quarta-feira, 23 de agosto de 2017

Matar um leão por dia - Chico Araujo




Saiu de casa, manhã cedo, com a frase na cabeça: Matar um leão por dia. Já a escutara diversas vezes na vida, mas essa repercussão em sua consciência naquele dia deveu-se a uma matéria jornalística que vira há pouco em um canal de televisão. Pouco depois, quando em caminho para o trabalho diário, deu-se conta de que a frase não ficara na matéria jornalística, mas o acompanhava passo após passo.
Certamente por causa do ecoar daquele adágio lembrou-se de outro também corriqueiro: O mar não está para peixe. Fazendo uma espécie de cruzamento associativo dos dois, ruminou, amargamente, o seguinte: Se “O mar não está para peixe”, é muito certo que eu e muita gente que conheço, também muita que nunca conhecerei, terá que “Matar um leão por dia” de agora por um tempo, um tempo sem precisão de quando terminará.
Devido a um espasmo, estacou abruptamente. O instinto trouxe-lhe a visão da família, de amigos, de conhecidos. Foi um instante rápido, mas densamente violento. E então, uma surpreendente reflexão o acometeu: Preciso prosseguir. Não posso ficar paralisado aqui. Sem mais demora, foi pisando seu caminho corriqueiro, de maneira diferente.
Entrou no ônibus em uma parada posterior àquela onde sempre o esperava – passara do ponto, sem qualquer percepção desse fato. Estava distante; ficara pensativo desde o momento em que foi obrigado a se defrontar com “aquele leão”. Não fosse o motorista do ônibus, não desceria na parada habitual:
- Seu Arguto, algum problema?
- Hamm?
- Sua parada é essa.
- Parada?!... Ahh, tá... Obrigado.
- O senhor está se sentindo bem?
- Estou... estou... Muito obrigado.
Desceu e foi caminhando com aquela dificuldade pela calçada irregular, a mesma e velha calçada cujos vários problemas o motivaram a peticionar à prefeitura, respaldado em abaixo-assinado conseguido com paciência e muita conversa com os signatários. Mas a calçada não o estava incomodando naquela manhã, nem percebida era. O pensamento de Arguto se ampliara em questões e se alongara no tempo.
Os filhos, os netos, os bisnetos... Como ficariam todos a partir daquele novo momento político-econômico do País? Certamente aquela confusão toda iria impactar socialmente e mexer com a vida das pessoas, por gerações e gerações.
- É óbvio que a população perderá de novo, e mais uma vez; e outra vez aqueles que já têm muito, mas que sempre querem mais, vão continuar conseguindo o que quiserem, sem se preocuparem com aqueles que vão deixar em muito mais precisão.
Arguto parou sua caminhada em frente ao portão de entrada na empresa na qual era trabalhador há muitos anos. Tantos anos que merecera a confiança dos chefes e patrões e conseguira chegar àquela função de supervisor de pessoal de oficina. Era tão importante sua função que dependia dele a contratação e dispensa de alguém. Sentia orgulho de nunca ter demitido ninguém do seu quadro. Ao contrário, com sua maneira de pensar, antever momentos e capacidade de convencimento, conseguira ampliar os postos de trabalho na oficina, promover funcionários antigos para novas funções, enquanto contratava outros para as funções em demanda.
Quando já pisava o chão da empresa, ouviu a ordem:
- Dr. Andejo quer falar com você antes de começar o expediente.
Não foi sem sobressalto. Sentiu mesmo a sensação de tudo ter mudado em seu espírito desde o instante de contato com um leão merecedor de morte a cada novo dia. Desde aquele encontro, nada, até ali, ficara como antes houvera sido.
- Seu Arguto, vou ser direto.
- Bom dia, Dr. Andejo.
- O Sr. sempre foi um funcionário muito importante para essa empresa e mesmo tem ajudado muito para o crescimento dela.
- Obrigado pelo reconhecimento.
- Por isso, vamos remanejá-lo para o Setor de Compras.
- Setor de Compras? Mas não sei nada sobre isso de compras pra empresa.
- O Sr. é inteligente. Vai aprender rápido.
- Mas...
- O seu salário será mantido, aliás tudo o que conquistou aqui está mantido, não se preocupe.
- Mas...
- O Sr. já começa agora. Acompanhe a senhorita Vanglória. E Sr. Arguto... Não se preocupe com mais nada. A partir de hoje, pense somente na nova função.
A apreensão cresceu durante a “conversa” e quando terminou, a inquietação era total em seu espírito.
De maneira diferente, ele e todos aqueles com quem trabalhara na oficina durante anos teriam de matar um leão por dia dali por diante. Uns mais outros menos, mas todos.
E muitos mais alguns.

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Chico Araujo publica toda quarta-feira no Evoé! A crônica "Matar um leão por dia" foi escrita no dia 22 de agosto de 2017. Leia mais Chico Araujo no blog Vida, minha vida...


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