quinta-feira, 28 de junho de 2018

Tá vendo? - *Chico Araujo

Eis uma frase que ouvi algumas vezes – muitas? – de minha mãe em minha infância: Tá vendo?

Na sequência não era incomum ouvir um “Eu avisei”, ou mesmo um “Eu não disse?”, ou, ainda, “Não foi por falta de aviso”. Então, havia sido uma queda de bicicleta (também, pra que isso de soltar as mãos do guidão enquanto se pedala, não é mesmo?), um joelho ralado, um arrancado de tampo de dedão no jogo de bola, sem calçado, em calçamento pedregoso... Mas, quando se é criança...

Pois bem. A frase quase inocente revelava, em sua proposição, certa premonição de minha mãe. Diga-se: não era somente a minha que a falava. De qualquer maneira, dita por quem a dissesse, quase sempre implicava algum acontecimento – e os contextos sempre semelhavam.

Pois bem. Não faz muito essa fala materna me chegou novamente aos ouvidos, porém pronunciada pela boca de outra mãe. Dava passos em uma calçada – essa rua tem calçada – e um garoto fazia acrobacias em seus patins na varanda de sua casa e, após girar duas vezes sobre si mesmo, ouviu a voz irritada:

- Tá vendo?

Junto ao choro iniciado, a irritação da mãe se aprofundava:

- O que foi que eu disse? Avisei, não avisei?

Não poderia ficar para conferir o resultado do acontecido, mas imagino o que possa ter se operado entre a queda, a fala, o choro e o levar a descendência aos curativos. Prossegui em meus passos. Com eles, a memória ativada falando em minha consciência.

Entre sorrisos invisíveis aos passantes em sentido contrário, motivados pela rememoração de traquinagens pueris marcadas pelas constatações maternas pautadas na expressão “Tá vendo?”, algumas reflexões me afluíram: uma delas tem assento na passagem do tempo e no aprendizado informal que ele possibilita às pessoas, às famílias, embora saiba não acontecer em todas elas essa transmissão, essa via de ensinamento ditado por uma tradição transitada dos antepassados aos descendentes.

Outra se ampara no fato de haver quase certo desgaste da expressão exatamente pela ação do tempo, uma vez que ele e sua passagem encaminham às sociedades mudanças em suas formas de ser, de pensar, de agir, acarretando, entre outros fatos, a eliminação de aspectos culturais tradicionais. Nos dias de hoje, nos quais vivemos sob os patrocínios de uma sociedade líquida, foi surpreendente ouvir da boca de uma jovem mãe a seu filho justamente o que eu ouvi em minha infância.

Uma terceira me chegou, fazendo, com certeza, meu semblante se alterar de alegre para sisudo, fechado, soturno, me fazendo proferir, enquanto ainda andava:

- Bem que dá vontade de dizer a muita gente: Tá vendo? Não foi por falta de aviso...

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*Chico Araujo - professor, poeta, contista e compositor, publica toda quarta-feira no Evoé! O título "Tá vendo" compõe o Abecedário de Crônicas do Evoé e foi escrito entre 27 e 28 de junho de 2018. Leia mais Chico Araújo em Vida, minha vida...

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