segunda-feira, 7 de maio de 2018

M de mala, menino, Mara... - Túlio Monteiro*


O tempo passa em meio a momentos que fazem um dia monótono.
Você perde tempo gastando as horas de modo descuidado.
Perambulando por aí, em sua terra natal; esperando
alguém ou algo que te mostre o caminho.
(Time. Pink Floyd)




Levantou-se e largou o lençol de cambraia de linho ali mesmo. Não aguentava mais aquela relação com cheiro de vou embora hoje. Estava realmente chateado em estar com idade tão tenra caminhando a passos largos rumo a lugar nenhum. Parecia o papel de seda das arraias que ditosamente revoavam as paisagens da sua infância de menino magrelo a correr mundo pelas veredas do lugar onde nascera. Fino e quase transparente.

Precisava se desgarrar dali, soltar amarras e, à sota-vento, partir rumo de algo mais engraçado que baús, televisões, contas para pagar e caras amarradas. Amores de papel crepom soltando suas cores em copos d´água verdes, vermelhos, amarelos e azuis. Simplesmente não dava mais. Era isso e pronto, que fossem às favas os livros que o cercavam, cachorros, gatos, inclusive naquele instante mesmo pensava como era ser um gato-pingado em tempos de carpideiras e quimoeiros a flertar com a loira desposada do Sol...essa tal Fortaleza de Nossa Senhora da Assunção. Com seus fortes e rios entrecortantes: o Cocó de um lado e o Ceará de outro, Leste-Oeste de um barco há muito encalhado lá pelas bandas da velha Ponte do Ingleses. E riu um riso solto, quase louco e tenebroso de pensar como são as coisas. Enquanto os ingleses festejam até hoje o afundamento do Titanic, nós temos por aqui um tal de Mara Hope encalhado em um banco de areia sem servir para absolutamente nada.

Mas não arreparemos, não! Já que na voz da música, cantar parece com não morrer...tudo isso enquanto ele engomava mais uma vez a calça encardida que teimava em não desamarrotar. Tênis já tão caminhados com buracos nas solas. E lembrou Chaplin a comer solas de sapatos em cena de vida de artista. Dava não. Vestiu a calça, uma camiseta básica e saiu pela porta do lado com as manias que sempre o perseguiram desde criança. Transtorno obsessivo compulsivo, sapecou-lhe aos ouvidos um dia o médico de loucos que todos agora insistem em chamar de psiquiatras. Alcunha mais leve para quem tem problemas de autoestima e tem que tomar remédios controlados para não sair distribuindo sopapos pela rua afora. À noite reverteria a coisa. Daquela não passaria. Olhou para as malas e saiu.

Dia todo no mundo e mais um dia cinza por terminar. Chegou de volta, abriu o guarda-roupas e de lá retirou as peças que ainda lhe cabiam, todas com aquele odor de roupas com cheiro de mala. Estava decidido. Partiria antes que todos voltassem e assim o fez. Esqueceu a luz acesa e foi embora. Nunca mais retornou! O badalar do sino de ferro chamando os fiéis, de joelhos, para ouvir o encanto suave de suas palavras.
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*Túlio Monteiro - escritor, crítico literário, publica todas as segundas aqui no Evoé! O texto "M de mala, menino, Mara..." integra o projeto Abecedário de Crônicas do Evoé! Foi escrito em 2017 e publicado aqui, sob o título "Roupas com cheiro de mala, em 10.04.2017. Leia também Literatura com Túlio Monteiro.

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