segunda-feira, 16 de outubro de 2017

A CARNAVALIZAÇÃO NA LITERATURA MUNDIAL - Túlio Monteiro

Antes de darmos início à análise da carnavalização inserida na Literatura, é imprescindível esboçar uma síntese do conceito, especialmente segundo a visão de Bakhtin em sua obra “Problemas da Poética de Dostoievski”. Outros estudos baseados na obra bakhtiniana também nos ajudarão nesta tarefa. 

As ideias embrionárias dessa teoria são de autoria do teórico Mikhail Bakhtin. Ele deixa bem clara a influência que o carnaval exerceu sobre a literatura, resultando disso a carnavalização literária: 

O carnaval propriamente dito não é, evidentemente, um fenômeno literário. É uma forma sincrética de espetáculo de caráter ritual, muito complexa, variada, que, sob base carnavalesca geral, apresenta diversos matizes e variações, dependendo da diferença de épocas, povos e festejos particulares. O carnaval criou toda uma linguagem de formas concreto-sensoriais simbólicas. Essa linguagem exprime de maneira diversificada uma cosmovisão carnavalesca una, que lhe penetra todas as formas. É a transposição da linguagem do carnaval para a linguagem da literatura que chamamos carnavalização da literatura.
(Bakhtin 1997, p. 122)

Bakhtin, como pode ser observado na citação acima, principia definindo carnavalização da literatura como sendo simplesmente a transposição da linguagem do carnaval para a linguagem literária. 

Os efeitos cômicos apontados por Bakhtin dentro da carnavalização literária transparecem através das antíteses entre vida e morte, religião e festa, violência e orgia, inverno e primavera, carnaval e quaresma, desvendando a dialética da própria vida.

O mesmo autor (1997, p.123) afirma que “o carnaval aproxima, reúne e combina o sagrado com o profano, o elevado com o baixo, o grande com o insignificante, a sabedoria com a tolice, o bem ao mal e o sério ao cômico”. Essa série de combinações dá origem à categoria da profanação, que é formada pelos sacrilégios e indecências carnavalescas que se relacionam com a força produtora da Terra e do corpo, e pelas paródias carnavalescas dos textos sagrados e sentenças bíblicas.

O carnaval, para Bakhtin, gera um tipo especial de riso festivo. É mais do que uma reação individual a um evento cômico isolado. É uma alegria universal, dirigida a tudo e a todos, inclusive aos participantes da referida. O autor também compartilha a ideia de que o carnaval tem múltiplas faces; é ao mesmo tempo textual, pois é idealizado a partir de um texto original; intertextual, por atribuir variadas formas de interpretação dessa ideia original; contextual, por estar inserido no contexto social.

Sant’Anna (1991, p. 94) amplia a compreensão do conceito ao definir a carnavalização como “uma forma de estudar os textos literários e mesmo a cultura de um povo, procurando os efeitos cômicos e parodísticos que mostram como a comédia pode revelar alguns traços do inconsciente social”. 

Permanecendo na mesma linha, Robert Stam (1992, p. 60), diz que a carnavalização literária está profundamente enraizada numa percepção carnavalesca do Mundo. É uma transposição do carnaval para a literatura. 

Suzana Camargo (1977, p.26) procura justificar essa relação linguagem literária/carnaval afirmando que

...o que melhor expressa o carnaval são as imagens artísticas da linguagem literária, mais próximas dele devido ao seu caráter concreto e sensível. É a esta transposição do carnaval para a literatura, via às imagens artísticas da linguagem literária, que se dá o nome de carnavalização literária.

Sant’Anna (1997, P. 97), acrescenta que existe um paralelo entre as origens do carnaval e a carnavalização literária, dividindo o carnaval brasileiro em carnaval parafrásico e carnaval parodístico. No primeiro exemplo de carnaval, há todo um esforço para uma imitação de um modelo específico. A intenção é a cópia, a imitação. No segundo, há uma ruptura com o modelo, sendo que a intenção é uma representação mais agressiva, grotesca. 


O CARNAVAL NA HISTÓRIA DA CULTURA 

O carnaval surgiu como uma manifestação popular na história da cultura a partir da Idade Média. Consequentemente, todas as crenças, ritos e festividades variadas tornaram-se elementos essenciais para a sua concretização.

