas, incluídos produtos como açúcar, feijão, farinha, arroz, pão, biscoitos, leite, entre alguns outros, além das cervejas e cachaças. Sendo um local onde existia respeito, não somente os homens apareciam para as compras, também senhoras e mocinhas.

Eram muitos anos ali estabelecido e neles seu Luís viu e ouviu muita coisa envolvendo seus clientes. Contudo, arretou-se da vida numa certa tarde de quarta-feira, mês de março, no tempo exato da entrada, em seu estabelecimento, do deputado federal Carlos Lopes de França, vulgo Carlão, como ele mesmo havia declarado quando deu as caras pela primeira vez na bodega do comerciante.

Acontece que quarta-feira à tarde, em mês de março, sem haver feriado, é dia de deputado federal encontrar-se na Câmara dos Deputados, em Brasília, trabalhando em benefício do povo. Pelo menos era assim que seu Luís pensava, declarava a plenos pulmões, defendia diante de qualquer um que lhe aparecesse pela frente para falar alguma coisa sobre política. Ele era homem simples, de pouco estudo escolar, mas sabia muito da vida – dizia sempre isso com muito orgulho – e julgava situações e acontecimentos como poucos.

Pois foi só o deputado federal Carlos Lopes de França aparecer naquele meio de semana, em sua bodega, naquele horário – eram umas duas da tarde pelo que ele se lembrava – para ele, seu Luís, se encrespar, vestir seu conhecido manto de irritação e, naquele instante também se lhe fazer assanhar profunda desconfiança. Porque o político chegou na arrogância já conhecida, mas acompanhado da arrogância de dois assessores, de acordo com o apurado pelos ouvidos e pela atenta observação do mercador.

Carlos Lopes de França chegou com seu rompante e foi disparando:

- Boa tarde, seu Luís. Traga logo duas das suas cervejas sempre geladas e prepare aí um dos seus bons tira-gostos que eu e esses dois colegas vamos ter uma conversa possivelmente longa aqui. Seu estabelecimento não será mais o mesmo, seu Luís, depois de hoje.

Seu Luís ouviu essa frase enquanto levava as duas cervejas e os três copos para a mesa onde havia ficado o trio. Estava de cenho fechado, e mais cerrado ficou quando, após a frase, três gargalhadas ecoaram no ambiente, unissonantes. Ressabiado, ficou de olhos abertos aos gestuais daquela tríade e de ouvidos atentos às falas, sem distrair-se dos outros poucos clientes daquela hora.

- O negócio é o seguinte. Estou em conversas bem avançadas com o Grande e o meu nome deve ser lançado para aquela vaga que vai surgir lá mais em cima nas próximas eleições. Mas para isso vou precisar muito de vocês dois, muito mais do que já precisei antes. A ida para lá exige atenção, empenho, visões e ações diferentes. O trabalho será muito maior, mais intenso e por isso quero contar com vocês.

- Sabe que pode contar com a gente – disse um, antes de sorver um bom gole de cerveja.

- Sempre... Sempre pode contar com a gente – enfatizou o outro, após fazer descer garganta abaixo sua cerveja e deixar seu copo vazio, pronto para ser novamente enchido.

- Sei disso, sempre soube. Por isso os chamei. Vou falar somente do primeiro passo, por enquanto.

Silenciou quando percebeu seu Luís chegando com um farto prato de torresmo feitinho na hora.

- Beleza, seu Luís. Vocês dois vão comer um torresminho melhor do que qualquer um feito por mineiro. Seu Luís, pode trazer logo mais duas cervejinhas? E se puder preparar aquela mão de vaca que só se encontra aqui, já estamos a postos.

O vendeiro afastou-se do grupo meditando sobre como aquele deputado devia considerá-lo um idiota. Aquela bajulação toda só pra ter um lugar onde pudesse organizar tramoias. Mas por que logo no seu comércio?

- Vamos lá. O negócio é o seguinte: precisamos tirar de nosso caminho aquele outro lá que vai tentar se manter. O tempo dele vai terminar e ele vai querer ficar, é claro. No lugar dele eu também ficaria. A gente pode conseguir muita coisa estando lá. Dá muito prestígio. Mas se ele ficar, eu não entro. Então, ele não pode ficar.

