quarta-feira, 4 de outubro de 2017

Simplesmente - CHICO ARAUJO

O cidadão simplesmente usava um aparelho de telefonia celular daqueles modelos existentes na época em que eles serviam para telefonar para alguém com a certeza de que esse alguém diria “alô” e, na sequência, uma conversa seria entabulada, efetivada, concluída. Depois, um “até logo”, “até breve”, mesmo um simples “tchau” denunciariam o fim do diálogo e a possibilidade de outro em breve.

Também não gostava de se alongar em conversação desnecessária. Era mesmo de pouquíssimas palavras. Somente as necessárias para o resultado que desejasse alcançar:

- Alô?
- Oi, pai? Tudo bem? Que que o senhor manda?
- Vem almoçar?
- Pai, é bem possível. Tô aqui terminan...
- Tu vem ou não vem?
- Vou, pai.
- Tá. Tchau.
- Pai?
- ...................................................................

Aquele filho foi almoçar. Chegou às 12h, que não estava disposto a ouvir carão do pai por algum atraso, ele um homem já feito. Pediu bênção a pai e mãe, lavou as mãos, pegou prato e talheres, pôs no prato a comida que conseguiria comer, sentou-se à mesa, começou a abocanhar. No silêncio costumeiro, que não era para se falar nada de boca cheia.

A sobremesa foi um docinho de mamão caseiro com gosto de carinho de mãe. Depois, um cafezinho, como sempre.

Já na sala, na espreguiçadeira, o pai ouve do filho:

- Vou comprar um celular mais moderno pro senhor no seu aniversário.
- Pra quê? Esse que eu tenho tá funcionando direito.
- Já tá velhinho, pai. Vou lhe dar um mais moderno.
- Pra quê? Esse que eu tenho serve direitinho pra perguntar se você vem almoçar ou não. E ainda dá pra lhe ouvir respondendo se vem ou não vem. Pra que outro?
- Pai, é que um mais moderno tem mais recursos e fica melhor pra gente se comunicar. Um que tenha WhatsApp, Facebook, Instagram...
- Já vi meu neto, teu filho, se fiando em conversa com gente que eu não conheço utilizando esses negócios aí que você falou. Ele te contou não?
- ...
- Chamei ele três vezes e ele só me atendeu na quarta, quando arrebatei da mão dele, botei em cima da geladeira e mandei ele ficar direito em pé, que tava todo curvado pra frente. Ele te contou não?
- ...
- Prometi pra ele que devolvia o brinquedo depois de ele ajudar a avó na lavagem da louça e na limpeza do chão da cozinha. Se era pra ficar com pescoço baixo e a coluna curvada que fosse por fazer coisa que prestasse. Ele te contou não?
- Contou, pai. Contou, sim.
- Pois então, por que vou querer um treco desses? Já tô ficando velho; se curvar a coluna do jeito que o menino tava, corro o risco de não voltar mais pra posição correta.
- Tá bom, pai. Vou comprar não.
- ...

Seu Diminuto não só não era de conversa fiada, mas desconfiado das novidades da tecnologia, também fã de Ariano Suassuna e das coisas que o paraibano defendia ardorosamente. Também talvez por isso não gostasse de ouvir, várias vezes por dias, palavras como Google, Instagram, Facebook, WhatsApp e outras expressões estrangeiras na boca de seus familiares. Para ele, o melhor para todos é que se falasse a língua própria: Que a palavra estrangeira seja dita pelo estrangeiro, ora!

Seu Diminuto gostava de uma cerveja gelada no domingo. Antes do sagrado almoço familiar, porém, tomava umas duas ou três talagadas de cachaça Pra abrir bem o apetite e um generoso cálice de licor após aquela reforçada refeição Pra ajudar na digestão. Depois um café fresquinho. Era apreciador contumaz do futebol televisivo domingueiro do final da tarde, visto na companhia dos filhos, regado o momento a algumas cervejas bem geladas.

Trazia-lhe felicidade o domingo em família, o especial almoço em que todos tagarelavam – ele ouvindo o que se dizia –, a cerveja gelada, o esporte preferido. Mas como não apreciava qualquer outra língua que não fosse a de seu povo, desgostou quando viu, naquele domingo em Dia dos Pais, uma jogada que para ele daria em gol ser parada porque um jogador adversário estava caído próximo ao meio campo.

- Esse juiz é doido? Parou o jogo por quê? Ia ser gol!

Do neto veio a resposta:

- É por causa do fair play, Vô.
- Por causa de quem? É esse jogador que tá no chão?

O neto riu e foi desautorizado na risada pelo avô:

- Tá rindo de que, heim?
- Calma, Vô.

E explicou:

- Fair play não é nenhum jogador, não. É uma expressão em inglês que significa, em português, “jogar limpo”, “jogar com lealdade”. É pra que todo jogador tenha “espírito esportivo”, que na hora em que alguém se machuque o jogo pare pra que o jogador machucado possa ser atendido.
- Como é esse nome?
- Fair play, Vô.
- “Fer plei”... “Fer plei”... e esse locutor não podia dizer “jogo limpo” não? Precisa dizer esse “fer plei”? Povo besta! Deixa de falar a sua língua pra falar a língua dos outros. Depois fica reclamando que é dominado pelos estrangeiros. Povo besta! Povo besta! Diz palavra que pouca gente sabe o que significa e pratica o que falou. Fer plei...

Enquanto a família reparava no que dissera seu Diminuto, ele saltou de sua poltrona com um grito de gol quase saltando pela boca. Mas se sentou de novo, mudo e agitado.

- Era pra ser gol...

E se levantou da poltrona para ir pegar na geladeira mais uma cerveja. 

Era possível que não terminasse de ver o jogo, não visse filhos, filhas, noras, genros e neto deixando-o dormindo, todos já se afastando do domingo e pensando na segunda-feira.

Era possível que acordasse perguntando Pra onde foi todo mundo?

Era certo que se levantaria da poltrona para a cama, sonolento, para engatar novo sono até o dia seguinte. Feliz. Em paz.

Simplesmente. 

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Chico Araujo publica toda quarta-feira no Evoé! A crônica "Simplesmente" foi escrita em 17 de agosto de 2017. Leia mais Chico Araujo no blog Vida, minha vida...

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