segunda-feira, 18 de junho de 2018

S DE SETENTA – 77 - Túlio Monteiro*

Hoje, leitores meus, resolvi narrar algo inusitado em minha já longa passagem por essas paragens de meu Deus. Sim. Decidi por revelar-lhes um lado meu torto de minha infiel existência: a jogatina. Mas farei isso de maneira lúdica e engraçada, uma vez que sinto-me devedor de um texto mais leve e menos ácido no tocante ao seu conteúdo.
Pois bem, como todo viciado em jogos, quer sejam eles da roleta aos da seleção brasileira de futebol, eis que em um dado momento envolvi-me com o jogo de bingos. Algo, confesso-lhes, realmente estarrecedor e complicado de explicar sem cair na decepção que é você se tornar dependente de um jogo de azar. Mas deixemos de lado as firulas para irmos ao que verdadeiramente interessa.
Houve, durante a era Collor, uma explosão de casas de bingo pelo Brasil afora. O que deixou enfeitiçada com a possibilidade de ganhos rápidos uma vasta gama da população nacional, nela esse seu fiel escriba. Tudo isso amparado por uma lei que beneficiava os times de futebol brasileiros.
E foram em noites e madrugadas afora, regadas a generosas doses de whiskie, que afundei-me no universo nada lúdico dos jogos até então validados pelas federações nacionais de futebol. Vi, senhoras e senhores, pessoas de bem perderem até o último centavo em madrugadas derrotadoras, algo assim de dar dó ao mais duro dos corações.
Entretanto, como todo bom cearense, sempre encontrei humor nos mais inóspitos acontecimentos. E foi em uma dessas noites-madrugada que, ao lado de um certo primo o qual pouparei a revelação de seu nome, parecemos quebrar a banca de uma certa casa noturna. Foi uma festa ver a cara dos gerentes do local notarem que dois dos seus mais ferrenhos frequentadores arrasavam a casa a cada vez que a bola setenta e sete rolava no painel. Sob os apupos e aplausos de outros viciados ganhávamos uma em cada três partidas, o que para os padrões de um bingo é desgraça certa.
Acreditem, observei, incontinente, a bolinha rolar famigeradamente um sem números de vezes. E nos sentimos eu e o velho primo – a quem dedico essa crônica – felizardos naquele momento. Tanto que eu logo comecei a dar em cima das moças que vendiam as cartelas, convidando-as para sair e até as pedindo em casamento. Risonhas com o fato de serem cortejadas entre a fumaça intoxicante do local e alegres por verem os donos do local puxarem os cabelos ante inusitado acontecimento. E tome whiskie e tira-gosto por conta dos prêmios recebidos. E haja cortejos e olhares de soslaio para as meninas do local.
Ébrios pelo porre homérico que avançava madrugada adentro, seguimos firmes em comprar cartões que possuíssem a famosa pedra 77. Eu olhava para o amado primo com ares de esnobe, certo de que – pelo menos naquela noite – sairíamos do local com os bolsos cheios.
Mas a coisa não parou por ali, não. À medida que ganhávamos novos falsos amigos se aproximavam da mesa para garantir o seu quinhão. Falsos amigos que, devido ao nosso elevado estado proporcionado pelo Gay-Lussac da carraspana federal que estávamos a consumir, eram bem recebidos e angariados com generosas séries de cartelas do bingo que, naquele instante, estava a perder a banca no sentido mais literal do vocábulo perda.
A noite já corria alta e eu já havia distribuído meu telefone para quase todas as garotas do local quando meu ilustre primo apagou de vez. Sim. Deitou-se sobre os cartões e começou a babar. Era sinal de que se anunciava o fim de uma farra agradável no que tange ao deleite de derrotar os que quase sempre derrotavam.
E lá estava eu, fiel escudeiro do erário adquirido quando veio o momento crítico da noitada: um carro zero quilômetro iria ser sorteado. Era praxe até então esse tipo de bingo-extra ocorrer ao fechar das portas. O que fiz? Deve estar se perguntando você que ora lê esse texto maçante (será?). Ora, pois, já que estávamos por cima da carne seca por que não arriscar tudo e quebrar a casa de uma vez por todas. Sairia dali de carro novo deixando que meu primo vomitasse o quanto desejasse nos bancos do automóvel.
E foi o que fiz. Enquanto tentava reanimar meu consanguíneo para que me ajudasse na apuração da tão sonhada partida – o que não consegui de maneira nenhuma – ia colocando séries atrás de séries nos computadores de ponta que eram reservados apenas aos apostadores de grande porte. Aquela seria a noite perfeita.
No entanto, aos que não dominam o linguajar dos viciados, existe um sujeito chamado “faro” que costuma ser inserido estrategicamente nesses locais com o único intuito de ludibriar os mais incautos. Foi o que aconteceu comigo e, por tabela, com o meu querido primo. Apostei o que havíamos ganho até então, pois tudo havia de ser decidido pela amada bola setenta e sete, houvesse o que houvesse.
Começou então a partida! Nervos à flor da pele e um parente debruçado sobre calhamaços de cartelas a babar incólume. Eu na árdua tarefa de verificar com olhos de lince os computadores à minha frente, não baixava a guarda por nada. E as pedras começaram a rolar trazendo com elas a doce ideia de que vencidos podem vencer vencedores. Rolando macias pelas serpentinas de aço inoxidável, as bolinhas iam ditando o passo-a-passo estranho dos iludidos.
O carro lá fora e as chaves do mesmo penduradas em local estrategicamente escolhido para deixar com os beiços lambendo imbecis do meu naipe. Com quarenta bolas qualquer sabedor das armadilhas da jogatina sabe que um bingo está armado. Também é sabido que com quanto mais cartelas se concorre mais chances existem de uma vitória. E foi bem assim: com 39 bolas eu estava armado para a batida. Pago uma cerveja – olhe outro vício – a quem adivinhar por qual bolinha fiquei dependendo. Sim. A querida 77!
Mas no meio do caminho tinha um “faro”. Tinha um “faro” no meio do caminho. A 77, por mais que eu torcesse, não sairia e naquele instante percebi que tinha sido ludibriado pelos donos do local que agora riam-se às minhas custas e às custas do primo bêbado feito um gambá, se é que gambás bebem.
Quem ganhou o carro? Claro que o sujeito por eles implantado. Um cara sisudo, com ares de senhor correto e todos os apetrechos de quem merece ser respeitado. Bateu o bingo, o desgraçado, com cinquenta e tantas bolotas. Restando-me apenas a resignação de sair do local a rebocar o caro consanguíneo e empurrá-lo – completamente bêbado e babado – no meu velho carro exaurido por anos de rodar.
Quanto às moças a quem repassei meu telefone certo de que era um marajá, nunca recebi uma ligação sequer. Fato que só contribuiu para minha resoluta desistência dos jogos de azar. E me curei realmente. A ponto de nunca mais frequentar as tais casas de jogatina sob pena de autocensura seguida de autopunição.