É uma forma complexa e variada de apresentar diversas culturas em diferentes épocas e diferentes povos. O carnaval transformou-se numa forma de expressão de massa criando uma linguagem rica em símbolos e gestos carnavalescos. Essa forma de se expressar, nos dá, segundo Bakhtin, “uma cosmovisão carnavalesca una, que penetra todas as formas dessa linguagem peculiar. ” (1997 p. 112).

Segundo a visão bakhtiniana, no carnaval todos os homens tornam-se iguais; toda distância é eliminada. Quando esse fenômeno ocorre, entra em vigor uma categoria carnavalesca específica: o livre contato familiar entre as pessoas que, em sua vida extra carnavalesca, tornam-se separados pela hierarquia do cotidiano. Mas ao estarem envolvidos no carnaval, entram em contato livre na ação carnavalesca.

A excentricidade é outra categoria relacionada à cosmovisão carnavalesca, trazendo à tona os aspectos ocultos da natureza humana, revelando-se numa válvula de escape a tudo o que é reprimido e censurado no homem.

Ainda permanecendo na visão de Bakhtin, a profanação, a excentricidade e o livre contato familiar contribuíram para a aproximar a literatura do leitor, já que essa visão carnavalesca é totalmente popular, o que não ocorre com o épico, que se mantém distante por sua forma de apresentação. 

A influência carnavalesca na literatura foi muito maior do que se pode imaginar, como afirma Bakhtin (1997, p. 129):

Em todos esses períodos de sua evolução, os festejos de tipo carnavalesco exerceram uma influência imensa até hoje não avaliada nem estudada suficientemente, sobre o desenvolvimento de toda a cultura, inclusive a literatura, que teve alguns gêneros e correntes submetidos a uma carnavalização especialmente vigorosa.

Os rituais carnavalescos, em sua grande maioria transformaram-se em literatura e, juntamente com eles, enredos e situações de enredo adquiriram profundidade simbólica. Como coadjuvante nesse processo encontramos a paródia, elemento fundamental na ocorrência da carnavalização. E é sobre ela que trataremos a seguir.

A PARÓDIA E A CARNAVALIZAÇÃO

A paródia é um elemento inseparável de todos os gêneros carnavalizados, como por exemplo a sátira, cujo tema principal consiste na crítica de instituições, pessoas, grupos ou hábitos sociais por meio do exemplo moralizante e do humor. 

Para os gêneros considerados puros que, segundo Bakhtin (1997, p.122) são aqueles que não foram “contaminados com os ingredientes carnavalescos”, como a epopeia, a tragédia e o drama, a paródia é estranha. Já para os gêneros carnavalizados, é um elemento extremamente familiar e necessário.

Na Antiguidade, a paródia estava indissociavelmente ligada à cosmovisão carnavalesca. Para Bakhtin (1997, p.127) “o parodiar é a criação de um mesmo Mundo “às avessas”. Nesse “Mundo às avessas” tudo era parodiado, como por exemplo, o drama satírico que foi, inicialmente, um aspecto cômico parodiado da trilogia trágica que o antecedeu.

Na Idade Média o uso da paródia era comum, inclusive dentro da igreja, onde os Evangelhos eram dramatizados ou apresentados de uma forma bastante diferente da tradicional. Nesse período, a vasta literatura do riso e da paródia nas línguas populares e no latim estava relacionada com o carnaval propriamente dito. Quase toda festa religiosa tinha seu aspecto carnavalesco público-popular, como por exemplo, as touradas, que tinham, àquela época, nítido caráter carnavalesco. Assim também eram os festejos de Corpus Christi, as festas da colheita da uva etc.

Segundo Sant’Anna (199, p. 30), a paródia é um efeito de linguagem que vem se tornando cada vez mais presente nas obras contemporâneas. Ele prossegue considerando que “o texto parodístico faz exatamente uma reapresentação daquilo que havia sido recalcado. Uma nova e diferente maneira de ler o convencional. É um processo de liberação do discurso”. 

Pode-se, assim, classificar a paródia como elemento fundamental na composição da carnavalização.

O CARNAVAL E A CARNAVALIZAÇÃO LITERÁRIA 

De acordo com Bakhtin (1997, p. 113), em períodos anteriores à Idade Média, antes mesmo do estabelecimento da Igreja, já coexistiam o aspecto sério e o cômico. Na Idade Média, os ritos e espetáculos eram organizados tendo como base o cômico, o satírico. Naquele período, já se podia perceber um distanciamento da organização das cerimônias oficiais da Igreja.

