quarta-feira, 25 de abril de 2018

Kafkaesco - CHICO ARAUJO*


            Pois entendam, que já de início solicito essa busca de compreensão.
Faz cinco minutos que ele se sentou ali na parte interna da Lanchonete-Bar Agora Mesmo. E agora mesmo, nesse exato instante em que você lê o aqui escrito, Você sentou-se de frente a ele e deu voz à pergunta:
- Acha mesmo que tudo ficará assim como está?
Chegou com a incredulidade de muita gente – Para que mesmo? –, tornando-se décimo primeiro. E ficou K, simplesmente. E não foi que vingou? Naquelas situações difíceis, pouco se dava crédito a sua existência, até que teve a teve confirmada. Então houve festa, módica, mas houve. E logo logo foi destacado como singular.
Enquanto crescia, a fama se alargava, rompia as cercanias primeiras e se espalhava pelas circunvizinhanças tórridas. Então, pairavam sobre ele algumas desconfianças, muito embora, pelo sim pelo não, o melhor talvez fosse crer. E quanto mais alguém cria, mais se divulgava seu potencial afirmado e confirmado em casos específicos. Aí, ora, veja bem, sua popularidade o tornava mais e mais celebridade.
- Não.
- Só isso? Um simples não?
- Vá até a porta de entrada, estude a rua, volte e me diga o que viu.
Você não se levantou de imediato. Olhou K com olhar fixo, seguro, investigativo em perceber no amigo qualquer sinal de alteração no semblante, nos gestos, no humor, até cumprir a sugestão dada.
- Não vi nada diferente. Pra mim tá tudo igual.
- Tem que aprender a ver para ver, assim como se tem que instruir-se na ação de ler para ler. Só caminha quem aprende caminhar. Só entende quem se aparelha para compreender.
- O que quer dizer com tudo isso?
- Confirmou. Não se encontra aprontado para perceber e saber.
Você se sentiu em desconforto com o dito por K. Em rebuliço, pediu:
- Por favor, me oriente. Mais de uma vez declarou aqui mesmo que quem sabe tem obrigação de instruir quem não sabe. Veja minha aflição; estou precisando.
- Você, lembra-se da pergunta que fez?
- Claro. Acha mesmo que tudo ficará assim como está?
- Quando foi ali à porta e olhou além dela não viu nada em diferença ao que viu ontem?
- Repito, não vi nada diferente. Pra mim tá tudo igual.
- Vou poupá-lo de voltar lá agora, vou lhe adiantar um pouco; contudo, faço uma nova pergunta: o dia está claro ou escuro?
Você olhou em redor e ainda alongou a investigação para a porta e as janelas do Agora Mesmo. Aí pontuou:
- O óbvio... Claríssimo... Estamos praticamente no meio da manhã, não é mesmo? Além disso, nenhum sinal de nuvem de chuva, o sol brilha com muita intensidade.
- Se está claro, por que não vê?
- Mas ver o que, K?
- Você, quando aprender a olhar com o cuidado necessário, verá que sua pergunta não tem sentido. Hoje, quase nada está como estava antes.
- Porque hoje é outro dia e nenhum dia é igual àquele que lhe vem depois.
- Quando se põe a refletir, consegue ir além. O que mais tem a dizer?
- A dizer? Quero uma resposta, uma orientação sua. Tô aflito demais.
- Uma contribuição pessoal a não enxergar. Mas vamos lá... Você, o dia pode estar claro com sol intenso, mas ele está turvo, sem brilho que ilumine. Inaugurou-se, há pouco, em verdade, um tempo de pouca clareza, embora acreditemos haver luz suficiente. Por isso é importante que veja, e rápido, além, mas muito além, do que espera que eu diga. Ver, nesse caso, é saber e crer, enxergar não somente com a visão primeira, mas com a alma, o espírito. Ver, nesse caso, está além de entender a partir de qualquer palavra que eu diga, porque há falas em abundância dizendo também em fartura em contrário até do que lhe digo. Então, o melhor ver agora está mesmo sintonizado com seu íntimo, seu espírito vibrante, suas crenças, suas vivências, suas interpretações, seu saber.
- Eu entendo o que você diz, K, e isso me aflige mais. Eu entendo e é como se eu não entendesse nada. Mais precisamente, eu entendo as palavras que diz, mas parece que não entendo o significado delas, onde elas podem chegar em sentido.
- Isso faz parte do contexto, do momento vivido agora. Por isso precisa investigar respostas para o que procura saber em você mesmo, ouvir a si mesmo. Existem meios, existem caminhos, existem traços, pistas, tudo podendo servir como ferramentas para chegar onde precisa e deseja chegar.
- A minha aflição você não abranda, não sossega.
- Não é culpa minha, não é querer meu. Repito: faz parte do momento. Se partir de você mesmo, de suas sensações, de seus sentimentos, perceberá até porque a resposta está não em mim, ou não somente só em mim, mas principalmente aí mesmo, repercutindo, gritando de tanto desassossego em seu interior.
Você olhou novamente para os lados, em redor, para a porta, investigou as janelas, mas... nada...
- Queria ser como você.
- Cada um é na medida do que deve ser. Não há igualdade entre as pessoas. As especialidades existem em todas, bastando o descobrimento dessas particularidades.
- O dia está claro...
- O tempo, Você, está escuro, sombrio, nebuloso, tenebroso, denso, confuso, duvidoso, ambíguo, ameaçador, temível... Não começou hoje, porque um tempo assim vai sendo feito de pouco em pouco, embora paulatinamente, obstinadamente. Alguns veem mais rapidamente, acostumados a olhar e ver, compreender. Não se entregue. Vá vendo.
- É por isso a sua calma, porque vê?
- Olhe bem. Onde está vendo calma, perceba análise, entenda associação e comparação. Também preciso ver além dessa escuridão que não vê ainda – quisera não chegasse a ver nunca mesmo, por inexistente, mas é falsa essa ideia. Análise, associação, comparação são mecanismo eficientes em favor da compreensão. Amanhã, melhor será, caso não receba sopros do passado. Volta ali à porta e olha tudo novamente.
Você caminhou até a porta e, atencioso, estendeu o máximo que pode seu olhar para além dela, querendo, profundamente, saber. Retornou pensativo.
- E então?
- Não são exatamente as ruas, nem as praças, nem os prédios, nem as casas... Isso está praticamente igual. Não falei com ninguém, no entanto, soube – me permita assim dizer – de alguns passos, de alguns olhares, de alguns silêncios, de alguns gestos ausentes a chegada de um tempo sem ser tempo, porém ausência, quase uma perfeita carência do momento a se desenhar. Por alguns instantes, ali, uma brisa soprou fria em meu rosto uma bofetada intensa, numa espécie de sacudida, e, em seguida, friamente percorreu minha espinha até beijar meu espírito e aquentá-lo, enquanto me sussurrava uma animação de despertar quente. Aí quis voltar para cá e voltei. O que é tudo isso, K?
- Fique um pouco mais aqui comigo, Você. Podemos nos ajudar; dialogando, há a possibilidade de sabermos mais. Juntos. Não se fie apenas na fama criada em torno de mim; ela pode até ter algum sentido, porém seu significado precisa ir além de mim. Não me aceite me limitando ao dito sobre mim. Posso ser mais e posso ser menos. E não fechando seu olhar, seja sobre o que for, pode ver muito mais...
- Mas, e agora K?
- Estamos aqui sentados. Agora Mesmo é um bom lugar para alimentarmos nosso corpo. Também é um bom momento. Vamos ver o cardápio para hoje...   

