quarta-feira, 11 de outubro de 2017

Toque - CHICO ARAUJO

18h. 

Ele chegou como se estivesse como nos dias antes desse. Pelo menos foi o que transpareceu a quem, na espreita, o viu chegando. Veio devagar em seu carro – como sempre fazia – e o estacionou na garagem a que tinha direito, manobrando-o para deixá-lo de ré – como sempre deixava.

Desceu do veículo sem expressar qualquer afobação e, a quem o observasse – e era certa a vigilância –, nenhum sinal de apreensão transpareceria, embora estivesse inquieto. Foi sutil no ato de olhar para o portão de entrada assim que desceu do automóvel. Também, quando olhou para os lados, investigando a segurança do lugar, pouco antes de dependurar nas mãos alguns sacos plásticos de compras. Mais ainda, no tempo em que averiguou o espaço, antes de precisar encaminhar-se pela escadaria semiescura.

Entrou na residência em silêncio – até porque concentrado em cisma de intuir a presença de olhar às costas –, portando compras de supermercado feitas em quantidade acima das aquisições tradicionais. Em demasia frutas, ovos, leite, pães, queijos, café, iogurtes, cereais, alguns quilos de carne e frango, arroz, feijão, açúcar, verduras, legumes. Por diferença quanto ao padrão, parecia mesmo comida para vários dias, e isso não lhe era costumeiro. Por sagacidade, a rotina era adquirir alimentos no máximo para dois dias; não que gostasse da frequência no supermercado, muito mais pela certeza de encontrar, em dias distintos, produtos sempre com melhor qualidade.

Foi excessivo, sem dúvida, pelo menos para o costume, não para as intenções. Porta fechada, uma rápida olhada no celular. Havia mensagens. Pôs o telefone sobre a mesinha de centro da sala e cuidou de guardar os alimentos nos lugares adequados. Ao fim, sentou-se em uma cadeira, na cozinha mesmo, enquanto bebia um pouco de água gelada, o olhar fixo, como quando se pensa em algo de inquietação intensa. Transpareceu cansaço.

Depôs o copo sobre a mesa no mesmo instante em que coçou a cabeça com a mão direita. A cabeça vergou-se, o olhar fitando o chão, o pensamento fervilhando: Que posso fazer? Que devo fazer? Transpôs o olhar do chão para o tremor em suas mãos. Entrelaçou os dedos e forçou-os num aperto desejoso de controle. Inútil compressão. Migrante, a tremura alargou-se pelo corpo em rápido, mas intenso rebuliço. Não posso me descontrolar!

Levantou-se de forma tão brusca que uma tontura o fez não dar o passo. Com a mão esquerda apoiou-se na mesa. Respirou fundo uma, duas, três vezes, conseguindo restabelecer-se. Serviu-se de mais um pouco d’água, bebendo-a vagarosamente. Copo na pia, caminhou lento para sua suíte.

Foi aliviando daquilo a que interpretava como carcaça todas as peças do vestuário que o acompanhara durante o dia. Cada item despido aliviou um pouco do peso nele inscupido. Um pouco, apenas. Sob o chuveiro, deixou aquela chuva lhe escorrer; agora, um corpo se refazendo – a maravilha do milagre da água.

Já com roupa leve, caseira, mais um pouco de água gelada propôs sensação de algo diferente, melhor naquele dia inquieto e naquela noite certamente ansiosa ainda em começo. Sem querer acabrunhar-se, foi lavando, cortando e dispondo em uma panela verduras e legumes para uma sopa, uma janta leve.

Enquanto o cozimento ia se confirmando na panela sobre o fogão, buscou uma cerveja na geladeira e, saboreando-a, foi, naquele limitado prazer, até a varanda olhar a rua. Não foi sem dificuldade essa vista, até mesmo em resistência o caminhar ao ponto de observação. Ele mesmo percebeu, levando a long neck à boca, um insistente tremor na mão, mesmo que leve. Sabia exatamente o que isso significava e não desejava essa recorrência.

Em sua esperança desconfiada, constatou estar deserta a rua. Apesar de se poder considerar o horário como cedo da noite – naquele momento eram exatamente 19h30min –, somente a brisa transitava por ela. Uma brisa agradável, um sopro tranquilo, quase pacificador. Somente a aragem. Ninguém na rua. Nenhuma viva alma nem indo nem vindo. Nem o casal, costumeiro na calçada, agregando amigos em torno de si noite adentro em conversa solta e gargalhadas francas. Nem ele. Nem música vinda de lá. Aceitamos a condição.

Tomou um pouco mais da cerveja, então olhou para cima, para outra varanda, de onde talvez tenha vindo o barulho de arrastado de cadeiras e vozes sussurrando, contudo não conseguiu ver nada, somente o breu e no seu prolongamento o céu estrelado. Um novo gole e seu olhar novamente inquirindo as dimensões da rua. Nada. Como se chegou a esse ponto?

Deu-se conta de que, assim como a varanda de cima, bem como todas as outras de seu prédio e dos vizinhos, a sua estava também na escuridão. Um frio ligeiro e intenso lhe percorreu a espinha. Como se chegou a esse ponto? Então viu, do lado direito da rua, três vultos apressados, vindo como que ao seu encontro. Não se parecem com ninguém que eu conheça. Anda... Mais depressa... Andem mais rápido... Mais rápido... Isso, mais rápido... Os vultos passaram ligeiros abaixo de seus olhos, sem perceberam-no, e sumiram deles na esquina à esquerda. Nossa! Quanta inquietação! Soprou um pouco da ansiedade crescente, afastando-se, ato contínuo, da varanda, andando de costas.

