sexta-feira, 22 de dezembro de 2017

O FIDALGO DAS LETRAS, MEU OUTRO PAI - Carlos Gildemar Pontes*

A humanidade perde parte da sua história quando morre um grande homem. Artistas, poetas, cientistas, grandes pensadores deixaram a humanidade órfã, em busca de substituir a perda com o conhecimento e a perpetuação da obra daqueles que se foram. Particularmente, sofremos quando estes humanistas nos são próximos. Assim aconteceu comigo. Recentemente, perdi dois grandes amigos, escritores, pensadores neste mundo esfacelado pela idiotagem generalizada.

Pedro Lyra, um ensaísta e poeta de mão cheia. Lavrador de ideias, semeador de teorias da arte e da literatura, esteta de uma poesia de amor e de combate. Foi sem pedir licença, à francesa, discreto como um camaleão que nos espia as cores.

O outro, igualmente esteta, foi mais próximo. Meu padrinho, meu professor, meu amigo, meu conselheiro e confidente, Carlos Neves d’Alge. Português de nascimento, adotou o Ceará como pátria. Era como aqueles bravos marinheiros que se lançaram ao mar para enfrentar os dragões do desconhecido. E assim foi desbravando terras, conhecendo gentes e aprendendo as artes de bem viver e escrever. Na época de maior convivência entre nós, quando fui seu aluno no Curso de Letras da UFC, sentávamos no Bosque das Letras e ficávamos horas (que para mim eram dias) de uma conversa sem fim. Eram livros, mulheres, bem-quereres, personagens, a polêmica do seu programa de rádio, que, durante tanto tempo, liderou a audiência no meio dia cearense, falávamos de tudo. E eu me inquietava para saber por que ele gostava de mim e eu dele. Um dia, com a mão no meu ombro, ele me revelou que me tinha como filho. Eu engoli seco, quase em lágrimas, aquela alegria e deixei para jorrar sorrisos depois, na volta pra sala de aula. Ele disse que eu era seu filho, repeti para mim muitas vezes. E eu ganhara um pai afetuoso e atencioso naquele momento duro da minha vida. Ele escreveu na contracapa do meu primeiro livro, era a bênção paterna de um escritor já detentor de tantas láureas. Depois fez o prefácio do meu quarto livro, este muito especial porque me revelou para a poesia além-fronteiras. Cheguei a Portugal a primeira vez pelas suas mãos. Fiquei ao lado de Drummond, Fuentes, Nejar e outros Carlos nas bibliotecas de Lisboa e do Porto. Devo muito do que conquistei a essa passagem, a estas mãos abençoadas que me deram abrigo e caminhos.

Depois que terminei o Curso de Letras, continuei frequentando a faculdade. Fiz disciplinas complementares, assisti a palestras, participei de cursos e tive mais tempo para beber na fonte do meu professor, amigo e pai. Ele me via como adulto e me cobrava mais poemas. O mundo merece nossa poesia, dizia sorrindo o Fidalgo das Letras. Era essa a alcunha que deveria constar na sua biografia. Homem de uma singeleza sem par, d’Alge parecia nunca se irritar. Que ficasse sua raiva longe da Faculdade, do Bosque, da sala, do rádio! Não queríamos saber dela. E apostávamos como ele não conseguia ficar com raiva de ninguém. Como um sentimento tão grosseiro poderia pertencer à alma de um fidalgo?

Estou triste, meu pai amigo, triste pela tua partida. Longe, muitas léguas, distante, onde moro, mais triste porque não te darei o último adeus. Uma saudade congela meu corpo e pede ao meu coração que chore, mas eu lembro com os olhos marejados daquela vez em que disseste que eu era como se fosse teu filho. E eu sou teu filho, porque nos escolhemos para ser uma família. Então, antes de passares para outra dimensão, antes de cruzares o portal da energia que retorna, dá-me a tua bênção. Isso que escorre dos meus olhos não são lágrimas de tristeza, são de alegria por seres a pessoa que permanecerá na saudade e na lembrança de um poeta órfão desta humanidade que se exaure. Obrigado, Carlos d’Alge!

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* Carlos Gildemar Pontes é escritor e professor de Literatura da UFCG, em Cajazeiras.

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