terça-feira, 26 de dezembro de 2017

A INTERTEXTUALIDADE NA PRODUÇÃO LITERÁRIA ATRAVÉS DOS TEMPOS: DE MIKHAIL BACKTIN A JÚLIA KRISTEVA Túlio Monteiro


Toda leitura é necessariamente intertextual, pois, ao ler, estabelecemos associações desse texto do momento com outros já lidos. (Maria Zilda Cury)

A Literatura, não se pode negar, encontra-se introduzida em todos os segmentos socioculturais da humanidade. Na Literatura, o chamado código verbal possui uma extensão de formas e significações tão sobremaneira extensa, que impede o esgotamento de significados de um texto em si mesmo, comprovando que, neste processo, a linguagem literária penetra no âmago de outras linguagens, ao mesmo tempo deixando-se invadir por elas, o que comprova que na atual conjuntura crítica, a intertextualidade tornou-se mais que uma mera tendência literária de época. Tornou-se uma ferramenta indispensável para a compreensão não só da Literatura como também das diversas outras linguagens que com esta mesma interagem.
Entretanto, nem sempre se viu a intertextualidade com bons olhos. A tendência romântica de crítica literária de algumas décadas atrás defendia a originalidade de toda e qualquer produção escrita, relegando a um segundo plano as relações e influências entre textos, o que impediu, durante muito tempo, a confirmação da intertextualidade como um legítimo e necessário processo de análise da Literatura.
Enquanto conceito operacional de crítica e da teoria literária, a intertextualidade foi primeiramente discutida pelo formalista russo Mikhail Bakhtin, onde ele define o romance moderno como dialógico, ou seja, um texto no qual as diversas vozes da sociedade são apresentadas por suas personagens, entrecruzando-se para relativizar o poder de uma única voz condutora. Além de considerar o fenômeno do dialogismo no contexto literário, as pesquisas de Bakhtin têm como base principal a intertextualidade na própria concepção de linguagem construída por ele. Ao contrapor-se a duas histórias dos estudos linguísticos – uma, objetivista, outra, subjetivista – o formalista propõe, como espaço de existência da linguagem, a intersubjetividade, onde a língua jamais será propriedade de um indivíduo em particular, não sendo, também, um objetivo independente de um conjunto de indivíduos. Para Bakhtin, é exatamente no cerne dos intercâmbios, dos conflitos, e das inúmeras vozes da humanidade que se espalham e se influenciam sem cessar, que a linguagem surge como processo sociabilizador. Para ele, essa linguagem, quaisquer que sejam suas manifestações, adquire uma base relacional e também interacional, ao interagir entre os indivíduos de uma determinada sociedade.
Seguindo os passos do mestre Bakhtin, a francesa Julia Kristeva definiu conceitos e formatações para a intertextualidade tal como ela é conhecida e aceita atualmente. Kristeva afirma que todo texto é criado a partir de um quase infinito mosaico de citações, onde esse mesmo texto nada mais é que uma recorrência de outros escritos anteriores. Essas "apropriações" podem ocorrer a partir de uma simples vinculação do escritor a um determinado gênero literário o – utilizemos o exemplo dos poetas simbolistas que utilizavam-se de padrões específicos para inserir seus poemas naquela corrente –, até a retomada explícita de um determinado escrito, para a criação de um "novo" texto.
A apropriação do que já foi escrito no âmbito intertextual orbita entre o ato legítimo, onde quem escreve faz referências ao autor original, até a má-fé da ilegalidade gerada pelo plágio. Nos tempos atuais, esses limites tornaram-se quase impossíveis, já que a prática da apropriação tornou-se uma característica básica da Literatura assumida pelos que lidam com a palavra e são chamados de "devoradores" de outros textos, numa clara comprovação de que há fiéis discípulos da postura antropofágica do Movimento Modernista Brasileiro, definida por Oswald de Andrade em seu Manifesto Antropofágico.
Em correspondência aberta dirigida a Raimundo Moraes, que o acusara de plágio ao escrever Macunaíma, assim explica Oswald sua atitude:

Copiei sim, meu querido defensor. O que me espanta e acho sublime de bondade, é os maldizentes se esquecerem de tudo quanto copiei de todos (...) Confesso que copiei, copiei às vezes textualmente.


A retomada de um texto por outro(s), em qualquer Literatura, inclusive a brasileira, é, indubitavelmente, uma constante. Uma clara comprovação disso pode ser encontrada nas inteligentes intertextualidades que o já saudoso cantor e compositor Belchior costumava aplicar às letras de suas músicas. Na música "Divina Comédia Humana", título que por si só já faz referências à Divina Comédia de Dante Alighieri, Belchior insere os dois primeiros versos do soneto "XIII" do mestre parnasiano Olavo Bilac, usando-os, ainda, para dar o arremate final àquela sua excelente composição. Observemos, pois:

DIVINA COMÉDIA HUMANA (Belchior)

Estava mais angustiado que um goleiro na hora do gol,
quando você entrou em mim como um sol no quintal.
Aí um analista amigo meu disse que, desse jeito,
não vou ser feliz direito,
porque o amor é uma coisa mais profunda
que um encontro casual.
Aí um analista amigo meu disse que, desse jeito,
não vou viver satisfeito,
porque o amor é uma coisa mais profunda
que uma transa sensual.

