sexta-feira, 16 de março de 2018

Estudantina - Kelsen Bravos*

Queria ficasse assim uma paratopia, que se materializasse sempre pelo desejo dos encontros boêmios. Adoro música. Música de violões e voz em mesas de bar, em quintais, regadas pela emoção dos olhares, sorrisos, papos e abraços. Sem hora para acabar e quando o momento de separação surgisse fosse em forma de até já.

Houve um tempo por aqui de ser bem comum encontrar espaços assim, depois os violões sumiram. Talvez pela imposição da necessidade de feijão de quem vive o sonho de ser músico. Talvez não. Bem sei da falta em mim desse canto acompanhado de alegres ou plangentes pinhos.

Foram desse jeito os anos de 1980 até meados dos 1990, uma transição entre o ressurgir das canções espontâneas em bares e praças (a festejar o sol e o luar da abertura política e o início da redemocratização no país), e o recolher desse ímpeto luminoso do canto liberto, dando devido lugar a apresentações profissionais dos músicos de banquinho e violão em bares e restaurantes, com as cobranças dos merecidos couvert artísticos nas contas. 

Num rápido exercício de memória desse tempo, a lembrança me leva ao Bar das Letras, ao Jazz Blues Bar, ao Quina Azul, ao Bar da ASAUFC, ao Recanto do Sabiá (do meu amigo Rainunes), ao Mila Lanches (academia paralela - não havia apresentações pagas, só o violão do Tarcísio Câmara), todos no Benfica. A ordem em que cito os lugares não é a da cronologia do surgir e sumir os bares (porque aqui tudo é efêmero).

Lembro dos efêmeros Cio da Terra, Cheiro Verde, Tom Bege, Bar da Filosofia, esses dois últimos vicinais à Faculdade de Filosofia de Fortaleza, onde conheci meu amigo Lira Neto no comecinho dos anos de 1980. Quem nos apresentou foi a Dudu Molotov, codinome definido por Airton Monte à nossa amiga poeta e acadêmica de filosofia, contemporânea do Lira, da Sônia Maria Castelo Branco, da Martha Vecchia, da Sandrinha, do Ellis Mário e tantas outras (Clara Pinho) figuras bem queridas.

Havia o Cais Bar de tantas histórias, o Largo do Mincharia, e tantos pela Praia de Iracema. O sempre que não fechava Tocantins, onde todos boêmios vindo de todas as demais tabernas se encontravam...

Lembro do Mesa de Bar, do Papo de Esquina (sonho fugaz de meus irmãozinhos Celso e Severo), esses no roteiro do PCdoB (Polo Cultural do Benfica). Neles a paratopia boêmia existia. Nenhum, porém, era igual à Estudantina. Junte a qualidade de todos os bares citados em um só lugar, eis a Estudantina. Era uma varanda de uma casa caiada decorada com simplicidade na forma e requinte no conteúdo, lugar tão aprazível estou para ver igual.

O aconchego do lugar tem a extensão do espírito de Leda Guimarães Rocha e Ignácio Barreira Rocha. O sorriso da Ledinha, sua doce voz, a atenção no ouvir e a palavra amiga plena de carinho a nos querer fazer botar sentido na vida. O abraço de coração imenso, sorriso largo e solidariedade sem par do Ignácio transforma o espaço em bar doce lar.

Nem parecia mesmo um bar; de fato, não o era, pois ao adentrar a Estudantina atravessávamos um portal para felicidade boêmia. Shows, saraus literomusicais, conversas mil sobre filosofia, literatura, projetos, notícias de jornal (não havia televisão por lá), num ambiente de excelente repertório musical. As caixas de som em volume suficiente para não atrapalhar o papo falando da vida. As separadas e diversas mesas iam-se acoplando umas a outras com o passar das horas até se transformarem numa única távola boêmia. Conheço muita gente de lá. Amigos admiráveis e muito queridos. Luciano Franco, que presente maravilhoso a Estudantina me deu!, assim feito o Cláudio Costa, Fhátima Santos, Humberto Brito...

Testemunhar a arte de João Barbosa e Paulo Barreto a inaugurar a programação de shows do espaço cultural não foi coisa pouca. Um misto de erudito, do primeiro violino da sinfônica da Paraíba, e de popular, da radical expressão da voz e violão do hoje Cumpade Barbosa. Espaço Cultural Edson Távora assim foi carinhosamente batizado  de forma não oficial por Ignácio e Leda, em homenagem póstuma ao músico que sempre frequentava a Estudantina no meio da semana. Certa feita, me conta Ignácio, Távora recebeu um acordeon importado e fez questão de inaugurá-lo numa noitada por lá. Um encanto.