Quanto ao “Chibatinha”, alcunha pela qual até hoje é chamado o meu nobre primo, pouco escuto falar dele senão pelas redes sociais. Soube que ele, em uma nova aventura alcóolica, havia sido mordido por um cachorro raivoso. O que o fez ter que passar seis meses sem poder tocar em um copo de bebida que fosse, sob pena de uma intoxicação severa. Claro que com o passar dos seis meses a comemoração dele foi um novo e arrasante pileque. Coisas do “Chibatinha”.
Despeço-me aqui do “S”, amigos leitores, acreditando que desta vez acertei a mão e não os deixei chateados quanto aos rumos tétricos que tomam meus escritos de pena rápida. Presenteiem-me, portanto, com críticas no blog Evoé! Pois da desgraça alheia podem ser tiradas lições de moral alhures significantes. Hoje é domingo, dia do primeiro jogo da seleção brasileira de futebol na copa de 2018. Espero que ao lerem esses rabiscos tenhamos ganho da Suíça e dado continuidade rumo ao hexa. Se é que isso paga as nossas contas. Um forte abraço! ____________ *Túlio Monteiro - é poeta, contista, crítico literário, publica todas as segundas aqui no Evoé! O texto "R de Revolta" integra o projeto Abecedário de Crônicas do Evoé! Leia também Literatura com Túlio Monteiro.

