sexta-feira, 23 de novembro de 2018





O PRIMEIRO CARRO DE FORTALEZA: MEMÓRIAS DE UM AUTOMÓVEL

Saímos aos pinotes, com uma barulheira infernal e soltando rolos de fumaça pelo pontiagudo calçamento da antiga Fortaleza. Quase púnhamos as tripas pela boca. As janelas enchiam-se de gente curiosa. Grupos formavam-se às esquinas. Corriam pessoas de toda parte. De repente, em frente ao Clube Iracema, o carro empacou, enguiçado, bufando. Rafael não lhe deu jeito. John Bernard sujou-se todo e nada conseguiu. Fui até à Praça do Livramento e arranjei, com um velhote que vendia água, dois jumentos que puxaram o automóvel até a garagem, com uns moleques que gritavam atrás: “Moço, me dá um tostão pra ajudar a empurrar”. (Gustavo Barroso).



Recordo que custei a polpuda quantia de 8:000$000 (oito contos de Réis). Mesmo sendo de segunda mão, fui importado dos Estados Unidos da América, em 1909, pelos senhores Meton de Alencar e Júlio Pinto, respectivamente sogro e genro, donos que eram da Empresa Auto Transporte Ltda.
A viagem no vapor de nome “Cearense” se deu sem nenhum alarde, tendo durado cerca de quinze longos dias entre maresias, sargaços e oxidações. Cheguei silencioso e sem funcionar adequadamente. Vinha eu para fazer história e nem sabia, pois iria trafegar de maneira um tanto precária, mas garbosa pelas únicas três avenidas de Fortaleza, onde não havia sinalizações e o que mais se via circular por elas eram bondes puxados a burros. Eram elas as Avenidas do Imperador, Dom Manoel e Duque de Caxias.
Relembro que meu trajeto entre a Alfândega, onde aportou o cargueiro “Cearense”, até às portas do Cassino Cearense (Cine Júlio Pinto), situado à Rua Major Facundo, número 64, se deu de maneira inusitada, uma vez que, sem funcionar, tive que ser rebocado por um jumento. E como somente minha estridente buzina funcionava juntamente aos meus faroletes, a população de então cismou porque cismou que eu era um veículo mal-assombrado.
Necessários foram vários dias até destrincharem o meu funcionamento. Depois de inúmeras tentativas, o dinamarquês John Petter Bernard e o Dr. Meireles conseguiram pôr-me em funcionamento. Entretanto, mal percorridos alguns metros dei a estancar, empacando de vez na Rua Formosa, bem em frente ao Clube Iracema, hoje sede da Secretaria de Finanças. Novo jumento e novo reboque até à frente do Cassino Cearense.
Como minhas andanças chamavam muita a atenção dos menos avisados, passaram a me testar durante a madrugada, onde quase sempre “dava o prego”, sendo necessário um desmancho quase que total, isso porque meu motor situava-se embaixo da lataria. A coisa era tão séria que em certa feita num desses desmontes lá pelas bandas da estrada de Messejana perderam a tampa do radiador. Fazer o quê se não havia loja de peças de reposição? A saída encontrada por Júlio Pinto foi, no mínimo, inusitada: anunciou nos jornais e outros periódicos da época que gratificaria generosamente quem encontrasse a tal tampa. O fato por si só gerou curiosidade da galhofa cearense e uma série de pessoas passou a procurar pela bendita, estrada de Messejana afora. Porém, como ninguém sabia a forma nem o tamanho da mesma, de tudo foi trazido às retinas incrédulas de Júlio Pinto e Meton de Alencar, sendo a mais curiosa delas um camburão de zinco totalmente enferrujado. Na encontrada a danada em questão, Peter Bernard improvisou uma. Ou seja, já se faziam, àquela época, as famosas gambiarras tão comuns nos dias de hoje.
E por tantos ajustes passei que praticamente fiquei irreconhecível. De tanto rodar pelas toscas ruas de uma Fortaleza descalça de asfalto, meus pneus se desgastaram. Também, não era para menos: até nos trilhos dos bondes me puseram a circular, tudo isso porque as bitolas dos mesmos eram exatamente iguais às de minhas rodas.
Resultado: nova troca e novas gambiarras. Sem pneus sobressalentes, os de borracha foram substituídos por rodas de madeira com aros de ferro, o que devidamente não foi bem aceito pelos transeuntes de então. Porém, continuei rodando nada incólume, diga-se de passagem. Mas se engana quem crê que percorri apenas as ruas daquela velha e saudosa Fortaleza. Não! Além de ir até Messejana, estrada do Arronches e seus arrabaldes, fui até Canindé durante suas tradicionais festas religiosas. Entretanto, é preciso esclarecer que semelhante viagem de mais de 100 quilômetros foi feita de maneira paulatina. Onde primeiro fui de trem até a cidade de Itapiúna e dali em diante por uma estrada carroçal.
Circulei, pois, por anos a fio. Sendo protagonista também do primeiro acidente automobilístico da cidade. Em uma barbeiragem, Rafael Dias Marques, na tentativa de desviar de transeunte, deu de frente com um muro, deixando apenas prejuízos materiais.












[1] RAMBLER: Em livre tradução do russo significa guerreiro ilustre. O Rambler 1909 – primeiro carro a possuir roda sobressalente – fabricado pela empresa americana Thomas Jeffery & Company.

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