sexta-feira, 4 de maio de 2018

L de Liberdade - Kelsen Bravos*

Minha sexta-feira amanheceu promissora, pois ao conferir as mensagens das redes sociais, logo vi no WhatsApp de meu amado irmão os versos de Cecília Meireles, no final do "Romanceiro da Inconfidência": "Liberdade é uma palavra que o sonho humano alimenta, não há ninguém que explique e ninguém que não entenda." Pensei em coincidências; elas, porém, não existem. Não, não foi à toa o meu irmão pautar meu dia logo cedo com a "liberdade", justo quando teria de publicar o tema em "L" neste Abecedário de Crônicas do Evoé!

Minha ideia era outra. Queria falar dos nomes das mulheres de minha família, da bisa Luíza Moura, da vó Luíza Bravos Monteiro, da mãe Lucimar, das tias Lenir, Leonildes, Laurisa, da tia Leléia (Ariléia), da minha companheira Lidiane Moura e filha Luísa Moura Bravos. Jogaria com os sentidos diversos de seus nomes a partir dos traços de personalidade e outros quetais. Lucimar, por exemplo, tem em si Luz (Lucis) e Mar, a luz do mar, o farol, estrela guia e porto seguro para o marinheiro com quem casou; meu pai bem sabe da Ilha dos Amores onde com ela gestou e formou sua progênie... Não. Nada disso! A postagem do meu irmão acabara com meu sonho nepotista. Estava eu preso à liberdade que todos entendem e ninguém consegue explicar.

Explicação mesmo de liberdade encontrei na filosofia, aliás, nem explicação é, trata-se da mais fundamental condição da existência humana: "O homem nasce condenado à liberdade", sintetiza Jean Paul-Sartre. Quem me conhece sabe o quanto  me importa esse conceito existencialista de liberdade. Quando o li, meu juízo deu um nó, jamais desatado. Ora se a liberdade é a nossa razão de ser, por que seria - e é! - uma condenação? Revivi essa questão enquanto me dirigia à casa de meu pai, o velho marinheiro. (Como vai, pai? "Navegando" - me responde com um fio de voz e um sorriso que desafia a negação da felicidade.) Nascemos totalmente dependente do outro, assim somos na infância, adolescência, adultícia e assim permanecemos até chegarmos ao - para usar uma expressão de meu amado pai - "ocaso de uma existência". Somos seres sociais, por isso estamos condenados à dependência da convivência, buscamos em vão nossa liberdade, cujo valor está em nos mover rumo a Utopia.

Depois de banhar meu pai e compartilhar prazeroso café da manhã com ele, olhando um bem no olho do outro, segui para uma reunião na Secretaria de Cultura. Na antessala do poeta Fabiano Piúba, vejo adentrar Fernando Piancó, ator, diretor teatral, produtor e gestor cultural, sob os cuidados de quem está o Teatro Carlos Câmara. Ao me ver, em vez de bom dia, declama "Ai que prazer não cumprir um dever./ Ter um livro pra ler / e não o fazer!..." Sim, Piancó estava ali a declamar "Liberdade" de Fernando Pessoa. Não há coincidências. Pensei. Ele declamou Liberdade no lançamento da XI Bienal Internacional do Livro do Ceará, e ajudou a tornar inesquecível aquele evento no palco do Carlos Câmara, em outubro de 2016. Disse-me que recentemente assim o fez também na inauguração da Biblioteca Comunitária das Quadras, convidado de seu conterrâneo, o cratense Ronaldinho Salgado, ser de luz de beleza intensa, jornalista e articulador cultural da Comunidade das Quadras aqui em Fortaleza. Piacó fez uma pausa e falou mais pra si: "Será que a meninada de lá, entendeu? Tomara que sim. Deve ter entendido sim. Se num entendeu está pensando." De liberdade todo mundo entende, difícil mesmo é explicar, Piancó...

