quarta-feira, 2 de maio de 2018

Lutas e liberdades - Chico Araujo*

Há algum tempo sentara-se naquele banco de sua preferência. Segundo ele, do assento podia investigar o que incitava chama para suas reflexões, em busca de compreender o mundo e suas vicissitudes, as pessoas e suas nuances, seus matizes.

O amigo se aproxima, já prevendo conversa não tão comum.

- Faz tempo que tá aqui?

- É possível. Não sei precisar... Não percebi bem quando exatamente cheguei.

- A postura é a mesma, né? Tá aí observando, inquirindo, se perguntando...

- Não consigo ser diferente. Minha existência tá marcada por ser assim.

- E isso é bom pra você, né?

- Nem sempre. Viver em sociedade obriga contatos, diálogos, revelação de posicionamentos... Não sou muito bom nisso e certamente minha postura atrapalha minha vivência social. As pessoas, em geral, costumam querer respostas ao que perguntam; nem sempre, porém, querem aprofundar as questões, então observam pouco, indagam pouco – até sobre elas mesmas, dinamizando postura de autorreflexão –, acostumando-se a se contentar com saberes fáceis, muitas vezes superficiais.

- Você não se encaixa nesse vasto grupo.

- Também tenho minhas culpas.

- O mais comum em você é o não tão comum ato reflexivo.

- Essa é uma questão importante, porque quem se permite à reflexão acaba por se distanciar das outras pessoas, não exatamente por saber mais, antes porque o ato reflexivo exige algum silêncio, ausência necessária de diálogo fora do próprio ato reflexivo.

- Você é uma das pessoas que se distancia das outras. É muito fácil pra mim ver você com esse semblante de agora, com esse olhar de agora, um olhar que sugere profunda análise sabe-se lá de que. Só dá pra saber se você disser, se você permitir o diálogo, a conversa. Esse nosso momento aqui é raro, porque embora eu veja muito você, não trocamos muitas palavras, não compartilhamos, com frequência, ideias.

- Tem razão.

- Só isso?

- Na verdade, não. O que estou tentando “ver” é de que lutas vivem as pessoas hoje. Vivemos um momento histórico no qual se tornou imperativo diluir, dissolver tudo rapidamente, de acordo com interesses específicos impostos por quem tem poder de fazer isso.

- As mídias.

- Não somente elas, mas elas certamente. Eu posso estar agora tentando convencê-lo de algo em que acredito, sem que perceba. Meu discurso pode ser organizado para realizar essa façanha: seleciono palavras, emprego verbos, construo frases, configuro contextos para, como resultado, adquirir sua concordância quanto ao que penso. Se eu consigo, ganho, a partir de você, a possibilidade real de que minha ideia vai adiante, se propagando e reverberando, tornando-se algo marcante na sociedade. Se eu consigo convencê-lo, é certa minha influência pelo menos em parte do universo social, a ponto de ousar transformá-lo.

- Você está fazendo isso comigo?

- Reflita.

- Bem, sua fala não é inocente.

- Não, não é, mas você somente alcançará a profundidade dela quando – e se – se permitir refletir sobre ela. Essa atitude parece, infelizmente, estar se despedindo da existência de muitas pessoas, mas muitas mesmo, a ponto de gerar mudanças profundas nos modos de viver. Se não reflito, aceito mais facilmente muito do me é dito, muito do que me é vendido, muito do que me é apresentado como verdade, sendo mentira. Fico passivo, enfim, e essa passividade determina minhas maneiras de existir, de ser, com influência quase certa naqueles mais próximos a mim, também pouco questionadores, no entanto crentes em mim. Veja que eu e você também somos mídias, principalmente quando assumimos a ação de propagar ideias, mensagens, ideologias a partir de nossas crenças, desejando, inclusive, a adesão de outros às crenças nossas.

- Mas isso sempre fez parte do funcionamento das civilizações.

- Nem por isso devemos aceitar a situação sem qualquer questionamento, sem nenhuma atividade de um perguntar e perguntar-se a respeito. Perguntar e perguntar-se em nenhuma hipótese significa negar algo só por negar, de maneira inconsciente; ao contrário, inquirir e inquirir-se implica postura consciente, de julgamento para aceitação ou negação de algo.

- E você está entendendo não existir nada disso em nossos dias.

- Não é que não exista. Existe, sim. O problema é que quanto mais pessoas não façam isso, não desenvolvam essa postura da perquirição, maior a dominação sobre elas. Nessa ocorrência, é legítima a questão: Que lutas essas pessoas que passam aqui estão lutando?

- Não será presunção sua querer saber exatamente sobre as lutas de cada um?

- Talvez. Mas há pouco você citou as mídias. Tenho me perguntado muito – e creio ser uma questão pertinente a todos – sobre a influência das diversas redes sociais, principalmente as virtuais, no nosso cotidiano. Há muitos estudos sérios sobre o tema. Sem me deter aqui neles, porém observando o que fazemos naquelas das quais participamos – postagens de imagens estáticas, vídeos, símbolos, comentários... – fico convicto da superficialidade em que estamos vivendo e, quanto mais superficiais, por óbvio, menos críticos somos e, por decorrência, muito mais manipulados. Não por acaso se vê tanto maniqueísmo moldando opiniões e existências.

- Acho que estou lhe entendendo.

- Em um mundo assim, quais liberdades? Preciso ser livre para ser, para viver, para dizer sobre essa minha vivência. Ser livre se dimensiona na possibilidade de eu poder decidir para mim mesmo – como indivíduo, também como ser social – valores, crenças, ideologias, vontades, posicionamentos...

- E você entende não haver isso nos dias de hoje.

- Repito: há, sim, pois há quem reflita, quem questione e se posicione. Em convivência, há exponencialmente muitos outros sem possibilidade de tudo isso, porque não lhes foi permitido desenvolver habilidades, competências mesmo, para até saberem que não sabem e que, por isso, estão apenas aceitando aquilo que lhes é imposto dia a dia.

- Sem liberdade não se existe...

- Sem liberdade, não se sabe que luta lutar... Não existe sujeito sem liberdade... Sem sujeito o que há é negação... é sujeição... é dominação...

A ausência de palavras a partir daquele ponto foi testemunhada pela praça, naquele instante exuberante nos cantos dos pássaros, na dinâmica do vento soprando sobre as árvores, sobre os bancos, sobre tudo... 

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*Chico Araujo - professor, poeta, contista e compositor, publica toda quarta-feira no Evoé! O título "Lutas e Liberdades" compõe o Abecedário de Crônicas do Evoé e foi escrito no 15 de abril de 2018. Leia mais Chico Araújo em Vida, minha vida...
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15/04/2018


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