segunda-feira, 16 de julho de 2018

O GRANDE XIS da Questão - Túlio Monteiro*

O título que leva este artigo me lembra um conto de fada que se passou não há muito tempo, e que desejo contar por muitas razões; porque acho-o interessante, porque me livra dos embaraços de um começo, e me tira de uma grande dificuldade, dispensando-me da explicação que de qualquer modo seria obrigado a dar. Há de haver muita gente que não acreditará no meu conto fantástico; mas isto me é indiferente, convencido como estou de que escritos ao correr da pena são para serem lidos ao correr dos olhos. (José de Alencar).

Olá, meu povo do bem querer. Dando continuidade ao abecedário do Evoé! cá estamos com mais uma tentativa de crônica para seu crivo semanal. Senão vejamos: eu bem que poderia discorrer sobre a Xuxa, mas como nunca fui por demais simpático à musa de olhos azuis, prefiro ficar por aqui mesmo no “X” da questão de como deve ser o corpo de uma crônica dentro dos padrões acadêmicos. Há quem diga que uma crônica não comporta um simples diálogo que seja, devendo a mesma discorrer apenas sob o foco da primeira pessoa do singular onde autor e leitor dialogam de forma clara e incisiva sobre a arte da boa verve.

Quando se fala em crônica, muitas são as questões levantadas na tentativa de enquadrá-la como gênero textual. O que é crônica? Quais suas características? O que diferencia a crônica do conto? É literatura ou jornalismo? Se após um século e meio de sua prática ao Brasil, ainda não se chegou a respostas definitivas, é porque a crônica é descompromissada demais para aceitar limites rígidos. Essa, por exemplo, não ambiciona acrescentar novas respostas àquelas já dadas, nem mesmo defender uma única definição como exata. 

A crônica nasceu na França, dentro dos jornais de sua época. Com o desenvolvimento da imprensa, passou a fazer parte dessas publicações aparecendo pela primeira vez em 1799, no Journal de Débats, em Paris. Quando surgiu, era uma miscelânea de ninharias publicada na parte baixa da página do jornal. Já na segunda metade do XIX, o folhetim deixa de ter essa cara e passa a ser chamado de crônica. Por hospedar-se no jornal, seu primeiro suporte, a crônica chega ao Brasil após o surgimento da imprensa brasileira, em 1808, com a vinda da família real portuguesa que impulsionou o País a modernizar-se para atender às necessidades da Corte de comunicar-se com seus súditos. Apenas em 1852, a crônica chegou aos jornais brasileiros pelas mãos de Francisco Otaviano, publicada no Jornal do Commércio, em uma seção chamada Folhetim.

As crônicas da segunda metade do século XIX eram muito parecidas com os textos publicados nos jornais franceses e, com o passar do tempo, as produzidas no Brasil foram ganhando características próprias e gradualmente se diferenciando dos textos com sentido documentário originados na França. Em terras tupiniquins, ganhou um caráter mais literário, fazendo uso de linguagem mais leve e envolvendo poesia, lirismo e fantasia através da pena de autores como Machado de Assis e José de Alencar, entre outros. Hoje os textos de Machado, por exemplo, nos parecem grandes demais para serem classificados como crônicas, o que se justifica pelos espaços ociosos nos jornais da época, no entanto, é uma situação muito distante de nossa atual realidade jornalística. Nas décadas de 1950 e 1960, afloraram cronistas brasileiros reconhecidos em nossa literatura como grandes escritores. Escrevendo para publicações como a Revista Cruzeiro e o jornal Correio da Manhã, os autores Rubem Braga, Raquel de Queiroz, Fernando Sabino, Paulo Mendes Campos, Carlos Drummond, Nelson Rodrigues e Manuel Bandeira, que, aos poucos, foram dando à crônica brasileira um teor mais literário em substituição ao tom jornalístico original. Com isso o gênero foi se transferindo das gráficas para o prelo das editoras reunido em coletâneas saborosas de serem lidas.

Mas afinal o que diabos é uma crônica, amados ledores e ledoras? Segundo o dicionário Houaiss: Crônica é um registro de fatos históricos em ordem cronológica em um pequeno texto geralmente baseado em fatos do cotidiano, sendo que o primeiro significado diz respeito à sua origem histórico-narrativa, anterior à chegada ao jornal. Já o segundo e o terceiro significados atribuídos ao termo tentam definir a crônica que buscamos aqui entender. No entanto se um verbete de dicionário fosse suficiente para explicá-la, a questão não estaria alimentando mais de 150 anos de discussões e teses em torno do gênero. Se buscarmos a resposta nos teóricos da literatura encontraremos, por exemplo, um gênero literário, de prosa, ao qual menos importa o assunto, em geral efêmero, do que as qualidades de estilo; menos o fato em si do que o pretexto ou a sugestão que pode oferecer ao escritor para divagações borboleantes e intemporais. Manuel Bandeira também entendeu assim a crônica ao se referir aos textos de Rubem Braga “quando tem assunto é muito bom; quando não tem, é espetacular”.

