segunda-feira, 18 de dezembro de 2017

Túlio Monteiro: DO SURGIMENTO DA LITERATURA NO CEARÁ – CRÔNICA AO PROFESSOR SÂNZIO DE AZEVEDO

O ano era 1892. Naquele final de século 19, a bucólica cidade de Fortaleza tinha pouco mais que 45 mil habitantes, ficando seu centro nervoso restrito ao quadrilátero composto pelas avenidas Dom Manuel, Duque de Caxias, do Imperador e faixa litorânea.

Em uma cidade com essas dimensões geográficas e populacionais não seria de se admirar que praticamente todos os fortalezenses se conhecessem pelo menos de vista, como ainda hoje ocorre nas pequenas cidades do interior. Tudo se sabia naquela "Fortaleza Descalça", no dizer do poeta Otacílio de Azevedo, pai do Professor e Historiador Sânzio de Azevedo, nosso homenageado deste texto.

Naquela que era considerada a "Paris dos trópicos", a influência francesa se estabeleceu cedo por conta dos interesses mercantis entre Brasil e França e da privilegiada localização de nossa cidade em relação ao oceano Atlântico, não sendo estranho, portanto, que os intelectuais de nosso estado avidamente “bebessem” nas fontes de Charles Baudelaire, Paul Verlaine, Arthur Rimbaud e Stéphane Mallarmé e José Maria Herediá - Para citar apenas alguns.

Sequiosos de cultura que sempre fomos, a literatura europeia nos entrou pelos poros qual brisa leve em tranquilas manhãs de domingo. A cultura que vinha do Velho Mundo aliou-se ao que aqui já se criava, fazendo eclodir movimentos intelectuais em cada canto dessa Fortaleza cidade de Nossa Senhora da Assunção. E não foram poucos os movimentos: A princípio, os Outeiros de Governador Sampaio – de que, cá para nós, tenho lá minhas restrições quanto à qualidade dos estetas que por lá caminhavam –, passando pela poesia dos que viviam as Letras daquele então, até chegarmos à fundação da primeira Academia de Letras do nosso País; aqui estabelecida em 15 de agosto de 1894, tendo sua História dividida em três partes: A primeira iniciada em 15 de agosto de 1894, ao ser fundada a passos largos até 17 de julho de 1922, quando Justiniano de Serpa lhe promoveu a reconstituição.

Esse primeiro período foi áureo para as Letras cearenses, quando a inquietação de intelectuais já havia motivado a criação da Padaria Espiritual, dois anos antes da criação da Academia Cearense de Letras – ACL, época em que o Ceará ocupava então importante papel dentro do movimento literário nacional, tendo se antecipado inclusive à criação da Academia Brasileira de Letras – ocorrida aos 20 de julho de 1897 – e à Semana de Arte Moderna de 1922. A segunda fase da ACL teve início em 1922, quando Justiniano de Serpa, diante da situação em que se encontrava a instituição com somente oito membros ainda residentes em Fortaleza, reorganizou-a de forma peculiar. Porém, autêntica. Neste novo formato, foram ampliadas as vagas, passando de 27 para as então atuais 40 Cadeiras, tendo sido deste mesmo período a denominação dos patronos. No ano seguinte ao de sua reformulação, a morte de Justiniano de Serpa, em 1° de agosto de 1923, fez a instituição permanecer na penumbra até 1930.

Porém, como bem não poderia deixar de ser, aos 21 de maio de 1930, foi instalada a reunião de reorganização da instituição, agora em definitivo nos moldes atuais e instalada na casa de Tomás Pompeu, cito à Rua do Rosário, número 1, Centro da cidade, bem ao lado da “Praça dos Leões”.

Mas, voltemos ao início do ano de 1892 e a um dos muitos finais de tarde em que uma seleta casta de intelectuais reunia-se na praça do Ferreira para, nas mesas do saudoso Café Java, discutirem o que eles produziam e o que de melhor era produzido no seio da literatura do Ceará.

Naquele quiosque, ricamente ambientado à moda dos cafés franceses, Antônio Sales, Lopes Filho, Temístocles Machado, Tibúrcio de Freitas, Ulisses Bezerra e Sabino Batista idealizaram aquele que viria a ser o maior e mais importante movimento artístico do Ceará em todos os tempos: A PADARIA ESPIRITUAL. Digo artístico, porque no seio da Padaria não havia apenas homens de Letras. Coexistiam pacificamente naquela agremiação escritores e poetas como os que há pouco citamos, além de músicos como Henrique Jorge e Carlos Vítor, e do artista plástico Luís Sá. Isso sem esquecermos, jamais, a veia cômica do cearense de Joaquim Vitoriano, o Paulo Kandalaskaia, que não era escritor, músico nem muito menos pintor, mas, sim, um sujeito forte, bem dois metros de altura. Isso no sentido muscular mesmo. Era o sujeito que se encarregava exclusivamente da segurança física dos padeiros espirituais, que tantos inimigos fizeram ao publicar textos ácidos contra a hipocrisia e o marasmo daquela sociedade que quatro anos antes havia condenado Adolfo Caminha em virtude do seu romance proibido com Isabel Jataí de Paula Barros. Quem não conhece a narrativa de “A Normalista”, de 1893?!

