quarta-feira, 4 de abril de 2018

Hibridez na hibridização - Chico Araujo*


Pois veja que o Filé-de-Borboleta, naquela sua conhecida ânsia de falar falar falar, irrompeu no Bar do seu Luís e logo depois de um educado-agitado Boa tarde, seu Luís disparou a pergunta direta e objetiva ao vendeiro:
- Quede o Ferrado, seu Luís? Chegou ainda não?
- Se chegou tá disfarçado. Tô vendo ele não.
- Eita, seu Luís.
- Sente aí, homem, que já ele chega. Tá na hora dele chegar. Vai tomar uma?
- Bote umazinha aí pra mim, seu Luís. Caprichada.
- Pois sente aí, Filé, que já ele chega.
Filé sentou e ficou esperando o amigo, bebericando de leve aquela cachacinha bem dosada servida pelo seu Luís. Mas já não falava. Bebericava e olhava pro tempo, pro lado, pra cima, pra baixo, pras pessoas que entravam e saíam, pras paredes, pro seu Luís, demonstrando agitação em seus pensamentos, atiçando a curiosidade do mercador. O que será que esse cabra tem hoje? Tá muito pensativo e inquieto... Hoje ele vem com alguma novidade...
Enquanto seu Luís refletia, Ferrado apareceu à porta do Bar e em susto escutou o chamado em grito:
- Ferrraaaddoooo. Vem cá, macho. Tu quase que não chega...
Ferrado desejou boa tarde a seu Luís e aos poucos indivíduos presentes no estabelecimento naquele instante e foi se dirigindo para a mesa onde Filé o aguardava.
- Que que houve, Filé? Parece agitado, nervoso...
- Nervoso, não. Agitado, um pouquinho. É que eu tenho pensado muito naquilo que disse aquele deputadozinho com aquela história de trazer progresso pra nossa cidade. No que ele disse e no que eu tô vendo acontecer na cidade, parecendo ser de pouquinho, mas já sendo é muito.
- E aí? O que o perturba?
- E aí que eu tenho pensado que aquilo que pode ser bom pode ser é ruim.
- Que história é essa, Filé? Já tomou quantas?
- Essa é a primeira, mas já vou pra segunda.
Verteu uma talagada da cachaça ainda existente no copo. Seu Luís se aproximou dos dois levando a cachacinha também bem dosada para o recém-chegado. Aproveitou e falou:
- Esse cabra aí tá meio esquisito hoje, mas aquele esquisito que a gente já sabe que vem coisa nova. Prepara aí os ouvidos que a falação vai ser muita. Filé olhou o comerciante e não rebateu aquela fala; pediu mais uma dose da cachaça e uma boa porção de torresmo Pra gente distrair o estômago enquanto papeia. Depois do afastamento do comerciante, o agitado Filé prosseguiu em sua falação. Ferrado, bebericando, pôs-se a ouvir.
- Olha só, na cidade temos aqui o Bar do seu Luís que satisfaz todo mundo, certo? Aqui tem nome de bar, mas não é só bar. Aqui todo mundo compra o que quer, o que precisa, que o comércio dele é até bem grandinho, né não? Então, com esse negócio de progresso dito por aquele lá, é possível que venha restaurante, que a gente já tem alguns, mas vai ter muito mais, supermercados, que a gente não tem, mas tem aqui a venda do seu Luís na parte que não é bar e outras vendinhas que nos servem muito bem, né não?
- Tô lhe escutando...
- Aí, pra ter essas coisas, esses outros comércios maiores que o do seu Luís, isso é sinal de que a cidade vai ter mais gente. Aquele deputado, se tá mesmo com projeto pra cá do jeito que ele disse, ele tá pensando em transformar a cidade em lugar que tem gente, muita gente, porque quanto mais gente, mais dinheiro pro bolso dele, que aquilo lá não é flor que se cheire, já percebi. Se duvidar ele tá querendo fazer uma cidade pra ele.
- E ter mais dinheiro é ruim, Filé?
- Quem tem muito diz que não. O problema muitas vezes tá no que se faz pra se ter muito dinheiro. Né não? Olha só, se a cidade tiver esse progresso que tô falando, com os tais dos mercantis e restaurantes, o Bar do seu Luís se acaba, que ele não tem como enfrentar grandes restaurantes e mercantis. Né não?
- É bem possível, Filé, é bem possível. Seu raciocínio é ajustado. Mas nos mercantis, a gente sabe, tem mais fartura, então a gente pode comprar mais barato neles do que a gente compra aqui. Né não?
- Que a gente teria mais escolha, eu acredito. Comprar mais barato, não sei.
- Tem outra, ô Borboleta. Progresso sempre cria emprego onde ele chega. Mais emprego significa menos gente desocupada.
- Aqui a gente não tem problema de gente desocupada. Todo mundo que tá em idade de trabalhar, trabalha. Não temos muito dinheiro aqui, mas o que a gente tem dá pra viver. Né não? Aqui todo mundo se conhece, todo mundo se ajuda, todo mundo é amigo, mesmo quem mora mais distante. Né não? O progresso faz a cidade ficar maior, faz ter mais gente e faz as pessoas se desconhecerem. Né não?