A programação, claro, teve sequências em muitos espetáculos, Késia (en)cantou por lá minha preferida Catavento e Girassol, de Aldir Blanc e Guinga, ("só você me pede essa música, Kelsen, eu adoro." - disse-me uma vez). O mais marcante foi o dedicado a Vinícius de Moraes, em que Fhátima Santos e sua voz de silenciar catedrais, acompanhada de Cláudio Costa, violão, Luciano Franco, baixo, Dihelson Mendonça, teclado-piano, com leitura de texto por Ricardo Guilherme... e outros atrevidos feito eu.

Tanto talento junto só me confirma a existência de Deus, e o quanto Ele ama a arte, pois era Divina tamanha beleza a reverberar por lá em música, em texto, em canção, em poesia e nos encantos dos encontros de nós com nós mesmos e com os outros.

Deus, aliás, tal qual me lembra Ledinha, que um dia pacientemente tentei explicar para minha querida amiga Inês não se tratar de um senhor bem velho e barbudo. Isso já às cinco da manhã... Deus sim que me fez protegerem da queda ao descer dos batentes da Estudantina. Juram a Ledinha e os demais terem visto na queda minhas pernas e pés, em vez da cabeça, sobressaírem para além e acima do muro. Todos correram para ver na calçada o estrago. Os recebi com a frase: "capoeira não cai, mas se cai, cai bem..."

Não havia só música, muita literatura também se vivia por lá. Túlio Monteiro outro dia me falou ter sido na Estudantina onde acertou com o Lira Neto a proposta para publicar o perfil biográfico de Lopes Filho. Aliás, muitos projetos editoriais o Vessillo Monte e o Lira conversamos ali, quase todo o santo dia, em companhia de Jota Pompílio e Edvaldo Filho. Lá testemunhei casamentos e desenlaces, enlaces e enrascadas amorosas e muito prazer e muita dor... eita! Intensa dor.

...

Mas o melhor de tudo era o após o hiato entre a despedida dos, digamos, normais e a chegada dos boêmios mais noctívagos a surpreender os que ficávamos. Vinham com conversa animada como se tudo estivesse começando agora e logo, espontaneamente, sacavam os instrumentos, violões, baixo, sax, flauta e começavam a preencher o ar e a vida com as mais belas músicas e poesias das canções até depois do raiar do dia. Numa dessas estavam reunidos, entre outros, Luciano Franco, Arismar do Espírito-Santo (companhia), Ellis Mário, Cláudio Costa, Fhátima Santos, Dihelson Mendonça e seu teclado e muita poesia na voz de Ricardo Guilherme, Karlo Kardozo, Eugênia Siebra, Suzi Lins, Ignácio, Ledinha, canora, e a nossa voz.

Quero de volta tudo outra vez, não só a Estudantina; mas o tempo da delicadeza, em que o silêncio das noites e madrugadas era preenchido pela poesia das canções e a juventude era poupada do vexame de morrer tão cedo. Ave Estudantina! Evoé!


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* Kelsen Bravos - professor, escritor, compositor, editor do Evoé!

15 comentários:

  1. Tantos encontros e desencontros... éramos felizes assim. Diariamente ou dioturnamente?

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  2. Gláucia, meu amor mais terno é seu também, querida. Quanto vivemos na Estudantina! Tudo qud fizemos está vivo em nós. Celebremos a Vida! Evoé! (KELSEN BRAVOS)

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  3. Meu querido, ninguém além de você tem mais propriedade para falar da Estudantina e, neste momento de extrema sensibilidade quando temos todos nós as lágrimas à flor dos olhos, nos vem você com esta preciosidade de crônica. Bateu a lembrança de um tempo muito bom, quando alimentávamos nossa almas com afetos e nos "embriagávamos de vinho, de poesia ou de virtude", à nossa escolha. Devo, entanto, dizer que é em você que permanece guardado o tempo da delicadeza e que a saudade estará sempre a preencher nossas noites e a nos poupar do vexame de morrer cedo. Esses sentimentos nos levam a, vez por outra, nos juntarmos e ganharmos tempo trocando lembranças com todo o sentimento. Ave Estudantina! Evoé! Ave Kelsen Bravos! (LEDA ROCHA)

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  4. Minha amada Leda Rocha, Ledinha, minha cara amiga!

