quarta-feira, 21 de março de 2018

Efes - Chico Araujo*


Mal entrou no recinto, foi obrigado a ouvir a invocatória:
- Ei, Filé-de-Borboleta.
Não se aborrecia mais, acostumado com o epíteto desde quando adolescente: cresceu muito, porém somente esticou, sem engordar nem receber sobre os ossos massa muscular que o deixasse naquele padrão reconhecido como o das pessoas com peso ajustado ao tamanho.
- Diz, Ferrado – foi a resposta que deu, sem que para ela houvesse qualquer crítica ou aborrecimento. Filé e Ferrado se conheciam há muito tempo, cresceram juntos, eram quase irmãos, não se aborreciam com a maneira como se tratavam.
Onde morava o Filé-de-borboleta, muitos o tinham como um sujeito fajuto, mas tenho cá as minhas dúvidas; creio que essa suposta fajutice se devesse à ausência de proximidade dele, à falta de conhecimentos sobre ele. Acho mesmo que o grande mister – e problema – dele era a compulsão para falar água. E como falava! Ah, como falava... Mas bem sei que algumas vezes acertava em cheio naquilo que falava.
Talvez sua maior questão estivesse no fato de querer saber de tudo, entender de tudo. Aí, dava no que dava. Falhava naquela eterna falação fácil, feroz às vezes, noutras por intenso frivião – muitos debochavam. Ferrado sempre o defendia, pois reconhecia no amigo total ausência de maldade, de intenção de ser falso. Falava porque falava; parecia ter nascido para isso. E ele também reconhecia que nem sempre o Filé falava absurdos.
O fato mesmo é que ele falava muito e ninguém conseguia parar sua língua quando ele aparecia com ela solta. Aí cansava os ouvidos, às vezes até irritava-os pela altura e estridência da voz constante. Como dizem muitos, ele “metralhava” suas conversas, cortava o turno de fala das pessoas, discordava, concordava, apresentava suas opiniões, depois as contradizia... Era assim, impetuoso na ação de falar.
Também tem uma: não era amigo de fuxico. Isso não. Ninguém dissesse que ele fuxicava que ele ficava fulo. E também não gostava de futrico (a menos que a situação pedisse); só gostava de falar falar falar falar... E assim corriam seus dias, em muita falação, também em quase total tranquilidade.
Até o dia em que precisou ficar no mesmo ambiente em que se encontrava um certo Carlão, aquele deputado que se imiscuía em várias situações a partir das quais pudesse ser visto para, no fim, ficar conhecido. O problema não estava exatamente em ficar no mesmo ambiente (já acontecera outras vezes), posto que o Filé sabia conviver com as pessoas; aquele conflito se iniciava com o que dizia aquele representante do povo.
O deputado já estava criando o hábito de aparecer muito no “Bar do seu Luís” e, para impaciência de boa parte da freguesia de há muito, levando em sua companhia pessoas de seu naipe ou próximas dele. Em outras palavras, aquele político estava contaminando o “Bar do seu Luís” com sua presença, com a de pessoas “suas”, as suas conversas, suas gargalhadas, sua busca de conquista do povo dali. Para muitos, não deveria ficar ali de flozô – mesmo garantindo ao seu Luís um reforço no caixa –, mas em Brasília, trabalhando de verdade em benefício do povo.
O Filé-de-Borboleta não ia nem um pouco com as feições daquele político e também não fazia nenhuma cerimônia de deixar bem clara essa sua posição. Cumprimentar, até cumprimentava, que podia ser “Filé-de-Borboleta”, mas não era mal-educado. Ser amigo, ter grande proximidade, aí já seria demais.
Pois naquele quase meio-dia daquele sábado de temperatura agradável o tal Carlão, acompanhado dos dois fiéis assessores também já se acostumando a frequentar o “Bar do seu Luís”, entendeu de dizer alto e bom som haver tramitação, na Câmara, de projeto de sua autoria que iria colocar aquela cidade no mapa do mundo. Todos os presentes olharam para aquele astuto representante de causas as quais dizia republicanas. Seu Luís não somente olhou:
