segunda-feira, 4 de junho de 2018

Q DE QUE OS ANJOS NÃO DIGAM AMÉM - Túlio Monteiro*

Amanheceu meio torto como um daqueles anjos de Drummond. Nada nos bolsos ou nas mãos que pudesse chamar de seu, mas sentindo-se o sujeito de sempre: um tanto quanto soturno devido aos anos que lhe pesavam às costas feito fardos espinhentos e irresolutos. Necessitava ser gente novamente, algo surreal, algo nada fácil de ser como a essência vil dos mais terríveis pesadelos humanos, por que não dizer desencantados do Mundo?! Era um bicho na melhor das acepções de Graciliano, mas um bicho-homem no sentido maior do ser que queria e não queria ser.

Era uma manhã fria, daquelas de congelar os ossos dos mais resistentes. Mas estava calmo, afinal desavenças e cerceamentos eram a sua praia, seu habitat natural, já que sempre fora um indivíduo polêmico, ateu e apolítico. Não seria aquele dia sem graça e gris que o tiraria do sério pela enésima vez. Não! Não se deixaria abater por mais 24 horas de insatisfação com a humanidade e com ele mesmo. Sairia para se tornar – pelo menos naquele instante – uma criatura ensolarada, dessas de dar gosto de ver e de se tocar. Algo brilhante como a tez de uma manhã risonha e nada nefasta. Um ser de luz, como os anjos que anunciam o nascer de um novo período de vida iluminada como os poemas de um certo Diogo Fontenele.

Pois que fossem eternos enquanto durassem os instantes que viriam dali para a frente. Fazendo de sua existência algo mais prolixo ou um tanto quanto menos nevrálgico. O ponto de toque e de exatidão dos ourives mais aplicados. Naquele momento, queria porque queria ser mais que aquela sequidão humana que se tornara com o passar dos seus séculos de existência. Já que era uma criatura das trevas, que se desse ao luxo de pelo menos uma vez tornar-se luz e não pus. Era seu desejo, era sua obstinação!

E deu asas às suas muitas facetas de truculências natas. Coisas que sabia fazer com a precisão de quem calibra armas de fogo e bólidos fumegantes. Era, na verdade, um ser da escuridão maior, da inversão, do ser gauche na vida. Práticas tão audazes quanto as de seu mestre maior: Satanás! Audácia! Essa, sim, sua característica maior enquanto animal escuro a cultuar o negro, o insosso, o etéreo...o nefasto!

E por mais uma vez tornou-se contraluz, o inverso, o cânhamo dos enforcados. Um bicho louco nas terríveis trevas da madrugada que se achegava. Precisava agora de vítimas, almas devassas em tempos de crise e escuridão. Era agora caçador em busca das ovelhas desgarradas de um Deus insípido e castigador. Um Deus destruidor. Um Deus de castigos delituosos. Um Deus de juras nunca cumpridas. Um Deus!

Pois se era um anjo avesso, caído, que fosse o melhor. Que se tornasse presa nada fácil ao seu Mestre Maior. Que o enfrentasse em luta por seu trono, por suas riquezas. Afinal, não era isso que Ele havia lhe ensinado com o passar dos milênios?! Sim! Concorreria para alcançar o patamar máximo das mazelas humanas. Queria se tornar Calígula no lugar de Calígula. O Mestre dos Mestres, pois sua avidez por poder e força lambia-lhe os beiços de contornos assimétricos. Era um animal aflito pelo sangue puro das donzelas de Da Vinci. Um impuro a buscar a perfeição máxima do imperfeito, do inverso, do verso instantâneo de um demônio sóbrio dos sobejos que lhes são atirados, aos montes, pelo Deus há pouco referido. Um Deus destruidor. Um Deus de castigos delituosos. Um Deus de juras nunca cumpridas. Um Deus!

E para que seus reclames se tornassem realidade, valeu-se do sangue de mil virgens, puras moças de vestes intactas pelo celibato de vidas inteiras, feito freiras em reticentes e convenientes aos seus embriagantes e nada afetuosos desejos carnais.