    Muitas vezes o vinho era nossa maior virtude e também a mais fofoqueira delas, pois liberava a verdade tolhida pelo superego (esse bicho chato e censor) e nos fazia abusar da franqueza; por outro lado, confirmava o quanto somos inofensivos, pois nossas opiniões mais ocultas reveladas na lata aos outros sobre, por exemplo, os originais literários que nos mostravam, depois de bem digeridas, faziam muito mais bem do que mal. Evoé, Baco! Ave Estudantina! Ave Ledinha! Evoé!

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  5. Realmente, Kelsen! A Estudantina nos deu momentos inesquecíveis! E muitas amizades que estão aí até hoje! Fortes, seguras, permanentes!
    Você é a prova viva do que estou dizendo! Grande abraço!
    (Luciano Almeida Franco)

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    1. Meu caro amigo Luciano Almeida Franco, meu querido!

      Você nem imagina o bem que é para mim. Só quero lembrar das que já estão duas pagas bem acolá.

      Evoé!

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  6. Tantas cantigas, tantas conversas... é um tempo que não é passado. Pois o que é passado é aquilo que se encerrou. Estudantina não é passado, é farol que ilumina muitos dos caminhos que trilho, mesmo que como estrela, que acabou, mas joga luz sobre o céu de quem sonha. "Ora direis, ouvir estrelas. Certo, perdeste o senso...", pois que perdemos. Melhor perder o senso pela embriaguez das palavras e das bebidas, que pela irracionalidade dos dias atuais. Evoé, Kelsen Bravos. PS: não falastes, graças a Deus, das contas amarradas em rabos de gato, que nunca voltaram... nem dos amores destruídos e construídos naquele espaço. (EDVALDO FILHO)

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    1. Meu caro Amigo, afilhado, irmão, Edvaldo Filho! Meu querido Didi!

      Repare bem que referi, sim, os amores, das felicidades e tragédias deles. Quanto aos rabos de gato das contas, as minhas eram ao contrário, pagava adiantado e ia conferindo o que ia sendo consumido.

      Vamos fazer realidade novamente o Tempo da Delicadeza e nos unir para construir uma sociedade que nos preserve a todos do vexame de morrer tão moço. Ave Estudantina! Ave Didi! Evoé!

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  7. Irretocável, meu querido Kelsen Bravos. Irretocável. E bem que eu também gostaria desse tudo, desse "tudo outra vez". Gláucia Lima: diariamente, diuturnamente, eternamente... Evoé!

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  8. Meu Caro Amigo Chico, até lançamento de livros fizemos na Estudantina. Como meu irmãozinho amado Edvaldo Filho bem disse num comentário ali em cima, "não encerrou, não é passado" é "farol". Sim a chama da luz é em nós. Vamos mantê-la acesa e fortalecê-las nos encontros, traçar projetos comuns. O texto Estudantina, que ora comentamos, é fruto de um projeto comum teu, do Túlio Monteiro e nosso. Está a nos mostrar que não acabou, estamos/somos nós todos aqui unidos responsáveis pelo tempo da delicadeza bem vivo. Ave Sérgio Araujo! Evoé tempo da delicadeza! Ave Estudantina! Evoé!

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  9. Que saudade das noites tranquilas, cheias de riso e afetos, quando sentávamos na Estudantina e perdíamos a noção da hora...
    Você tem razão, Kelsen Bravos, o lugar, as pessoas, as músicas, as conversas nos tiravam e levavam para outro lugar, um lugar de delicadeza e de alegria em noites despretenciosas. (NUKÁCIA ARAÚJO)

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    1. Querida Nukácia, minha linda amiga, doce bem-querer, sim a Estudantina era sim em nós delicadeza e alegria, nos fazia naturais e espontâneos feito crianças. Lembra da madrugada quando o céu virou água e desaguou torrencial sobre o mundo. Você falou da vontade de correr e brincar na chuva. Ali tem uma biqueira, um jacaré, que está uma cachoeira, bora lá? De mãos dadas corremos numa alegria infantil. Você lavou a alma. Tenho o seu sorriso guardado em mim; tão ilumidado, ficou decalcado em minha memória afetiva. Evoé, Tempo da Delicadeza, em que somos templo de felicidade gratuita! Ave Estudantina! Evoé, Nukácia! Evoé!

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  10. Nossa, agora vc me deixou com lágrimas nos olhos e uma imensa saudade!(Inês)

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