______________
*Chico Araujo - professor, poeta, contista e compositor, publica toda quarta-feira no Evoé! O título "Kafkaesco" compõe o Abecedário de Crônicas do Evoé e foi escrito entre 10 e 12 de abril de 2018. Leia mais Chico Araújo em Vida, minha vida...

3 comentários:

  1. Não vi Kafka como um termo do dicionário..portanto!

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  2. Confira qualquer bom dicionário, pode ser online mesmo. O https://www.priberam.pt/, por exemplo, informa:

    kaf·ka·es·co
    ([Franz] Kafka, .antropônimo + -esco)
    adjetivo
    Relativo a Franz Kafka, escritor de língua alemã nascido em Praga (1883-1924), à sua obra ou ao seu estilo. = KAFKESCO, KAFKIANO

    Palavras relacionadas: kafkesco.

    "kafkaesco", in Dicionário Priberam da Língua Portuguesa [em linha], 2008-2013, https://www.priberam.pt/dlpo/kafkaesco [consultado em 26-04-2018].

    Somos agradecidos por sua atenta leitura e preocupação com a qualidade do Evoé!

    Lamentamos a identificação Anônimo. Mesmo assim, reiteramos a gratidão por nos acompanhar.

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  3. Olá, Anônimo. Kelsen Bravos fez a gentileza de antecipar-se a mim, portanto... Sou grato a ele.

    Há outros vocábulos relacionados a Kafka em dicionários. Fiz minha opção.

    Assim como o Kelsen Bravos, agradeço sua leitura e sua quase crítica. E pergunto: a opção pelo termo "Anônimo" pode sinalizar um ato kafkaeeco?

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