- E como você vai conseguir despachar o homem? Você está sempre tão perto dele...

A pergunta somente foi respondida quando seu Luís afastou-se da mesa após dispor as duas cervejas pedidas. Já nem se davam contam de que, quanto mais baixo queriam falar, mais audível estava o que diziam. Entornaram rápido demais os primeiros copos.

- Pois é, tudo deve ser feito com muito cuidado, porque o que aparecer dele não pode me atingir também, entendem? Por isso chamei vocês, que são amigos especiais, pessoas em quem posso confiar. Eu não posso de maneira alguma aparecer em nada que seja ruim. Eu tenho de aparecer como pessoa boa, competente, responsável, que pensa nos eleitores etc., então tudo o que fizerem para ele não pode ficar relacionado a mim, deve me manter o mais distante. Entendem, né? Óbvio que uma vez eu estando lá vocês serão recompensados.

- Mas vir pra cá pra essa cidadezinha não vai atrapalhar seus planos não?

- Pelo contrário. Ela foi escolhida a propósito. Aqui é tranquilo, o povo é hospitaleiro e me recebeu muito bem. O povo daqui é simples demais, amigo demais, inocente demais. Nessa espelunca aqui estou bem perto das pessoas mais importantes da cidade. O prefeito vem aqui, sabiam? O delegado de polícia vem aqui; os médicos vêm aqui; todo mundo que importa na cidade vem aqui. É tradição. Esse bodegueiro – que não gosta de ser chamado de bodegueiro – talvez seja o cara mais importante desse lugar, porque todo mundo passa por aqui.

- E...

- E acontece que estou conhecendo todo mundo e todo mundo está me conhecendo. Alguns já me reverenciam. Daqui, já sei, nunca saiu um deputado nem estadual nem federal. Já estão me vendo aqui como possibilidade pra eles. Claro que tenho alimentado isso, sempre que posso. Depois de me mudar pra cá, aliás, por intermédio do prefeito – outro destacado inocente – passei a ter maior proximidade com o governador e, por meio dele, estou chegando mais perto de outras figuras importantes, decisivas. Se tirarmos aquele lá da disputa, aí será o paraíso...

Algumas gargalhadas ecoaram. Seu Luís olhava o grupinho com uma seriedade aguda. Os outros clientes bebiam, falavam, escutavam uma ou outra frase solta, não entendiam o todo. Seu Luís sempre atento.

- E a tua filha, tá melhor?

- Minha filha nunca esteve tão bem. Aliás, ela nunca teve nada. Vim pra cá por descobrir que aqui seria um lugar bem estratégico para as minhas pretensões – disse isso rindo. Minha filha quase nunca vem aqui. Estuda na capital, num dos melhores colégios; minha mulher, parceiraça que me apoia em tudo, vem quando eu venho e me ajuda com alguns contatos. No mais, eu precisava de um novo domicílio para alcançar o que agora quero e esse lugar serve como uma luva. Depois, se tudo correr a contento, “o céu é o limite”.

Novas gargalhadas se fizeram ouvir, sob o olhar censurador do dono do bar nem um pouco contente com a tramoia articulada ali, cujo entendimento lhe chegara pela capacidade de observação desenvolvida em muitos anos de vivência e pela escuta de trechos fundamentais da conversa. Olhava-os e refletia sobre como poderia impedir o retorno daqueles três ao seu estabelecimento. Nunca deveria ter aceitado ficar de cócoras com ele quando o conheci. Por enquanto, apenas pôde atender ao novo pedido, vindo de uma voz que começava se arrastar:

- Ô seu Luís, traga mais duas... E homem de Deus, cadê aquela mão de vaca saborosa?

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*Chico Araújo - professor, poeta, contista e compositor, publica toda quarta-feira no Evoé! O título Consiliu fraudis faz parte do Abecedário de Crônicas-Evoé! e foi escrito entre 15 e 17/02/2018. Leia mais Chico Araújo em Vida, minha vida...

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