quarta-feira, 7 de março de 2018

Dádivas - Chico Araujo*

Não, não era todo dia, pois os tempos pós-modernos não permitiam mais. Mas não poucas vezes acordou antes de todos e mesmo se levantou antes de todos e entre o sono no cedo da manhã, o cansaço ainda aceso do dia anterior e o desejo simples de apenas fazer, preparava o café matutino para aqueles que acordariam e se levantariam depois.

Quando a mediana fartura acontecia, de frutas batia no liquidificador a vitamina, ou na jarra providenciava o suco da preferência; ainda punha ovos à fritura, ou mesmo os fazia mexidos; também esquentava pães e coava o café que logo depois permaneceria quente na garrafa.

Nada pedia em troca. Apenas fazia.

Ia, então, ao encontro de cada um e os abençoava, os acarinhava, os beijava, deseja a todos um dia bom, tranquilo, pacífico, abençoado mesmo. Depois passava a pensar em si, no seu trabalho, no seu dia que também merecia ser abençoado, pacífico. Mas parece que saía de casa mais leve, mais inteira, mais disposta ao enfrentamento dos desafios a virem, certamente.

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Percebia, há alguns tempo, que algumas moedas lhe sumiam do bolso, que algumas cédulas lhe desapareciam da carteira. E achava estranho...

De primeiro, começou a se perguntar se não estava a fazer confusão com esses sumiços: - Será que não gastei mesmo e não me lembro? Que foi mesmo que comprei ontem? E com essas perguntas – sem respostas efetivas – ia se angustiando, se martirizando. Era-lhe muito doloroso faltarem-lhe as respostas desejadas.

Mas os dias passavam... Os sumiços acontecendo...

Foi numa manhã, após o banho e antes do café, que se chegou, muito sério e certamente triste, ao filho:

- Gostaria que me devolvesse a cédula que me tirou da carteira.

- Senhor?

- Você sabe. Você tirou uma cédula hoje da minha carteira enquanto eu tomava banho. Preciso que me devolva.

Cabeça baixa, entre a vergonha e o medo, o filho retirou a nota guardada no bolso da calça e a entregou ao pai. E então chorou. O pai ainda aguentou firme.

- Agora quero que me diga por que vem me tirando dinheiro. E quero que me diga a verdade.

Após alguns soluços pelo choro, o garoto conseguiu falar:

- Tem um menino lá na escola, na minha sala, que ele é muito pobre. Ele sai de casa sem comer nada, nem toma café da manhã. Eu levo o dinheiro pra gente merendar, porque nem todo dia tem merenda na escola. Aí eu pago merenda pra mim e pra ele.

O pai ainda aguentou firme e não derramou ali suas lágrimas – de tristeza e de medo. Olhando firme para o filho, com firmeza disse:

- A sua razão é nobre, o seu ato é pobre. Quando a gente pega algo de alguém sem a devida permissão, estamos roubando dessa pessoa o que para ela pode ser muito necessário. O dinheiro aqui em casa é pouco; eu ganho pouco e sua mãe também. Do pouquinho meu e do pouquinho dela fazemos de tudo para que nada falte a você e seus irmãos. O que você tirar de mim vai fazer falta a nós todos, a mim, a sua mãe, a seus irmãos. Você está roubando de todos nós e até de você, mesmo que por um momento tenha o dinheiro tirado só pra você mesmo e praquilo que considera importante.

A palavra "roubando" estourou na cabeça da criança com força e um choro menos controlado e muito mais soluçado se revelou. Foi uma arrebentação de represa. Muito triste, o pai, ainda em controle, disse:

- O que quero agora é que me prometa que nunca mais, mas nunca mais mesmo, fará isso de novo, nem comigo nem com mais ninguém.

- Prometo, papai.

- Esse dinheiro que ia levar hoje eu não posso lhe dar. Ele vai servir pra pagar uma conta na mercearia. Se por acaso não tiver merenda escolar hoje, você e seu amigo precisarão controlar a fome, pelo menos até chegar a hora do almoço.

- Tá certo, papai.