Deixando a profundidade de lado,
eu quero é ficar colado à pele dela, noite e dia,
fazendo e, de novo, dizendo Sim! À paixão,
morando na filosofia.

Quero gozar no teu céu:
pode ser no teu inferno.
Viver a divina comédia humana
onde nada é eterno.

XIII (Olavo Bilac)

"Ora (direis!) ouvir estrelas. Certo,
perdeste o senso! E eu vos direi, no entanto,"
enquanto houver espaço, corpo, tempo
e algum modo de dizer Não! Eu canto.
“Ora (direis) ouvir estrelas! Certo
perdeste o senso!” E eu vos direi, no entanto,
que, para ouvi-las, muitas vezes desperto
e abro as janelas, pálido de espanto...

E conversamos toda a noite, enquanto
a Via-Láctea, como um pálio aberto,
cintila. E, ao vir do Sol, saudoso e em pranto,
‘inda as procuro pelo céu deserto.

Direis agora: “Tresloucado amigo!
Que conversas com elas? Que sentido
tem o que dizem, quando estão contigo?”

E eu vos direi: “Amai para entendê-las!
Pois só quem ama pode ter ouvido
capaz de ouvir e de entender estrelas”.
É preciso que seja notada a perfeita relação entre o os versos escritos por Bilac em 1888 e os de Belchior, criados quase um século depois. Prova maior que a Literatura de grande qualidade sobrevive aos tempos mantendo-se permanentemente atual.
Em "Fotografia 3 x 4", Belchior novamente utiliza-se de citações literais de um outro grande poeta brasileiro, desta feita Caetano Veloso. Apropriando-se de um verso da famosa música "Alegria, Alegria", de Caetano, Belchior dialoga com o cantor baiano, mostrando-lhe que para os nordestinos que vão arriscar um futuro melhor no eixo Rio de Janeiro – São Paulo, nem sempre as coisas são tão fáceis como se pensa:

FOTOGRAFIA 3 x 4
Eu me lembro muito bem do dia em que eu cheguei;
jovem que desce do Norte pra cidade grande,
os pés cansados e feridos de andar légua tirana...
e lágrimas nos olhos de ler o Pessoa e de ver o verde da cana.
Em cada esquina que eu passava um guarda me parava,   
pedia meus documentos e depois sorria,
examinando o 3x4 da fotografia
e estranhando o nome do lugar de onde eu vinha.
Pois o que pesa no Norte, pela Lei da Gravidade
(disso Newton já sabia) cai no Sul, grande cidade!
São Paulo violento! Corre o Rio, que me engana!
Copacabana, a Zona Norte, os cabarés da lapa, onde eu morei!

Mesmo vivendo assim, não esqueci de amar,
que o homem é pra mulher
e o coração pra gente dar.   
Pois a mulher, a mulher que eu amei não pôde me seguir, não.
(Esses casos de família e de dinheiro
eu nunca entendi bem.)
Veloso, "o sol (não) é tão bonito" pra quem vem do Norte
e vai viver na rua.
(...)

ALEGRIA, ALEGRIA (Caetano Veloso)
   
    Caminhando contra o vento
    Sem lenço nem documento
    No sol de quase dezembro
Eu vou
O sol se reparte em crimes
Espaçonaves, guerrilhas
Em Cardinales bonitas   
Eu vou
Em caras de presidentes
Em grandes beijos de amor
Em dentes, pernas, bandeiras
Bomba e Brigitte Bardot
(...)
Ela nem sabe - até pensei
Em cantar na televisão
O sol é tão bonito
Eu vou
Sem lenço, sem documento
Nada nos bolsos ou nas mãos
Eu quero seguir vivendo
Amor
Eu vou
Por que não? Por que não?