A partir da Idade Média o carnaval criou um segundo Mundo, onde durante o carnaval as pessoas se despiam da realidade em que viviam para uma vida ao inverso.

Camargo (1977 p,18 e 19) fala com muita propriedade sobre o assunto:

Durante o carnaval, as regras do bom-tom são abolidas. Estabelece-se uma vida ao inverso; onde as restrições da vida normal são suprimidas através de um processo de desierarquização que derruba todas as barreiras sociais, as quais são substituídas por uma atitude carnavalesca especial: o contato livre e a familiaridade – o que constitui uma das mais importantes categorias da percepção carnavalesca do Mundo.

Isso comprova que o carnaval surgiu como uma manifestação popular, onde as pessoas se distanciam de todo e qualquer paradigma imposto, seja pela Igreja, seja pela sociedade. A paródia, frequentemente era um elemento constante nesse modo de manifestação popular, subvertendo o sério transformando-o em cômico. 

A linguagem carnavalesca não poderia ser facilmente traduzida para a linguagem verbal. No entanto, foi possível uma transposição das imagens artísticas para a linguagem da literatura. 

Essas formas e símbolos da cosmovisão carnavalesca se misturaram a muitos gêneros literários, onde houve uma conversão dos elementos carnavalescos em uma imagem artística da literatura. Esses elementos criaram meios de interpretação artística da vida, resultando numa linguagem cheia de símbolos, caracterizando o fenômeno da carnavalização literária. 

CARACTERÍSTICAS DA “LITERATURA CARNAVALIZADA” 

Bakhtin delineia as estratégias polifônicas artísticas que deram origem à carnavalização literária, ou seja, as características que abrem caminho para a carnavalização de textos. A presença constante do elemento cômico é a primeira característica apontada por Bakhtin, onde o efeito cômico é obtido através de recursos retóricos que são a sátira, a paródia, ausência de vírgulas, reiteração de vocábulos e recursos de pontuação.

A literatura carnavalizada não tem nenhum compromisso com a história nem com a tradição. Isso, segundo Bakhtin, revela a libertação das limitações históricas e total liberdade de invenção filosófica e temática: “Em toda a literatura mundial não se encontra talvez gênero mais livre em fatos imaginários e fantásticos (Bakhtin 1997, p.160). ”

O teórico e formalista russo prossegue apontando as aventuras da ideia e da verdade através do Mundo como sendo a característica mais importante na carnavalização da literatura, pois “consiste em que a fantasia mais audaciosa e descomedida e a aventura sejam interiormente motivadas, justificadas e focalizadas aqui pelo fim puramente filosófico-ideológico, qual seja, o de criar situações extraordinárias para provocar e experimentar uma ideia filosófica”. Através de uma ironia, por exemplo, as ideias filosófico-ideológicas são externadas com o objetivo de testar a reação do leitor.

O diálogo filosófico, o simbolismo elevado e o fantástico aventuroso são, de acordo com Bakhtin (1997, p.115), uma característica da literatura carnavalizada que gera uma “combinação orgânica do fantástico livre e do simbolismo, e, às vezes, do elemento mítico-religioso com o naturalismo de submundo extremado. As aventuras da verdade na Terra ocorrem nas grandes estradas, nos bordéis, nos covis de ladrões, nas tabernas, nas feiras, prisões etc.”

Uma outra característica da literatura carnavalizada é a sincrese que, na visão bakhtiniana, é a confrontação de diversos pontos de vista sobre um determinado assunto. São os prós e os contras que se confrontam nas questões da vida. A aproximação desses elementos pode estar presente numa mesma obra resultando em sincretismo.

A estruturação dos três planos: Terra, Céu e Inferno constitui uma característica importante na literatura carnavalizada, de acordo com a visão bakhtiniana. Segundo o teórico, esses três planos tiveram uma repercussão determinante sobre a estrutura dos mistérios da Idade Média e sua construção cênica.

Outra característica fundamental da literatura carnavalizada, apontada por Bakhtin é o fantástico experimental. O autor afirma que essa característica é obtida através do mítico, do ficcional e do real colocados num plano atemporal. 

O teórico segue descrevendo a representação de estados psíquicos anormais ou não habituais como uma característica que é vista como um recurso pela personagem da literatura carnavalizada. Camargo (1977, p. 49), tratando do mesmo aspecto, afirma que o personagem perde o rumo de sua própria origem e cessa de coincidir consigo mesmo. Há um diálogo entre o homem e sua consciência. Essa autora afirma ainda que o papel cômico não é o limite desses fenômenos, mas exerce, porém, forte influência sobre a forma do gênero carnavalizado. Os devaneios, os sonhos e loucuras destroem o homem e sua unidade épica trágica. Descobrindo nele um homem diferente.