Mas afinal o que diferencia uma crônica de um conto? A única conclusão indiscutível aqui é que a linha que separa os dois gêneros é muito tênue. Fernando Sabino escreveu que "crônica é tudo que o autor chama de crônica" e Mário de Andrade que “conto é tudo aquilo que o autor chamar de conto”. Diz-se sobre o conto que ele é mais ‘denso’ que a crônica, mas na prática não é possível medir tal ‘densidade’ e com isso alguns textos oscilam em diferentes classificações. Algumas histórias (vamos chamar assim) de Luís Fernando Veríssimo, por exemplo, foram classificadas tanto como contos quanto como crônicas, é o caso de "Santinho", "Minhas Férias", "Relógio Digital" e "Sementinhas" que pertencem simultaneamente à coletânea O nariz e outras crônicas, da coleção Para Gostar de Ler e à coletânea de contos O Santinho, da coleção Literatura em Minha Casa. Ou seja, assim como a crônica, o conto também é um fragmento da realidade, um recorte. No entanto, no conto, o narrador onisciente revela ao leitor não apenas o que viu acontecer aos personagens, como ocorre geralmente na crônica, mas também os sentimentos desses personagens, suas sensações e suas opiniões a respeito da situação vivenciada. Se imaginado como uma fotografia, o conto extrapola da moldura.

Este mero escriba, por exemplo, deixou de participar de certames envolvendo crônicas e contos porque muitas vezes vi contos serem aprovados como crônicas que se passavam por formas exóticas de escrita. Ora, tenhamos paciência! Se usarmos esses pesos e essas medidas, até bulas de remédios podem ser consideradas crônicas dadas às suas características sui generis de se apresentar ao leitor mais ávido de informações. Risos que se transformam em gargalhadas.

Mas, afinal, como digerirmos e diferenciamos o gênero crônica do gênero conto? Deixem-me, pois, tentar, digamos assim, diferenciar um do outro de maneira didática, se é que isso é possível: O conto geralmente trata de uma situação que se desenrola sem pausas, onde tudo deve ser muito simples, sem grandes complicações psicológicas e sem peripécias. O seu foco é levar o leitor ao desfecho, que também é o clímax da história. Tudo nesse tipo de narrativa se passa em um tempo curtíssimo, são apenas algumas horas ou alguns dias. Já a crônica trata do cotidiano, mas o reveste de fantasia. Normalmente é uma narrativa leve, breve e de fácil digestão, afinal deve ser digerida por todo tipo de leitor, pois apresenta fatos que tornam a leitura interessante, como novidades, surpresas e assuntos variados do dia a dia das pessoas. A crônica também pode trabalhar com o humor, propondo uma análise crítica de alguma situação por meio da ironia. Podemos encontrar várias crônicas em jornais, sendo o meio jornalístico um dos modos mais importantes de divulgação das crônicas.

A crônica, na maioria dos casos, é um texto curto e narrado em primeira pessoa, ou seja, o próprio escritor está "dialogando" com o leitor. Isso faz com que a crônica apresente uma visão totalmente pessoal de um determinado assunto: a visão do cronista que pode ser considerado o poeta dos acontecimentos do dia-a-dia. 

Já o conto é a forma narrativa, em prosa, de menor extensão (no sentido estrito de tamanho), ainda que contenha os mesmos componentes do romance. Entre suas principais características, estão a concisão, a precisão, a densidade, a unidade de efeito ou impressão total, onde o mesmo precisa causar um efeito singular no leitor; muita excitação e emotividade.

Fica difícil, amados, dar-lhes um ponto final aos questionamentos desse “X” da questão. Uma vez que os debates sobre o que vem a diferenciar uma da outra pouco nos é afeito. Deixo, porém a minha visão do que venha a ser crônica dentro dos padrões estéticos que me foram ensinados em meus anos de acadêmico de Letras: crônica, no meu entender, não suporta os diálogos maçantes que o conto possui, tendo que ser ela – como já os vislumbrei em crônicas passadas – uma escrita de tiro rápido ou fast shot quando nos remetemos ao inglês.

Eu, particularmente, tento bater bola nos dois gêneros em questão. Confidenciando-lhes que quando logrei êxito máximo no 2º Prêmio Ideal Clube de Literatura, no ano de 1999, onde a categoria era crônica o fiz com um conto de minha autoria intitulado "Dois dedos de prosa com Graciliano Ramos". Ou seja, driblei os acadêmicos de plantão com a velha história das bulas de remédio.

Sem querer encerrar o assunto, meus caros, minhas caras, detenho-me por aqui, certo de que deixei mais dúvidas que respostas. Afinal, esse é o grande mote que move os moinhos de um cronista: o de apresentar sem mesmo ou nunca apresentar. Saudações literárias.

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*Túlio Monteiro - escritor, ensaísta e crítico literário.

4 comentários:

  1. E que se façam contos, que se tornem crônicas. E que cronistas sejam confundidos com contistas. Mas que ao final, algum trabalho literário seja apresentado para curar a enfermidade de um País doente de cultura e sem o hábito da leitura.

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  2. A leitura é a cura para todos os males, nobre Clauton. Mais uma vez obrigado pela generosa opinião. (TÚLIO MONTEIRO).

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  3. Mais importante do que classificar gênero literário é o fazer literatura, é a tessitura do verbal encantado, é ser o barqueiro do leitor para o além dos fatos. Isso Túlio Monteiro faz quer seja crônica, conto ou poesia. A questão é Fazer Literatura, seja em que gênero for. Moreira Campos dizia que toda escrita precisa ser Poesia para ser Literatura. Na dimensão do Moreirinha, digo eu: basta ter Beleza para ser Arte! Basta ter o Dedo de Deus! Diogo Fontenelle.

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  4. Como me encanta saber que um poeta do quilate de Diogo Fontenele ache poesia na tessutura de meus escitos. Obrigado, Deus. (TÚLIO MONTEIRO).

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