sexta-feira, 1 de junho de 2018

Pereira de Açúcar, pinga-fogo, presepeiro e redentor - Kelsen Bravos*


Para cumprir o Abecedário de Crônica do Evoé com tema em P, tive de excluir todas as opções pensadas - algumas até já escritas - para privilegiar a de meu pai. Logo cedinho da manhã, o encontrei tão melancólico que, para animá-lo, pedi uma sugestão.

- Progresso! - respondeu.

- Certo, pai, é um belo tema, mas que assunto o senhor sugere?

- Peraí, que estou Processando. - falou com o jeitão divertido, brincando em pê. Seu espírito já dava sinal de estar recuperando o bom humor.

Deu-se um longo silêncio. Depois de eu mais uma vez dizer que deixasse de me enrolar e dissesse o assunto para a proposta, ele respondeu: "Pereira de Açúcar" - e caiu numa gargalhada de menino presepeiro - "Pereira de Açúcar e o seu mais doce olhar".



Aí tem, pensei, enquanto esperava ele verbalizar o turbilhão de pensamento gaiato que seus olhos anunciavam. "Você é a prova maior do resultado de que o olhar do 'Pereira de Açúcar' é um 'Progresso' e tanto." (Lembrei do sorriso de minha mãe ao ouvir essas imodéstias de meu pai.) Estava ali diante de mim o seu Pereira, o "Príncipe Chocolate" pleno, em seu bom humor recuperado. Já entendi, pai, deixa comigo...


Meu pai recebeu várias referências em pê: Pinga-fogo foi na infância e na adolescência. Fez jus a muita peia que levou de minha avó. Ela não era moleza e nem aliviava. Quando com raiva, parecia um vulcão em incontida erupção. Bem diferente de meu avô que ao chegar e ouvir o relatório de Dona Maria sobre as traquinagens dos filhos, os levava para o quarto do castigo e com a palmatória cumpria a sentença determinada pela matrona. Claro que nas filhas ele batia mais na própria mão do que nas delas. Dos filhos, ele tirava o couro. Meu pai que sempre estava na lista, descobriu com os irmãos, que se chorasse logo, ele aliviava o castigo; porém, claro, sem a Matrona sequer desconfiar. 


Mas o Pinga-fogo aprontou tantas presepadas... Uma das quais foi aproveitar um boato de que o cajueiro de uma rua meio erma era assombrado. Começou a espalhar que, no fim da tarde, principalmente, estavam aparecendo muitas visagens por lá. A história criou fama entre as pessoas mais supersticiosas. Certo dia, completou o plano. Vinham umas beatas de uma novena. Era uma tarde-noite sem luar. A escuridão logo tomou conta de tudo. Ele escondeu-se na copa do cajueiro frondoso com pequenos sacos de areia na mão. Quando as beatas passavam, jogou a areia para cima. Ao mesmo tempo emitiu gemidos de alma penada. O efeito do barulho da areia na folhagem do cajueiro associado ao agonizante gemido foi devastador. A beatas saíram em disparada, gritando por ajuda. "Valei-me, Nossa Senhora do Perpétuo Socorro!". O Pinga-fogo tomou rumo contrário, desviou e foi direto para dentro de casa, entrou pelo quintal, para criar o álibe.

O primeiro abrigo depois do ermo cajueiro era a Mercearia do Zé Olímpio, mais à frente ficava a casa da minha Avó. Quando ouviram o alarido das beatas, todos acorreram para acudi-las. A Dona Maria nem pensou duas vezes quem seria responsável por aquilo e gritou da varanda do próprio lar: "Chiiiiiiico! Venha já para casa!" Sem nem esperar segunda ordem, ele apareceu de dentro de casa. "Pronto, Minha Mãe, o que foi?"... 

Não há crime perfeito. Ela desconfiou da respiração ofegante, do corpo suado, da roupa suja de areia e pediu explicação. Claro que resultou em peia. Até hoje ele diz que houve um dedo-duro. Naquela data, na lista da sala do castigo, como na maioria das vezes, só constava meu pai. Diz que nesse dia, quase não apanha direito, pois meu Avô não conseguia conter o riso...

O Pinga-Fogo aprontou muitas, inclusive, quando estudante do famoso Colégio Cearense Sagrado Coração, onde era habitué também da Sala de Castigo. Os motivos - todos veniais! - merecem uma crônica, cada um. Fica a promessa. Uma coisa é certa, foi no famoso Marista que ele ficou meio de mal com a idolatria católica. Tal fato aliado a seu espírito brincalhão proporcionou uma das mais memoráveis lembranças das irmãs carmelitas descalças do convento de Recife, onde sua irmã Nilza era interna.