Essa mistura de diretrizes e interesses culturais, aliada aos tons pilhéricos, modernizadores e nativistas explicitados nos 48 artigos do seu Programa de Instalação, fizeram da Padaria Espiritual um movimento artístico miscigenado conhecido em todo o Brasil, antecipando o Movimento Modernista de 1922 em exatas 3 décadas.

No seio da Padaria Espiritual surgiram nomes hoje considerados sagrados para a Literatura Brasileira, porque não dizer para a Universal. Nela, conviveram em harmonia Simbolistas, Realistas, Naturalistas, Parnasianos e até Românticos de última hora, a exemplo de X. de Castro, Antônio Sales, Rodolfo Teófilo, Adolfo Caminha e Lívio Barreto, para citarmos apenas alguns dos 34 grandes homens que fizeram parte das duas fases pelas quais passou a Padaria Espiritual entre o dia 30 de maio de 1892, quando foi fundada e o dia 20 de dezembro de 1898, quando realizou-se sua última sessão solene.

Sim, a Padaria Espiritual teve uma gigantesca importância para o fazer literário de nosso País. No entanto, senhoras e senhores, a inexorabilidade do tempo e o descaso com nosso patrimônio histórico poderiam ter varrido desse planeta a existência da Padaria, não fosse o trabalho árduo dos historiadores de nossa terra. Sem Antônio Sales, Rodolfo Teófilo, Leonardo Mota, Dolor Barreira e Guilherme Studart, este último mais conhecido como Barão de Studart, nenhum vestígio haveria sobrado daqueles anos de pura efervescência intelectual. Entretanto, seus estudos e livros eram um tanto quanto rasos no que diz respeito à minúcia, ao esmero e à precisão das informações pertinentes à Padaria Espiritual. Havendo, pois, a necessidade de uma obra mais completa, mais rica em detalhes e informações. Uma obra final, definitiva, que trouxesse à luz informações absolutamente corretas sobre aquele precioso ajuntamento de intelectos.

E foi nesse cenário, digo isso sem nenhum tom de bajulação, mas, sim, de admiração explícita, que surgiu o Historiador Rafael Sânzio de Azevedo. Seus muitos estudos e ensaios literários vão deixar registrados para as gerações futuras não só os feitos dos padeiros espirituais, mas também dos que participaram de tantos outros movimentos intelectuais do nosso Ceará, a exemplo do Centro Literário e da Academia Francesa.

Interrompo aqui o acadêmico que se faz necessário a este momento, para modificar as tintas do que ora vos falo. Caro professor Sânzio, desde os já idos anos 1980 e 1990 do século que já se vai para o sua segunda década, quando conversávamos ora nas salas e corredores, ora sob as sombras do sempre aprazível e mágico bosque do Curso de Letras da Universidade Federal do Ceará até os dias atuais de dura lida em busca da sobrevivência, afirmo-lhe jamais esquecerei do "pão do espírito" que o senhor tão bem ensinou a centenas de meros aprendizes a "amassar" e saborear. Na condição de seu eterno admirador, o conhecimento que adquiri através de sua pessoa caminhará ao meu lado até o fim de meus dias. Isso prometo!

Em legítima atitude de admiração perpétua, meu amigo e eterno Professor Sânzio de Azevedo. Concluo com um seu poema, o que aqui considero uma carta de absoluto agradecimento pela cultura aos seus discípulos ofertada por sua pessoa. Este seu poema é curto, mas profundo e belo. Como bem devem ser os escritos de fina casta. Poema que nos fala da efemeridade da vida e das coisas importantes – muito mais importantes que dinheiro ou status social. Poema que bate forte e faz calar no peito dos que pensam ser eternos, duras verdades sobre o começo, o meio e o fim das vidas que aqui vivemos e que tão rapidamente se vão:


Carpe Diem

Daqui há alguns anos,
todas as novidades serão velhas.

E ainda mais tarde, quando os calendários
marcarem outro século,
e quando o outro século for velho,
lápides testemunharão nossa passagem,
efêmera passagem pelo Mundo.

É incrível admitir que este momento,
este instante de agora
novo, atual, moderno,
será passado um dia...

Os últimos modelos de automóvel
(que já hoje raros chamam de automóvel)
e os mais modernos aviões
(que um dia se chamaram aeroplanos),
tudo será, futuramente,
atração de museu...

Colhamos, (doce ou amargo), o momento presente
antes que ele se torne antigamente...

Fortaleza, dezembro de 2017.
___________________
*Túlio Monteiro - escritor, biógrafo, pesquisador, revisor, ensaísta e crítico literário, publica todas as segundas aqui no Evoé! Leia também Literatura com Túlio Monteiro.

Um comentário:

  1. EStava um tanto afastado das supimpas cronicas, estudos, delicias literárias do nosso escavador literário Tulio Monteiro, mas ao retornar me deparo com um misto de aula da saudade com seu professor Sanzio Azevedo e um retrospecto genial sobre a sagacidade, pioneirismo de nosso povo (para alguns cabeças chatas) intelectual. Cronicas, histórias, vivências, tudo se resume num aprofundado estudo sobre nossa literatura, onde gigantes, vislumbram e antecipam, esses movimentos literários mundo afora....É Túlio Monteiro, embora seja efêmera nossa passagem, as obras ficarão eternas, desde de que de tempos em tempos surjam intelectuais e pesquisadores como voce.

    ResponderExcluir