- Numa cidade grande é natural você não conhecer todo mundo. Mas cidade grande, com progresso, também tem mais oportunidades pras pessoas.
- Oportunidade de quê?
- De trabalho, de estudo, de moradia, de saúde... A gente aqui não tem um hospital que preste. Quando o Dodô teve aquele problema de saúde dele precisou ser levado lá pra capital. Nem tem hospital aqui nem tem na região. Esses Postos de Saúde ajudam muito em coisa pequena, mas não em coisa grande, doença mais séria.
- Todo mundo que mora aqui já tem onde morar, mesmo os que moram em casa bem simples, bem humilde. Aqui a gente não tem morador de rua. As doenças que a gente vê aqui são aquelas comuns, que todo mundo tem e fica bom logo. Cidade grande tem muito mais doenças e tem muita gente morando na rua. Né não?
- Onde tá querendo chegar, Filé?
- Se esse projeto que aquele lá falou for de vera, vingar mesmo, nunca mais que aqui será como a gente vive agora, nessa paz de todo mundo com todo mundo sempre se ajudando. O seu Luís, como é comerciante e comerciante gosta de dinheiro, é capaz de pegar esse terrenão que ele ainda tem aqui do lado e construir nele um daqueles parques aquáticos que mostram na televisão, com direito a apartamentos pra rápida temporada. Eu já ouvi aquele lá falando isso pro seu Luís. Sabe o que acontece? Nunca mais que a gente vai poder vir aqui pro seu Luís, que ele vai mudar isso tudo aqui, vai deixar com outra cara, mudar cadeiras, mesas, o balcão, os preços dos de beber e dos de comer, rapaz. Vai deixar de ser Bar do seu Luís pra ter um nome estrangeiro, que chame mais atenção, pra agradar “as gentes” que vierem sabe lá Deus de onde. Ferrado, isso aqui nunca mais vai ser do jeito que é. Você já viu aquele terreno enorme sendo limpado lá na saída da cidade? Sabe o que vai ser aquilo? Heim? Sabe? Aquilo ali é o primeiro passo pra construção de um tal de empreendimento que tão começando a fazer que vai ter um bocado de coisa, campo de futebol, piscina, quadra de voleibol, quadra disso, quadra daquilo, um bocado de coisa que eu nem sei direito o que é... É um negócio que quando ficar pronto vai ter nome estrangeiro. Coisa daquele falastrão que tá se acostumando a vir aqui no bar.
- E você acha isso ruim, Filé?
- Ruim, Ferrado? Pensa só aqui no seu Luís. Se o seu Luís for pela cabeça daquele deputado e mudar tudo aqui, nem tu, nem eu, nem ninguém que vem aqui hoje vai poder vir pra cá e ficar do jeito que nós tamo agora. Nós daqui da cidade não vamos poder comprar o que o seu Luís vender, porque a gente não vai poder pagar. O progresso chegando aqui, a cidade vai mudar tanto, que nós teremos de sair dela. E se a gente não sair de todo, vai ficar morando longe de tudo que tá perto hoje da gente.
- Tá exagerando, né, Filé. Tá variando? Você sabe que mesmo a gente sendo todo mundo amigo e se ajudando sempre quando um precisa do outro, aqui não é todo mundo igual. Tem diferenças aqui como tem em todo lugar. Não é todo mundo igual, não é tudo igual pra todo mundo. Tem diferenças. Só que aqui estamos todos juntos e irmanados
- Pois é... Amanhã estaremos misturados e nem um pouco juntos...
- Sei não, amigo. Não está exagerando?
- Acho que se você quiser ver você vai ver...
Seu Luís se aproximou da dupla para abastecer de bruta os copos vazios, os torresmos postos já na mesa quase consumidos. Quando terminou o abastecimento, ouviu do Filé-de-Borboleta:
- Seu Luís, o que é aquilo naquelas caixas grandes ali?
- Televisões. Vou botar duas nesse meu bar. Agora quem quiser ver futebol aqui vai poder. Futebol, jornal, filme, novela... Vamos ter de tudo nessas televisões. O freguês vai dizer o que quer ver.
Disse isso e foi saindo pra atender outras pessoas que chegavam. Filé ficou encarando o amigo Ferrado que também o olhou, numa expressão indecifrável, após entornar goela abaixo sua boa dose de cachaça...
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*Chico Araújo - professor, poeta, contista e compositor, publica toda quarta-feira no Evoé! O título "Hibridez na hibridização" compõe o Abecedário de Crônicas do Evoé e foi escrito entre 28 e 29 de março de 2018. Leia mais Chico Araújo em Vida, minha vida...

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