sexta-feira, 27 de julho de 2018

X, cromossômico X! - Kelsen Bravos*

A letra xis do nosso alfabeto tem inúmeras acepções. Todas elas tão ricas em sentidos, um turbilhão de signos, sem dúvidas, fina expressão metafórica. Quem não admite ter utilizado a expressão xis da questão? Quem não há de reconhecer ter, na descoberta de seu valor nas provas de matemática, a redenção para gozar as merecidas férias? Mas xis, dos tempos de escola, lembro muito o dos cromossomos.

Sei, daquele tempo, que, dos 23 pares de cromossomos, os atinentes à sexualidade envolviam o par de xis ou a dupla x e y. Explico já o porquê do "envolviam", pois a ciência parece ter avançado a ponto de desconsiderar tamanha descoberta e alegar ser apenas um gene o definidor da diferença entre o masculino e feminino. Um tal de TDF (Fator Determinante dos Testículos), obviamente, só presente nos indivíduos de sexo masculino, é, segundo eles, o grande responsável pela clássica distinção. Vocês imaginam a tamanha desgraça para uma das mais preciosas metáforas do xis os cientistas estadunidenses proporcionam com essa descoberta em 1988? Uma lástima! Pois eu a ignorarei para todo o sempre, porque para mim o que define a sexualidade são as combinações dos cromossomos alossomos, heterossomos x e y, sendo a mulher xx e o homem xy, o TDF é outra questão e ponto final!

Fiquei craque no x, cromossômico x, quando cursava o segundo grau (hoje ensino médio). Não lembro se estava no segundo ou no terceiro ano. Foi graças a um professor de biologia. O cara era um misto de canastrão com idiota metido a conquistador barato. Só andava de branco, metido a doutor. A gente vê cada coisa no magistério, viu? Pois, creiam, sou de uma tal maneira agradecido a ele por ter gabaritado as questões de Biologia do vestibular. Deixem-me contar...

Sempre tive o hábito de estudar, antes das aulas, o assunto programado para elas. Em casa nunca me faltaram os livros didáticos de referência. À proporção que estudava descobria novas fontes bibliográficas, pedia a meu pai e, com prazer, ele providenciava. Demonstrava satisfação ao me ver estudar noite adentro. Quando levantava de madrugada para beber água, ele passava pela mesa de estudo e me dizia ser hora de dormir, mas não insistia. Às vezes conversava um pouco comigo e depois me recomendava não menosprezar o sono (ainda hoje - benza Deus! - me fala isso.) 

Estudava beneditinamente todas as matérias escolares. Mesmo nas férias. Era um prazer. Então as aulas dos professores me serviam ou para confirmar minhas certezas ou para dirimir minhas dúvidas. Raramente levava cadernos ou livros para escola. Um bloco de rascunhos, uma agenda para anotações esparsas ou rabiscos poéticos. Livros mesmo eram de literatura, em sentido amplo, sem ter a ver com o currículo escolar. Se uma aula, para usar uma gíria em xis mais recente, caminhava para xablau (caos), eu mergulhava ali mesmo no livro extra-escola de então e me "ausentava" da aula.

Pois nem pensei duas vezes em mergulhar na leitura extra, quando o tal professor de biologia começou a falar da definição da sexualidade, dos órgãos reprodutores, dos cuidados com os órgãos genitais e se deteve na questão de quão importante era a tal primeira vez para as meninas, por isso elas deveriam buscar alguém com experiência. Falava em tom jocoso e de autopromoção. Ouvi risinhos das meninas. Escárnios da rapaziada. Que efedepê, pensei. Daí peguei meu livro de então e nele me ausentei daquela aula.

Meu gesto feriu os brios do professor. Ele perguntou irritado sobre o livro. Não estava a ler nenhum romance. Ou era o best-seller Xadrez Básico (preparava-me para a competição de xadrez estudantil da qual fui vice-campeão) ou era O Governo de João Goulart - As lutas sociais no Brasil (1961-1964), publicado pela Civilização Brasileira, de autoria de Moniz Bandeira, um livro difícil - àquela época - mas intrigante, leitura dividida com meu pai.

"Ou para de ler ou sai da aula!" Fiz não ouvir. "Ou para de ler ou sai da aula, mocinho!" Silêncio. Sem nada dizer, me levantei e me dirigi à saída. Ficava ao lado da lousa. "Se não consegue respeitar a minha aula, não merece estar nela, seu moleque! Onde já se viu negligenciar a minha aula! Você devia procurar um médico!" E você, um circo, pois lá é que é lugar de palhaço! "Você vai ser expulso!" Antes de sair ouvi um colega gritar: "Ele é atleta!" (Eu fazia parte da seleção de handebol da escola, base da seleção cearense, pagava meus estudos assim).

Uma colega, logo após, também saiu de sala em solidariedade a mim e me avisou: "Ele disse que vai reprovar você." Dei de ombros. Ela parou na minha frente e me olhou de x a y e eu senti os xx dela bem quentes. Lábios entumecidos. Colo ofegante. Um perfume úmido rescendia dela. Éramos feromônios em sintonia. Demos um jeito de sair da escola e fomos para a sessão de cinema das cinco dar mais sentido a seu batom.

Fiquei, pela primeira vez, de recuperação. Ela também. Resignado, aproveitei para me dedicar, como nunca, à matéria. Vocês nem imaginam quão estimulante foi estudar com ela. Entregamo-nos de corpo e alma à Biologia. Após a prova de recuperação, comparamos nossas performances: gabaritamos as respostas! Nunca fizera uma prova tão consciente. Ela tirou dez! Qual foi minha surpresa ao me ver reprovado de ano em Biologia com uma nota zero! De imediato, solicitei audiência com a direção. Um dos diretores era professor de Biologia, pedi a revisão dele da minha prova. Dez! Contei-lhe então todo o ocorrido. Vou quebrar a banca desse pulha! Falei ali mesmo. Talvez pela minha índole pacífica, a direção não viu ameaça. Nem eu. Ela, eu não sei.

Saímos da sala da diretoria, ao passar pelo pátio, lá estava o tal professor todo vestido de branco, era assim um doutor cheio de banca, daqueles de não dar mão a pobre nem carregar embrulho, em meio a uma roda risonha das bazófias dele. Ao me ver, falou mais alto: "eu não disse, olha o reprovado!"

Minha colega xx, determinada, íntegra, doce, percebeu-me o par y em desvario. Atinou iminente desatino. Desde esse dia, convenci-me do equilíbrio feminino ter a ver com a pertinência cromossômica dos dois xises. O masculino é de rompante, desequilibra-se facilmente. Reparem bem se não é o Y um X-saci. Para se pôr em pé precisa do xis ali , bem ao lado. Ela nem acreditava nessa tamanha força do x, cromossômico x! Nos últimos dias, a convencera crer, porém... Hoje vejo o quanto faz sentido a descoberta dos cientistas estadunidenses... pois é... agora eu sei, foi o tal TDF. Ele desatinou. Evoé!

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*Kelsen Bravos - professor, escritor, compositor, editor do Evoé!

2 comentários:

  1. Sala de aula sempre é espaço onde ocorrem fatos no mínimo interessantes,algumas vezes prazerosos, outras nem tanto. Contudo, quase sempre, no mínimo valiosos para o aguçamento da criticidade de quem lá se encontre, se lá estiver de verdade.

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