Depois da reunião com o poeta Piúba, esticamos um pouco a conversa. Ele sempre gentil e atencioso - nem parece tão azafamado como é a sua agenda - deu cabimento a dois dedos de prosa comigo. No meio do papo, de repente, voz mansa, com os olhos a reluzir e sorriso a brilhar, me fez atentar para a música em coro vinda lá da Praça do Ferreira. "A ciranda que estão cantando... é de minha autoria!"

Pensei. A ciranda se dança em círculo. O círculo num tem começo e nem fim e nem saída. A ciranda não é de apenas um é de todos nós. A ciranda é uma manifestação de liberdade! Liberdade só pode ser concebida assim coletiva, de tal modo que a liberdade de um começa quando a do outro começa também, não tem fim, pois se há fim não é liberdade!

Saí dali com as boas palavras de nossa conversa e a alegria intensa, porém contida, do meu querido amigo Poeta, pela epifania de si mesmo ao ver-se Poesia plena reverberada pelo canto vindo da praça. Tudo em nosso breve diálogo teve o signo da liberdade, sobretudo, leitura e literatura que sempre permeiam nossas conversas. 

Leitura, Literatura, Letramento como signos de liberdade. Com essa premissa foi que cheguei à Universidade Estadual do Ceará, onde fui ter com o Grupo de Pesquisa Literatura: Estudo, Ensino e (Re)Leitura do Mundo, liderado por Cleudene Aragão. Tratamos de Letramento e da importância da literatura como espaço de cultivo do espírito livre dentro e fora da escola. Estávamos sendo benditos, conforme Castro Alves, a nos mover pela utopia de semear livros à mão cheia, para fazer o povo pensar, e cultivar a cada leitura a chuva que faz um mar chamado Liberdade. 

Não é coincidência. Não há coincidência. A ficha caiu. É o signo de nossa prioridade cidadã, vital. Estão a usurpar o nosso bem comum mais caro. Por nos ser cara e necessária, a Liberdade está a unir a Nação Brasileira, porque está sob grave ameaça. Mas nos une pela desgraça que faz assomar em mim, a lucidez e indignação do Millôr Fernandes, em Relatório da Segunda Sessão Plenária da Conferência sobre Direitos Humanos, em Bucareste, 1958: Escorraçada de toda parte, vivendo esfomeada, tendo que subsistir sem morada certa, apunhalada aqui, estrangulada ali, não desejada em verdade a não ser por uns poucos e loucos humanistas e revolucionários através da História, é ridículo se representar a Liberdade como uma mulher bela, um facho eternamente aceso na mão, os traços finos, a fisionomia tranquila e altiva. A Liberdade é um cachorro vira-lata. 

Os brasileiros, se somos livres, somos, pois, um cachorro vira-latas e a síntese de nós está injustamente enclausurada, ao arrepio da lei. Surreal situação a nos lembrar ser imprescindível ter bem viva a noção de enquanto houver um apenas de nós sem liberdade, todos estaremos sendo escorraçados, estrangulados, apunhalados, condenados a viver esfomeados, sem morada certa. A liberdade não existe em um só, é uma ciranda. Evoé!

_______________
*Kelsen Bravos - professor, escritor, compositor e editor do Evoé!

2 comentários:

  1. Caríssimo escritor, liberdade seria porventura efêmera? Afinal a primeira libertação humana já é do ventre materno...ai ficamos nós aprisionados nesse planeta tão injusto onde nós cabe apenas apreciar a "liberdade" dos outros seres como o voo dos pássaros e seus cantos, o ballet das nuvens com a força libertária dos ventos.... até a liberdade do "par romântico " sol e lua sempre a marcar encontros quase que impossíveis a não ser que ocorram eclipses...enfim..seria realmente liberdade a busca de nossas trajetórias..pois o tamanho do ser livre seria diametralmente oposto ao tamanho da prisão?

    ResponderExcluir
  2. Liberdade nos move a utopia, caro Claulton. És um poeta!

    (Kelsen Bravos)

    ResponderExcluir