Pois a Irmã Carmelita - assim passou a ser chamada a Tia Nilza depois de interna - após mais de vinte anos de internato, recebeu o benefício de vir visitar a família em Fortaleza. Foi um alvoroço. Lembro de sua voz macia, sorriso meigo, olhar carinhoso, do seu apreço em nos desafiar aos jogos de pega-varetas e de tabuleiro tipo dama, firo, ludo-ludo, resta um... 

O tempo de sua visita era pouco e a família enorme. Todos queriam recepcioná-la. Meu pai tratou de arranjar um eloquente motivo para convencê-la vir até nossa casa. Não apelou para a grande amizade dela com a minha mãe. Ambas eram desde sempre muito religiosas. As duas tinham planos de ser freiras. Entrariam juntas para o convento; mas aí o "Pereira de Açúcar e seu doce olhar" mudou o rumo dessa parceria. Achou por bem arranjar outro argumento. Encontrou um irrecusável...

Disse que em virtude de sua visita, ele colocaria uma imagem sagrada na sala de casa. Ela iluminou o olhar ao ouvi-lo pedir para entronizar a imagem em nosso lar. Talvez fosse o princípio de uma reconversão. Ele preparou a sala todinha, mas colocou o retrato coberto por um pano muito bem amarrado com um nó de marinheiro que só ele sabia desatar. Disse que a solenidade dar-se-ia no final da tarde, após a confraternização da família, para todos seguirem em paz a seus lares.

Passamos o dia em festa, primos e primas entretidos nos jogos propostos pela Tia Irmã Carmelita, os irmãos, irmãs, cunhados e cunhadas, uma multidão, enfim, todos em animadas conversas a se refestelar com o Ágape preparado por minha mãe e suas auxiliares com a contribuição voluntária das tias mais solidárias. De vez em quando, ouvia-se alguém cochichar para minha Avó paterna que o "Pinga-fogo" só podia estar aprontando alguma presepada. Ela dizia que ele não seria nem doido para tanto. Mas ele era sim...

Chegou a hora. Ele agradeceu a presença de todos e, após as orações, desvendou a foto. Não sem antes explicar que ali estava uma manifestação de Fé redentora de todos os preconceitos e idolatrias. Olhares de admiração e suspiros; uns de aquiescência, outros de desconfiança. Quando revelou a todos a imagem do Cristo Redentor Negro, a bem da verdade era uma foto dele braços abertos no alto de uma duna empedernida lá na praia de Morro Branco, deu-se um silêncio pelo qual se podia caminhar, pular, correr de tão denso. 

"Mas eu não estou dizendo mesmo! Eu sabia! Bem que eu desconfiava!" - foi a voz que irrompeu do silêncio. Ao lado de minha mãe, Tia Carmelita cabisbaixa permaneceu, envolvida pelo toldo das falas (em contraposição entre si) e das gargalhadas adidas àquela presepada. Meu pai a olhava fixamente. Após um breve tempo, ela se levantou sorrindo e o abraçou expressando felicidade. "Ele estava certo, o Cristo é Redentor", disse ela; mas bem que o irmão querido "merecia um puxão de orelhas".

Sei que até hoje, mesmo após a morte de sua amada irmã Zinha, freira, meu pai liga para o convento das Carmelitas, onde tem amigas muito queridas, por quem diariamente dedica afeto e orações. É fato também que, mesmo após todo esse tempo, ele é lembrado com alegria por elas, justamente pelo Cristo Redentor Negro, representado pelo Príncipe Chocolate, que numa presepeira manifestação espontânea de Fé, provou que Cristo é mesmo Redentor! Evoé!


_____________
*Kelsen Bravos - Professor, escritor, compositor, editor do Evoé! 

3 comentários:

  1. Ter o "principe chocolate" como fonte de inspiração é um privilegio. Sua trajetoria terrena deve ser digna de estudos, pois sua luta contra a morte há mais de quarentas anos não encontra explicação humana..sem dúvida é uma dádiva de Deus e talvez, naquele gracejo do Cristo redentor negro, tenha sido abençoado pelo criador.Sim abencoado pois so a sua presença ja ilumina tudo a sua volta.

    ResponderExcluir
  2. O Príncipe Chocolate, caro Clauton, se divertiu muito com esta crônica e as lembranças que lhe suscitou falar sobre e depois ler o que falou. Há muitas histórias dele aqui, ali e alhures. Histórias de guerra e de paz. Em breve estarão por aqui.

    ResponderExcluir
  3. Parabéns pelo seu belíssimo trabalho na literatura.

    ResponderExcluir