terça-feira, 17 de julho de 2018

WandysKarlos Ypysilone da Silva - Chico Araujo*

Pois nos lembremos de que houve, em 2009, a entrada em vigor do Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa, assinado, em outubro de 1990, em Lisboa, por Angola, Brasil, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Moçambique, Portugal e São Tomé e Príncipe.

A partir da assinatura, oficialmente fizeram-se constar, nos países lusófonos, como letras do alfabeto, o K (k), o W (w) e o Y(y). Com esse acréscimo, o abecedário a ser utilizado em documentos oficiais, empresariais e técnicos por tais Estados deixou de contar 23 letras para validar sua ampliação em 26. “Oficialmente”, pois oficiosamente, aqui por nossas plagas, tais letras já eram de vasto uso como componentes naturais do idioma.

Tanto que, além do uso delas em termos técnicos e estrangeiros previstos, principalmente antropônimos iniciados por elas surgiram por aqui, nem sempre relacionados a nomes e expressões estrangeiras. E é sabida, porquanto cantada em prosa e verso, a criatividade de nosso povo.

Ora, foi sabendo das inserções em caráter oficial a partir de 2009 – antes não aceitaria, pois sempre atento às questões de legalidade – que Francisco José, nascido e criado no interior de..., deu de criar perturbação na existência da mulher, Francisca Maria. Isso porque resolveu trazer a lume uma vontade sua desde a primeira gravidez de sua Chica, pretensão que ela conseguiu calar durante muitos anos, quando se valia exatamente de chamar a atenção do marido para o fato de que batizar filho homem com aquele nome de sua aspiração iria contra as leis da língua. Contrariado, ele baixava a cabeça e engolia o desejo. Mas não o esquecia.

Assim, o ano de 2009 foi de abrir à larga o sorriso de seu Chizé. Sua Chica (e somente ele podia chamá-la assim) estava esperando o décimo descendente e todo mundo já sabia que seria mais um menino, estabelecendo a uniformidade entre feminino e masculino. O momento é agora – pensou ele quase gargalhando quando soube das mudanças em seu idioma.

Contudo, nada é perfeito. Então, a alegria dele não seria exatamente a alegria da mãe de sua prole; mas porque ela mais uma vez tentou mudar aquela ideia do marido, ele, do alto de seu vozerio de macho determinado a não permitir mais contrariedade, sem candura avisou:

- Mas dessa vez não se meta a besta comigo não, Chica. Agora eu posso e agora vai ser meu gosto. Vingando, o menino vai se chamar de acordo com meu querer.

Se a sua Chica não gostava nunca de bate-boca com seu ninguém, com Chizé menos ainda. Calou-se, e deixou mesmo passarem-se os cinco meses faltantes ao nascimento do mais novo rebento. Em silêncio, alimentava a esperança de conseguir impor mais um nome de inspiração religiosa, por tanta crença. Acreditou mesmo que Josué chegaria com saúde, repleto de bênçãos e tendo a aceitação de seu nome sem qualquer questão de quem quer que fosse.

No sétimo mês, porém, Chizé lembrou a mulher de que não se esquecera da decisão por ele tomada: logo de manhãzinha, bem cedo mesmo (exatamente às cinco e meia), depois do café tomado, cochichou no ouvido dela o nome por ele escolhido para o filho. Francisca Maria estremeceu. Calou-se, ruminando seu descontentamento.

No resto da manhã, até a hora do almoço – o hábito dessa refeição naquela família levava-os ao comer exatamente às onze e meia, depois que a filharada mais velha retornava da escola e Chizé chegava do seu árduo trabalho –, sua Chica resmungava pelos cômodos da casa:

- Mas será possível que meu homem não vai desistir desse nome?

Mesmo nas horas em que os dois mais novos – o segundo casal de gêmeos, esclareça-se – choramingavam suas mamadeiras, semblante fechado, taciturna, aquela mãe rezingava pela casa:

- Mas será mesmo possível que meu homem não vai desistir desse nome?