Na sala, a cadeira mais próxima foi-lhe o assento necessário; só então percebeu a tremura nas pernas. Mas não só as pernas sacudiam: o corpo inteiro dava sinais da vibração existente – descarga elétrica percorrendo todos os músculos e nervos. Não soube quanto tempo ficou ali, buscando alcançar o autocontrole quase perdido, procurando a normalidade da respiração a custo conseguida. Como chegamos a essa situação?

Recolheu da mesinha de centro o telefone celular nela abandonado e pôs-se a ver quantas mensagens haviam chegado – chamadas telefônicas não ocorreram. Mais de seiscentas. Correu os olhos para identificar de onde vieram, e não sentiu nenhuma disposição de respondê-las. Demorou-se um pouco naquela análise, mas não quis mesmo saber do conteúdo de nenhuma delas. Largou o equipamento novamente na mesinha de centro, sem lhe dar maior atenção.

Foi para a cozinha e apagou o fogo que já cozinhara o quase jantar. Bebeu um pouco de água. Sem perceber, iniciou caminhada lenta pelo ambiente da cozinha, um ir e vir sem sentido, sem propósito, sem destino, tão absorto se encontrava (em verdade, muitíssimo concentrado em ponto não exatamente ali); um vagar entre os espaços livres, as mãos juntas sobre a boca, deveras o pensamento em algum lugar sem que se soubesse exatamente onde.

De tão meditativo, não percebeu como lá chegou, mas se descobriu no quarto, olhando para sua foto na cabeceira da cama. E de repente já era a sua imagem no espelho se pronunciando. O tempo passa, a gente não percebe. O tempo nos vence. O tempo nos vai derrotando. E de repente não temos forças para reagir, não encontramos respostas sobre como podemos reagir.

Retornou para a sala, também escura, porém clareando-se, tempo a tempo, a partir da intermitência luminosa do celular que, embora silencioso, denunciava o telefonema de alguém por sua vibração e luz. Aproximou-se para saber quem seria o imprudente, contudo não atendeu à ligação. Será algo importante? Por que se arriscar fazendo essa ligação? Um risco, um grande risco. Será importante?

Não atendeu.

Afastou-se em passos lentos para a cozinha, o único lugar da residência cuja luz central estava acesa, enquanto no quarto um abajur. O breu era a tônica nos outros ambientes. Seu caminhar ali foi irregular outra vez, sem um ponto fixo a chegar. Ir e vir... Ir e vir... Ir e vir... numa lentidão de uma marcha enervante a um observador que não conhecesse as reflexões do andante. Eu sabia: ele ignorava onde ficar, aonde ir, o que fazer. Foi à geladeira e depois retornou à sala na mesma lentidão da marcha, enquanto a mão direita destampava uma garrafa.

Mesmo no negrume da sala, por ela ia e vinha com aflita desenvoltura, à semelhança do que fizera na cozinha. Sentia-se desconfortável, não somente por ele, porém por todos os que se encontravam naquele mesmo problema. E o direito de cada um ir e vir?

Em meio ao abalo no qual se encontrava, sentiu o sabor gelado de nova cerveja. Estava parado, na sala negra, olhando fixo para a varanda. De quando em quando um gole na bebida, a visão fixa na varanda, os sentidos investigando qualquer algo estranho lá fora. Mas nada vinha. Parecia mesmo tudo estar em calmaria, tranquilidade.

O olhar para a varanda. O olhar para a varanda. O olhar e a audição pela varanda, intuindo, interpretando. Eram passos, contudo passos preocupados em não serem ouvidos. Passos e passos e outros passos e outros passos quase que em perfeito silêncio para não haver escuta, descoberta mesmo deles. E de repente, nem o zéfiro soprou. Silêncio... Silêncio... Silêncio...

Abandonou pela metade a cerveja na garrafa e retornou para a cozinha onde declinou no copo do liquidificador as verduras, os legumes e a água que os fervera. Fez tudo girar, se confundir, se concentrar, se transformar em um líquido quase quase pastoso entre avermelhado e amarelado. Depôs tudo em um prato fundo sem deixar sobrar nada (já conhecia aquela preparação) e se permitiu consumir aquele alimento com pedaços de pão e manteiga por pouco não se preocupando – mas como?

Enquanto comia, o olhar nos vidros da janela aguçava a audição. Unicamente o som do silêncio lhe retornava. Depois de consumada a ceia, prato e talheres usados foram deixados na pia. Apagou a luz, foi fechar a porta do quarto. Escuridão!

Conferiu o tempo no celular. 21h.

A espinha sentiu um arrepio lhe correndo, frio, toda a extensão, um frio de sacudir todo o corpo. De novo a percepção das mãos trêmulas, as pernas sem força, agora um suor friento...

A intermitência da luz no celular avisava a procura de alguém. Mas quem está ligando? Por quê? Será algo importante?

Sentou-se na cadeira de frente para a varanda. Então, o olhar para a varanda. O olhar para a varanda. O olhar e a audição pela varanda, intuindo, interpretando. Como se chegou a esse ponto?

Nem um passo! Era, sim, o perfeito silêncio. A brisa leve, bem leve e o silêncio... o silêncio... o silêncio... o incômodo e estrepitoso silêncio...
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Chico Araujo publica toda quarta-feira no Evoé! A crônica "Toque" foi escrita em 30 de setembro de 2017. Leia mais Chico Araujo no blog Vida, minha vida...

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