Era agora a pintura maior das desgraças humanas. Universo em busca do contra, do erro – por menor que fosse – para castigar uma humanidade tão desumana e carente de luminescências e atos remissores. E como era boa a sensação de insatisfação perante seus atos, seus gestos de nada afagados. A sua insalubridade era agora seu cais de porto seguro apinhado de sargaços e de velhos barcos naufragados. Pois que que viessem os mais fortes e afoitos anjos do bem. Seriam bem mal recebidos ante sua insensatez de demônio troglodita. Afinal Djins são flores de jardins a apunhalar o espinhaço de um Jesus que sofreu alhures pelos seres vis, cadavéricos e encovados qual o quasímodo de Lesley-anne-down.

Seria, destarte, sua plataforma de parlamento a vingança pagã de um ser antiluz a não cintilar no universo frio do desencanto. Do corcovear de um corvo de Poe, poeta louco a crocitar: – Nunca mais! Nunca mais! Nevermore! Nevermore!

Satisfeito então com seu doce remoer, deitou-se à margem nada esplêndida dos seres pantagruéis por carne humana e amor carnal de virgens celibatárias das mil e uma noites. Daquelas de dar gosto e conforto pleno aos seus instintos mais obscuros e enojantes.

Que fosse, a partir daquele instante, Satã no reino de Satã. O Mestre dos Metres. O combatente refratário das indelicadezas humanas. Afinal, era sua obra e objetivo de existência combater um certo Deus. Um Deus destruidor. Um Deus de castigos delituosos. Um Deus de juras nunca cumpridas. Um Deus! Pois que assim fosse e os anjos nunca dissessem Amém!


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*Túlio Monteiro – escritor, crítico literário, publica todas as segundas aqui no Evoé! O texto "Q de Que os anjos nunca digam Amém" integra o projeto Abecedário de Crônicas do Evoé! Leia também Literatura com Túlio Monteiro.

6 comentários:

  1. Túlio Monteiro destila com maestria em seu primoroso conto-denúncia o estado a que se pode chegar a partir da condição humana, recruciada pela atual circunstância, regurgitante em busca de Luz!

    Sensibilidade digna de John Milton, Baudelaire, Álvares de Azevedo, Bernard Shaw, Blake, Mark Twain, Poe, Augusto dos Anjos... e José Alcides Pinto. (KB)

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  2. Um conto libertário aos desavisados leitores desses tempos insanos e confusos! Uma escrita que vislumbra anjos tortos drumonianos e se liquefaz com o universo poeticamente assombroso de um Poe! A linguagem é ferina, feito bicho - homem animalizado, diante dos desencantos do mundo. Mas é de onde se extrai a força estilística encontrada em fragmentos como: “perfeição máxima do imperfeito, do inverso, do verso instantâneo de um demônio sóbrio dos sobejos”, que mais soam como temporadas no inferno de Rimbaud!

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  3. Pena que esse anjo "torto" não se deslocou para Brasilia, Washington, Paris, Moscou...e foi vagar de forma insana pela nossa Fortaleza..loira desposada do sol. Ai como passe de magica diante de tanta beleza viu que seu desejo brutal de castigar todos como se fora um Deus castigador nao passava de uma ressaca moral.Ai nesse momento como se enxergasse a bola 77 de um jogo ludico qualquer...despertou. e viu que sua missao maior de anjo torto seria escrever como sua pena tambem torta...delicias e misterios de sua invulgar criatividade.

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  4. Pena que esse "anjo torto" nao tenha se deslocado para Brasilia, Washington, Londres,Paris, Moscou ou Londres ..e para nossa felicidade saiu divagando pela nossa loira desposada do sol nossa capital alencarina com um desejo insano, ou talvez legitimo, de um Deus castigador. Ai diante da beleza natural e das caracteristicas desse nosso povo cearense, acreditou que aquele desejo de ser o mestre dos mestres nao passava de uma ressaca moral e como se avistasse o numero 77 de um jogo ludico qualquer, percebeu que sua missao era mais nobre. Usar sua pena (também torta talvez) e nos deliciar com sua inigualável criatividade.

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  5. Perfeito o comentário de Clauton. Nada mais acertado em respeito ao que eu quis explicitar nessa crônica diabólica. Meu muito obrigado pelas palavras sinceras. Túlio Monteiro.

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  6. Túlio Monteiro divaga sarcásticamente desse mundo de trevas, onde o viver metafísico esbarra na coluna de prata dos viajantes da loucura de Poe, ou relembra em suas lucubrações delirantes a caminhada árdua de um quixote errante, ou de um Mário Gomes, que busca a sua grandeza na eminência de sua total ilucidez. Parabéns por mais essa sua grande obra literária.

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