Dona Raimunda, uma das vizinhas que se autoproclamava a melhor amiga da família, sem que ninguém a contrariasse (também na casa de Chizé e sua Chica vizinho do bem não se anunciava, já era percebido dentro), flagrando um balbucio da amiga, indagou sem sutileza, pela proximidade e hábito:

- Tá doida, Francisca Maria? Deu pra falar só, foi?

Aquela progenitora, plena de inquietação, não expôs detalhe:

- Tava era cantando aqui pro Josué, pra ele ir se acostumando com a minha voz.

- E já tá certo, é? Vai ser Josué mesmo? Tu conseguiu de novo?

Francisca Maria não encontrou disposição para ampliar diálogo com a Dona Raimunda; apenas deu um sorrisinho meio sem graça, mas a vizinha não alcançou a falta de convicção da melhor amiga dela.

O almoço mesmo só teve o barulho da filharada, marido e mulher cada um em maior mudez que o outro, por assim dizer, pois ambos estavam em silêncio por igual, embora um em sonhos, ela em tormento, o qual se ampliou logo após o esposo empurrar o prato e liberar seu arroto, porque se levantou da mesa e, passando ao lado da companheira, cochichou, pela segunda vez na mesma manhã, porém já quase no início da tarde, o inquietante nome do décimo procedente. Foi um assombro e um estremecimento imediatos. Francisca Maria não gritou, não discutiu, não contradisse aquele pai. Guardou-se em seu silêncio.

Dali a pouco, enquanto lavava a louça, pediu a Nossa Senhora dos Aflitos:

- Ó, Senhora, olhai por mim em meu sofrimento; fazei com que Chizé não fale mais comigo desse nome esquisito pro nosso derradeiro filho. Um pedido e algumas lágrimas.

No final da tarde daquele dia, voltando da labuta para casa, e mal nela entrando, Chizé mirou a senhora e quis dizer alguma coisa, que da boca não saiu. Beijou-a na testa, como de costume, e foi logo ao banho.

Daquele final de tarde até o nascimento do último herdeiro das poucas posses, nenhuma pequena frase em torno do nome da criança se formulou entre o casal.

O parto foi normal. O menino nasceu sob muitas bênçãos e com muita saúde. Francisca Maria, descansando, caiu no sono, logo após ver o filho, aconchegá-lo no colo, acariciar seu rosto, sorrir para ele numa alegria materna intensa e única.

Horas depois, acordou sobressaltada, como que desperta de um pesadelo. Olhou pelo quarto até dar com a cara do marido, sentado, tranquilo, com um sorriso maroto e vitorioso não somente nos lábios, mas em toda sua expressão. A mulher arriscou:

- O que foi, Chizé? O que que foi que tu fez?

- Nada demais, não, minha Chica. Sou apenas um homem que realizou seu maior desejo.

Já faz um tempinho que esse fato se deu e o casal continua em casamento, que Chizé e Francisca Maria juraram votos até a separação por morte. E asseguro, até vivem bem.

O único problema em torno deles parece ser não saberem bem – nem ninguém que os conheça – como chamar o décimo filho. Alguns parentes, amigos e vizinhos, simplificando a situação, entenderam de tratar o menino apenas por WK; outros, pensando ser melhor, acrescentaram o Y na forma de tratar.

Em casa, Chizé e Francisca Maria optaram por algo que entenderam não ser causador de desavenças: ambos chamam aquele filho de da Silva e, a cada novo dia, instruem os outros a fazerem o mesmo.

Nessa família não se pensou na existência de mais nenhum rebento.

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*Chico Araujo - professor, poeta, contista e compositor, publica toda quarta-feira no Evoé! O título "WandysKarlos Ypysilone da Silva compõe o Abecedário de Crônicas do Evoé e foi escrito entre 15 e 16 de julho de 2018. Leia mais Chico Araújo em Vida, minha vida...

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