- Que projeto? Que mapa de mundo? Nossa cidade vai muito bem, obrigado.
- Mas pode melhorar, né, seu Luís. Aliás, ela vai melhorar. Meu projeto está sendo muito bem compreendido pelos meus pares lá em Brasília.
- E o que os seus pares lá em Brasília tem a ver com nossa cidade? O que o senhor mesmo tem a ver com ela, se nem daqui o senhor é?
O camarada deu um sorriso que foi impiedosamente filmado pelas retinas desconfiadas do comerciante.
- É que eu já me sinto um filho dessa terra maravilhosa, seu Luís, essa terra que acolheu a mim e a minha família muito bem. Preciso retribuir e a melhor maneira de fazer isso é trazendo mais progresso pra ela. Ela está em ponto estratégico nesse Estado maravilhoso e o que eu puder fazer para melhorá-la eu farei.
Houve um silêncio incomodador. Seu Luís botou os olhos firmes em cima do deputado, dizendo de si para si: Fuleiragem. Filho de uma égua.
Quem não ficou calado foi o Filé:
- Fantasia. Fanfarronice de falastrão.
- Como é, Filé?
- Isso mesmo. Desde que chegou aqui é isso. Fala, fala, fala e nada. Não se vê nada. Dizem aqui que eu falo demais, mas o senhor é fábrica de falácias. Eu falo muito mesmo, mas eu sei o que falo. Eu falo porque sei, sou inocente não. Falo porque tenho o que falar e com justeza. Outros falam no vazio, falam só por falar. Projeto? Que nada. É só falação isso. Eu fui futricar na história do senhor ali na Câmara e não vi nada. O senhor nunca falou nada, nunca apresentou proposta nenhuma. Tô aqui lhe fustigando é pra saber se o senhor fala de uma futurição exata, ou se está dizendo coisas como futurista impreciso e esnobe. Cadê o projeto? Mostra. Faço que nem São Tomé: quero ver. Ver para crer. O senhor deve tá é fazendo fuzarca com o povo daqui. E tem mais: quem disse que o povo daqui quer esse progresso que o senhor tá falando? A vida aqui é boa, muito boa, tranquila, pacífica, honesta... ou pelo menos era até o senhor vir pra cá.
- Aí você já está ofendendo, Filé. Não sou fuzarqueiro, não. Quero o melhor para nós todos. Vim pra cá porque aqui é um lugar muito bom – disse isso piscando um olho para um dos assessores ali com ele.
No Bar, o silêncio especulativo de como aquela conversa ácida iria acabar. Seu Luís olhou para o Filé como quem pedia para ele controlar a língua. Mas ele ainda foi um pouquinho mais adiante:
- Tomara que o senhor não desonre nossa cidade com alguma farra de milhões. Muitas coisas que muitos de vocês fazem e que deveriam ser festa facilmente se firma como fuzuê. O que deveria ser feito com finura, elegância, honestidade acaba como atestado de fisiologismo.
Filé, enfim, se calou. O olhar dele firme em encontro com o olhar do deputado. Enquanto se miravam, se mediam, seu Luís observava os dois, enquanto passava um pano por dentro de um copo de vidro, enxugando-o. Os frequentadores do Bar que por lá estavam permaneceram em silêncio, mas num formigamento de curiosidade que observava tudo esperando o desenlace daquela contenda.
Decerto uma fissão ocorreu ali. E foi intensa e tensa.
E preciso confessar: fiquei fissurado para saber da realidade do projeto. Seu Luís também. Acho mesmo que todos que estavam lá. Talvez até o deputado e os assessores. Para que tudo não passasse de simples fita; para que todos, no futuro, pudessem entrar em verdadeira e honesta festa. Festa fabulosa, sem ser desagradável fábula.
_____________
*Chico Araújo -
professor, poeta, contista e compositor, publica toda quarta-feira no Evoé! O título "Efes" compõe o Abecedário de Crônicas do Evoé e foi escrito entre 12 e 17 de março de 2018. Leia mais Chico Araújo em Vida, minha vida...

Nenhum comentário:

Postar um comentário