sexta-feira, 27 de abril de 2018

KKKKKK, deu a louca no abecedê - Kelsen Bravos

Quando me alfabetizei ainda com quase cinco anos, o k oficialmente não integrava o nosso alfabeto. Bem depois, lá pelos confinantes dias do 1971, - período obscuro e de triste memória - houve uma reforma ortográfica e a letra inicial do meu nome continuou exilada no mundo das siglas, da tabela periódica, demais registros científicos, nomes estrangeiros e seus derivados. Uma situação para mim desconfortável, mas dava para conviver estoicamente com ela. Outra coisa dessa tal reforma, entretanto, deu um nó no meu juízo. Como podia o "hontem" perder o "h" e o hoje, não? Quem pesquisar constatará que a injusta mudança se deu por descabido arbítrio de quem mandava. Mesmo sem uma sequer prova etimológica para tanto, mas crendo na própria convicção, o estabelichment suicidou o h de "hontem" que, a exemplo de muitos outros Hs daquela época, está desaparecido até hoje. Uma injustiça! Desde então, meu espírito estoico se aposentou.   

Dezenove anos depois, vibrei sim ao ter de volta ao alfabeto oficial as três letras exiladas ainda pela reforma ortográfica de 1945 o Y, o W, e o K. Embora continue - oficialmente - apenas para o registro de onomásticos e topônimos estrangeiros e seus derivados, o K de Kelson, Kardec, Kafka, Kalil, Kelsen... e seus derivados ser hoje no nosso alfabeto é, para mim, um fato simbólico  de cidadania, de inclusão e de avanço democrático. Pensar nisso me alimenta a esperança de justiça histórica e me faz mirar no horizonte um almejado carpamus dulcia ("gozemos a vida") como direito universal e de respeito a todos e a todas como prêmio. Mais que isso! A menor conquista de uma boa luta significa a plenitude do carpe diem dos que têm sede de justiça. Vale a pena resistir e persistir na luta.

A ortografia vigente diz que se houver palavra registrada com C, por exemplo, Canindé, nunca se deve grafá-la com o K. Apesar disso, como metáfora de resistência, escrevo: Kanindé. Ora! Kizomba tem mais beleza e radicalidade do que quizomba. Antônio Callado, a quem sou muito grato, me desculpe de onde estiver, mas escrever Kuarup fica muito melhor do que como está no título do livro Quarup, seja qual for a razão. Tenho certeza de que um golpe de karatê dói bem mais do que um de caratê. Receber kibanda regozija mais do que quibanda. O registro do k nas palavras é tão expressivo que às vezes dispensa um correlato em português. Se fosse com C, kamikaze não seria tão letal.

O fato ter crescido com a primeira letra de meu nome sem existir oficialmente no alfabeto da língua dos meus amores, por meio da qual me expresso no mundo, sempre me provocou as mais existenciais reflexões. Na lista alfabética, meu nome constava ali num colorido mudo entre os iniciados com J e os com L. Não era raro aparecer no final, depois do Z, junto aos nomes grafados com W e com Y. Considerava isso uma provocação. Minha reação a essa aberração era por exigir reparo. Não deveria ser complacente com quem cometera tamanha afronta. Pois certa feita, vinguei-me da professora Maria com estes versos cruéis: Sabe qualquer borra-botas / mesmo sendo analfabeto / a letra K vem depois do jota / mudá-la de lugar é asnaria. / Ave-Maria, Dona Maria! / Quem não sabe o alfabeto, / não faz curva, segue reto/ o caminho da estribaria! Como se desembaraçou essa questão não vale a pena detalhar, mas lembro ainda da forma como a querida professora ao ler os mal traçados quartetos, bradar: Ah é, né?! Então venham K! Até tentei, mas não deu para ficar "kietin", até porque não sou "kvard" - como registra a garotada nas redes sociais. Na nossa sala de aula, entretanto, o K nunca mais foi para o final do alfabeto.

Por falar em redes sociais, basta um breve passeio por elas para constatar que o advento da Internet e suas escritas libertaram os registros mais loucos e eficazes e valorizam demais a letra K. Outro dia me entrevistaram para falar sobre como ficava a ortografia com essa prática social, interativa, tão forte na novíssima geração que se comunica e muito e de várias formas utilizando os mais variados recursos visuais. Respondo de forma simples, devemos ser poliglotas. Mais que isso devemos saber adequar a fala e os registros às convenções que os diversos lugares de interação demandam. Até para contestar - no sentido mais anárquico do termo - tem-se de ter domínio dos códigos para ser eficaz e eficiente, para ser proficiente. Sou a favor de se valorizar o registro oficial, precisamos de uma base social abrangente, mas que ela absorva, agregue paulatinamente o novo modal que se consolidar. Vixe! Estou falando sem respeitar o espaço interativo de uma crônica, então... kero dizer ki meu kraçawn stá mtt flz kom o vlr do K na Internet! KKKKKK! Evoé!



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*Kelsen Bravos - professor, escritor, editor do Blog Evoé! Este texto faz parte do Abecedário de Crônicas do Evoé! Projeto que conta também com os poetas Chico Araújo e Túlio Monteiro.



6 comentários:

  1. Já pensou se meu nome fosse escrito assim Klauton? Com que Kara eu fikaria? Deixa pra lá que a coisa mais gostosa é mesmo uma gargalhada e qualquer que seja a mídia, impressa, televisiva, radiofônica e o descambau será sempre representada assim...KKKKKKKKKKKKKK. então deixa de choro Quelsen...e sorria KKKKKK

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  2. Kerido Kelsen, legitimamente brilhante. Ki mais posso dizer?

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  3. Meu Karo amigo Chiko!

    Diga: Evoé!

    Kelsen Bravos

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  4. Ainda bem que voltamos a ter o nosso "K" no alfabeto brasileiro.

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