Mas Belchior, como inúmeros outros artistas que se utilizam da intertextualidade para enriquecer suas composições, não se limita em inserir nas suas letras apenas citações literais de outros poetas. Ele também lança mão do artifício da alusão, um outro conceito definido por Júlia Kristeva que mais adiante detalharemos.
Mas não só na música podem ser encontradas intertextualidades, isso já afirmamos. Sejam quais forem as manifestações culturais, nelas sempre encontraremos influências sofridas, muitas vezes de forma explícita. No cinema, pois, não seria diferente. Em 1998, os Estúdios Walt Disney de animação cinematográfica, lançaram no mundo inteiro o desenho animado Pocahontas, que trata da lenda de uma índia norte-americana que se apaixona por um colonizador espanhol, após esse aportar em terras da América do Norte à época do seu descobrimento. O amor vivido entre os dois inicialmente não é aceito pela tribo de Pokahontas. No entanto, com o passar do tempo, o grande "guerreiro branco" consegue provar sua coragem e seu amor à bela índia, passando a ser admirado e aceito por todos, inclusive pelo chefe da tribo, o pai de Pokahontas.          No final, por motivos óbvios, o colonizador tem que partir de volta à Europa, deixando Pokahontas a chorar nas brancas areias da praia, ao ver o barco do seu grande amor afastar-se lentamente. Para os que conhecem o célebre romance Iracema, de José de Alencar, nada precisa ser dito. O que se observa em Pocahontas é a influência explícita a que se Mallarmé, e sobre a qual escreve Laurent Jenny em seu artigo A Estratégia da Forma, na revista Poétique:

Ao escrever: " Mais ou menos todos os livros contêm, medida, a fusão de qualquer recepção", Mallarmé sublinha um fenômeno que, longe de ser uma particularidade curiosa do livro, um efeito de eco, uma interferência sem consequências, define a própria condição da legibilidade literária. Fora da intertextualidade, a obra literária será muito simplesmente incompreensível, tal como a palavra de uma língua ainda desconhecida. (...) A sua compreensão pressupõe uma competência na decifração da linguagem literária, que só pode ser adquirida na prática duma multiplicidade de textos: por parte do descodificador, a virgindade é, portanto, igualmente inconcebível(...) Se qualquer texto remete implicitamente para os textos é em primeiro lugar de um ponto de vista genético que a obra literária tem conluio com a intertextualidade. Mas convém colocar de novo na cena formal um fenômeno mal compreendido pela tradicional crítica "das fontes".

Acontece ainda que a intertextualidade não só condiciona o uso do código, como também está explicitamente presente no nível do conteúdo formal da obra. Assim sucede com todos os textos que deixam transparecer a sua relação com outros textos: imitação, paródia, citação, montagem, plágio, etc.(...) O que, evidentemente, continua problemático, é a determinação do grau de explicitação da intertextualidade nesta ou naquela obra, excetuando o caso limite da citação literal.
Como pode-se observar, tanto Mallarmé quanto Jenny, concordam que a intertextualidade encontra-se presente em qualquer produção, muito mais do que se imagina. No entanto, a estudiosa francesa é categórica ao afirmar que devem ser estabelecidos limites entre o intertexto explícito e o plágio explícito. Ao nosso ver, para que uma intertextualidade explícita – como no caso de Pocahontas x Iracema – não se torne indébita, torna-se necessário que o apropriador credite ao apropriado a obra que ora produz. No caso do filme norte-americano, mesmo depois de uma minuciosa observação dos créditos e agradecimentos finais, nenhuma referência a José de Alencar é feita. Ou poderia ser totalmente ao contrário, uma vez que José de Alencar de Alencar até certo ponto baseia-se em uma lenda, enquanto Pocahontas foi uma Princesa Ameríndia, filha de um chefe Wahunsunacock que governava uma área que abrangia quase todas as tribos do litoral do estado da Virgínia. Pocahontas casou-se com o inglês John Rolfe, tornando-se uma celebridade no fim de sua vida. Há que se comparar isso!
Por outro lado, há escritores – inclua-se nessa categoria os roteiristas de cinema – que preocupam-se em creditar às suas fontes de influência, as intertextualizações – implícitas ou explícitas – presentes em suas produções. Em 1999, por exemplo, ao lermos mais uma vez Vidas Secas, de Graciliano Ramos, novamente não nos conformamos com o seu final. Há algo "faltando" naquele ícone do romance regionalista brasileiro. Pensando assim e abertamente influenciados pelo conjunto da obra do mestre alagoano, nos detivemos por alguns dias na construção de um novo final para Vidas Secas. Sacrilégio? Ao nosso ver não. Criar uma nova direção para uma consagrada obra não é petulância nenhuma, desde que a linha de escrita e raciocínio lógico do verdadeiro autor seja respeitada e preservada, bem como referendada. Foi o que fizemos. Apesar de sabermos ser um absurdo escrever à moda gracilianesca, cuidadosamente "capturamos" o estilo do escritor através de alguns trechos do último capítulo "Fuga", para criar nosso próprio epílogo de Vidas Secas. O resultado pode ser observado na crônica que se segue, crônica essa que tornou-se ganhadora do 2º Prêmio Ideal Clube de Literatura (Fortaleza - Ceará), na categoria trabalho inédito, em 1999.

Um comentário:

  1. Caro Túlio, parabéns pelo texto, sua leitura elucida, esclarece que o copo d'água está cheio e alguém, com capacidade poética, pode beber à vontade o liquido da imaginação literária.

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