12 comentários:

  1. Como todo relato de um ilustre escritor a ficção se faz presente. Porque o que meu estimado primo omitiu foibo fato deste primo dele também conhecido como "chibatinha" , (pra ser retumbante eu mesmo) tenha tido a sagaz ideia de separar parte dos prêmios obtidos dentro de um secreto bolso. Pois sabedor das desgraças que o vicio alimenta achei estranho o anuncio da partida extra do carro a cada bingo que fazíamos naquele estabelecimento como a nos induzir ao erro. Entretanto, nosso romântico escritor não relatou o convite que fez a locutora do bingo para jantar no Rio de Janeiro...e ainda exagerou ao afirmar que tinha capotado e estava babando. Enfim bela recordação de tempos que nao voltam mais..

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  2. Com relação a mordida do cachorro esse fato ocorreu muito antes da nossa aventura naquele bingo...e o tempo pasou tão rapido que hoje nem porres fazem mais parte da minha trajetória .

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  3. Que fique claro que foi Clauton que revelou-se "chibatinha". Bem que tentei protegê-lo em um codinome nada beija-flor. Bom mesmo foi ver em manifestações de alguns leitores no facebook de que esse foi um texto mais leve e despido do meu lado soturno de ser. Ao primo fica o agradecimento de uma noite pra lá de engraçada. Túlio Monteiro.

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  4. Estou com câimbra na barriga de tanto rir.

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  5. Não fosse a própria identificação do "Chibatinha" eu diria que é um excelente texto para uma esquete teatral. Como sempre, as palavras fluem em movimento e essa é a linguagem da comédia. Aguardo para montar, quem sabe para o próximo Festival de Esquetes de Fortaleza.

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  6. Odiei postar como anônimo! Sou Jane Azeredo, mas, não consigo concluir de outra forma!

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  7. Não fosse a própria identificação do "Chibatinha" eu diria que é um excelente texto para uma esquete teatral. Como sempre, as palavras fluem em movimento e essa é a linguagem da comédia. Aguardo para montar, quem sabe para o próximo Festival de Esquetes de Fortaleza.

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  8. Caríssima Jane, fico envaidecido pelo elogio e vou adorar saber que esse meu singelo texto pode se transformar em uma esquete en suas mãos. Um forte abraço. (Túlio Monteiro).

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  9. Carissima Jane, e é porque nem tudo foi revelado....quanto minha identificação não tem problema afinal recordar é viver...e representar também polonga a vida desse personagem....kkk

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  10. Carlos Gildemar Pontes20 de junho de 2018 às 18:25

    Que bom ter um espaço como este para se ler uma boa crônica. Na falta de Rubem Braga, Rachel de Queiroz, batemos palmas para este seguidor do grandes. Túlio Monteiro consegue desenvolver, ao modo dos mestres, uma crônica envolvente e bem escrita. Aqui vejo uma pitada do velho Moreira, numa ou noutra peripécia narrativa. Que sejamos brindados com excelentes textos como este semanalmente.

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  11. Caríssimo, amigo. Como tens se adiantado nos afazeres da lida! Afastas a letargia das segundas feiras com o frescor no enredo deste estilo que o consagro já "tuliano": o qual assegura agrado a quem ler pelo espírito jocoso e encadeamento narrativo para o clímax, mesmo já esperado, mas que nos prende até o desfecho situacionista de uma crônica observadora de seu tempo, mas não alheio às memórias.
    Cultuque-as sempre mais para nos oferecer pérolas em tempos de cólera em nossa esfera política e mal driblado em campo desses, também nossos, fajutos jogadores que estão distantes de levantar nossa moral!Aqui presente.Márcia Matos

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