- Outra coisa: de hoje em diante, quando estiver precisando de dinheiro ou de qualquer outra coisa que não dependa somente de você, mas de mim, da sua mãe, dos seus irmãos ou de quem quer que seja, você vai "pedir", dizer qual a sua necessidade e "pedir". É assim que deve ser. O que não é nosso, para passar a ser nosso, tem que ser pedido, ou comprado com dinheiro honesto. Entendido?

- Sim, papai.

- Agora vá tomar seu café da manhã pra depois ir pra aula.

O garoto saiu em silêncio, cabisbaixo, triste, desconsertado mesmo, humilhado por sua própria ação. Comeu meio sem vontade, tentando entender porque não foi castigado por seu pai. Merecia uma surra bem dada. Mas não. O pai o pegou em flagrante e não o castigou. Como pode isso?

O filho não conseguia entender porque não houve castigo. A mãe, ali na cozinha, perto dele, sabia de tudo, já, mas não dizia nada. O pai decidira que era ele quem deveria falar com aquela criança. A mãe entendeu e aceitou. Permaneceu calada, triste também, muito triste e preocupada, mas atendeu ao desejo do marido e ficou calada. Mas dava para sentir o pesado ar circulando em torno de todos.

O filho tomou a benção à mãe quando saía para a escola.

- Deus o abençoe, meu filho, Deus o abençoe, livre e guarde das coisas ruins dessa vida – fez essa invocação sem que o menino visse as lágrimas escorrendo de seus olhos.

Estava já próximo ao portão, quando ouviu a voz do pai (que em dia normal teria saído mais cedo. Naquela manhã, precisou isolar-se um pouco no quarto, talvez para meditar sobre sua preocupação, quem sabe para deixar cair alguma lágrima pela aflição sentida):

- Filho, Deus o abençoe. Deus guie seus passos. Tenha boas aulas e aprenda, filho, aprenda tudo o que puder de bom, na escola e na vida.

O menino, enfim, seguiu para a escola, passos pesados no chão das ruas. Ainda levaria algum tempo para entender o que de fato acontecera naquela manhã; mas a lição recebida nunca se apagaria de sua memória e ele poderia aprender, a partir dela, como seria o restante de sua vida.

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Os tempos atuais são de velocidade e, certamente por isso, costuma-se, nas correrias diárias, não se perceber muito do que precisa ser observado. As pessoas, por exemplo, precisam ser observadas e, mais que isso, vistas.

Ele observa; por isso, vê. Não é hábito adquirido recentemente, mas herança pela formação, evidenciada a partir do pai e da mãe. Assimilou. Incorporou. Põe em prática.

Então foi comum levantar-se do banco do ônibus para ceder o assento a um senhor já com idade bem além da sua. Foi natural recolher do chão os livros do estudante, caídos da mão deste, quando em descida do coletivo. Nada extraordinário abrir a porta e dar passagem aos colegas que chegavam ao trabalho no mesmo momento que ele. Tampouco lhe caberia na esquisitice esperar que as pessoas saíssem de dentro do elevador para ele entrar.

Talvez não seja difícil reconhecer sua principal característica. Basta acompanhá-lo, por alguns dias, pois também afirmar a característica de alguém não deve ser de improviso, por uma primeira visão, ou mesmo uma visão rápida, superficial. Estar com ele, porém, pari passu, em trajetórias cotidianas, pode nos conceder visão adequada de qualidades suas.

Então não causou surpresa vê-lo abrir mão de seu lugar na fila do almoço em favor de pessoas com mais idade; também não acarretou estranheza quando se determinou ajudar colega em trabalho que já fizera tempos antes, mas que agora estava sob a responsabilidade do outro, ainda às voltas com a necessidade de compreensão para realizá-lo a contento.

Apenas é assim, apesar dos dias atuais.
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*Chico Araújo - professor, poeta, contista e compositor, publica toda quarta-feira no Evoé! O título "Dádivas" foi escrito entre 18 e 27/02/2018. Leia mais Chico Araújo em Vida, minha vida...

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