Outra característica apontada por Bakhtin é a infração às regras do “bom-tom”. De acordo com sua teoria a literatura carnavalizada “ama” as cenas de escândalo, as condutas excêntricas, as resoluções e as manifestações deslocadas, enfim toda a variedade de infrações ao curso normal e ao “bom tom” dos acontecimentos, às normas estabelecidas da conduta e da etiqueta, aí entendida como a palavra. Em sua estrutura artística, esses escândalos diferem claramente dos acontecimentos épicos e das catástrofes trágicas, não passando de golpes teatrais como nas comédias. Nesse tipo de literatura é possível dizer que surgem novas categorias artísticas: escândalos e extravagâncias, completamente estranhas à epopeia clássica e aos gêneros teatrais. Os escândalos e as extravagâncias abrem uma brecha na “respeitabilidade” dos acontecimentos e das ações humanas, deixando livre a conduta humana das normas e das motivações pré-determinadas. Bakhtin assinala a grande frequência da “palavra inconveniente, seja por sua sinceridade cínica, seja pelo exagero da etiqueta. ” 

A literatura carnavalizada é feita de contrastes violentos, de oximoros. Ela joga com transformações bruscas, reviravoltas, alto e baixo, aproximações inesperadas de objetos afastados etc.

É através de características, como as anteriores, que se tem nitidamente a visão do que Bakhtin chama de “carnavalização”, isto é, a transposição do carnaval para a literatura. Essas duas características surgem das categorias de percepção carnavalesca do Mundo, já mencionadas anteriormente: a excentricidade, a familiaridade e a profanação.

A literatura carnavalizada caracteriza-se, também, pela presença dos elementos de utopia social, introduzidos sob forma de sonhos ou de viagens por países que não existem. Uma necessária e inseparável dos outros elementos desse gênero.

Havemos ainda que mencionar a presença abundantemente de gêneros “intercalares”: notícias, cartas, discursos de oradores, simpósios etc.; além das quadras populares e cordéis que, na literatura carnavalizada, são apresentadas com um certo humor. 

Finalmente, a última característica essencial da literatura carnavalizada tratada pelo teórico russo: a opção pelos problemas sócio-políticos contemporâneos, que eram de alguma forma, “o gênero ‘jornalístico’ da Antiguidade”. Segundo ele, esse gênero é repleto de polêmica aberta ou dissimulada com diversas escolas, tendências, correntes filosóficas e religiosas, imagens de homens ilustres contemporâneos ou mortos recentemente, “mestres de pensar”, em todas as esferas da vida social e ideológica, cheias de alusão a acontecimentos grandes ou pequenos de época; elas descortinam as novas tendências na evolução da vida cotidiana, mostram o nascimento de novos tipos sociais em todas as camadas da sociedade.

É por meio de tais características, portanto, que se tem a visão do que Bakhtin chama de “carnavalização”, isto é, a transposição do carnaval para a literatura. 

O leitor que me perdoe, mas como o assunto é muito amplo e sei que uma leitura de grande porte demanda tempo e paixão, paro, hoje, por aqui. Pois já tendo esboçado até aqui um quadro geral da carnavalização, na próxima semana realizaremos a aplicação dessa técnica literária o romance Macunaíma, de Mário de Andrade. Até aproxima segunda.


BAKHTIN, Mikhail. Problemas da Poética de Dostoiévski. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1997. 
CAMARGO, Suzana. Macunaíma: ruptura e tradição. São Paulo: João Farkas / Massao Ohno, 1977. 
SAN’TANNA, Affonso Romano de. Paródia, Paráfrase & Cia. 4.ª edição, São Paulo: Ática, 1991. 
STAM, Robert. Bakhtin: da teoria literária à cultura de massa. São Paulo: Ática,1992.

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Túlio Monteiro - escritor, biógrafo, pesquisador, revisor, ensaísta e crítico literário, publica todas as segundas aqui no Evoé! Leia também Literatura com Túlio Monteiro.

Um comentário:

  1. Presado Túlio Monteiro, bato palmas a seu texto - uma leitura brilhante do "carnaval em literatura" em contatos e intertextos de inegável qualificação.

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