segunda-feira, 23 de outubro de 2017

MACUNAÍMA SOB A ÓTICA CARNAVALIZADA - PARTE 2 - Túlio Monteiro


A autora Suzana Camargo em seu livro Macunaíma : Ruptura e Tradição (1977), faz uma análise da obra marioandradiana utilizando as categorias delineadas por Bakhtin classificando-a como uma sátira menipéia. Esse gênero foi assim designado a partir do nome do filósofo Menipo de Gádara (século III a.C.).
A partir de leituras sobre a carnavalização literária, entendemos que as categorias bakhtinianas presentes no livro de Camargo podem ser melhor aplicadas como sendo características da literatura carnavalizada.
Em Macunaíma encontramos quase todos os temas e estratégias bakhtinianos, ao exemplo das inversões carnavalescas e a polifonia cultural e textual. A obra marioandradiana, portanto, está profundamente enraizada na cultura popular, pois nela se alinham lendas populares – ameríndias, africanas e portuguesas – formando uma colcha de retalhos discursiva. Macunaíma explora a criatividade linguística do povo brasileiro, fundindo suas brincadeiras, lendas, canções, provérbios e superstições numa saga folclórica de um Brasil plural, como as quadras populares citadas na página 166 do livro em questão:

- Faz três dias que não como,
Semana que não escarro,
Adão foi feito de barro,
Sobrinho, me dá um cigarro.


Pode-se observar a criação de um ambiente favorável à carnavalização literária, pois o elemento chave para a criação de uma literatura carnavalizada é o popular, como já citamos anteriormente.
Como já visto acima, o efeito cômico da literatura carnavalesca é obtido através de recursos retóricos, principalmente o ponto de exclamação. Em Macunaíma, isso pode ser observado: “empregados públicos! Muitos empregados públicos! (p. 74).
Outros recursos carnavalescos presentes em Macunaíma são: o sincretismo, a enumeração e contrastes: alto e baixo, sério e cômico etc, que constituem o caráter carnavalesco, específico do elemento cômico e que constataremos no decorrer da análise.
De acordo com Camargo (1977, p. 39), os recursos utilizados por Mário de Andrade para destacar a presença do cômico, ora são empregados de forma mais atenuada em certos episódios, como no capítulo “Macumba”, onde a enumeração dos presentes é feita em ritmo de embolada, sem vírgulas a separar as diversas profissões, dando, então vocábulos de duplo sentido como:


(...) advogados garçons pedreiros meias-colheres deputados gatunos
(...) (pág. 73)
E então seguiam advogados taifeiros curandeiros poetas e herói gatunos portugas senadores (...) (Macunaíma, pág.74)


Hora aparecem com mais ênfase como na “Carta prás Icamiabas” , onde o narrador ridiculariza a literatura brasileira do período anterior e satiriza o caráter formal da linguagem da época:


Por uma bela noite dos idos de maio do ano translato, perdíamos a muiraquitã; que outrem grafara muraquitã, e, alguns doutos, ciosos de etmologias esdrúxulas, ortografam muyrakitan e até mesmo muraquéita, não sorriais! Haveis de saber que este vocábulo, tão familiar às vossas trompas de Eustáquio, é quase desconhecido por aqui (Macunaíma, pág. 95).


Em “Carta pras Icamiabas” observamos o efeito cômico através de recursos de estilo: mistura de português clássico com linguagem falada no Brasil. Há uma oposição sério-cômica.
Ainda em “Macumba”, o efeito cômico é obtido através do sincretismo de religiões, a macumba o catolicismo, conduzindo à sátira dos brasileiros de todas as camadas sociais que, por via das dúvidas, frequentam missa e terreiro:


Vai um rapaz filho de Ochum, falavam, filho de Nossa Senhora da Conceição cuja Macumba era em dezembro, distribuiu uma vela acesa pra cada um dos marinheiros(...) (Macunaíma, pág. 74)”


A carnavalização se caracteriza por uma liberdade “sem limites”. Não se restringe a nenhum paradigma. Portanto, não tem compromisso algum com a verdade. Podemos observar essa característica em Macunaíma quando os três irmãos vão se lavar numa cova cheia de água e sai cada um de uma cor, simbolizando a junção das três raças no Brasil: O branco, o preto e o índio: E estavam lindíssimos no Sol da lapa os três manos um louro um vermelho outro negro, de pé bem erguidos e nus. (Macunaíma, pág. 49).


Camargo (1977. p.40), comenta que na rapsódia marioandradiana “ há uma total libertação das limitações históricas, apresentando contatos do herói com personagens do passado estabelecendo o ‘diálogo dos mortos’ que, segundo Bakhtin, aponta um dos elementos característicos da literatura carnavalizada. ” Podemos observar que Mário transmitiu ao leitor exatamente essa “libertação”.
Na terceira característica apontada por Bakhtin, podemos observar, em Macunaíma, sua importância e presença marcantes. O herói desempenha um papel anti-civilizador e, o autor revela sua rejeição aos valores importados, que, de acordo com Camargo (1977. p. 42), são constantemente colocados à prova através da ironia e da paródia, que compõem o contexto humorístico do livro.
Notamos a presença dessa característica no episódio em que a velha Ceiuci, a caapora, leva Macunaíma para casa e ela e a “filhona habilidosa” vão “depenar” o pato (isto é, tirar o dinheiro do herói). Macunaíma é protegido pela “filhinha nova que é muito bondosa” e consegue escapar, não sem antes ter jogado debaixo da porta cem mil réis.


...que viraram em muitas perdizes lagostas robalos vidros-de-perfume e caviar. A velha gulosa engoliu tudo e pediu mais. Então Macunaíma atirou um conto de réis por debaixo da porta. O conto virou em mais lagostas coelhos pacas champanha rendas cogumelos rãs e a velha sempre comendo e pedindo mais (Macunaíma, pág. 133).


A caapora pode simbolizar a voracidade do brasileiro e sua tendência à corrupção. A voracidade (a caapora) e a dialética esperteza/ingenuidade (Macunaíma) do povo brasileiro nos trazem uma ideologia implícita que atribui a voracidade e a corruptibilidade do brasileiro à influência estrangeira, simbolizada por Piaimã, contra a qual é difícil lutar.
Observamos a presença dessa característica também, nas fugas fantásticas do herói que, escapando de seus antagonistas, encontra personagens históricos e une pontos opostos do Brasil, colocando à prova a ideia do autor de criar uma unidade nacional, que é realizada na Terra (as “viagens do herói”), no Inferno (“Macumba”, “descida ao Hades”), e no Céu (Macunaíma é transformado na constelação da “Ursa Maior”, que brilha em todo o Hemisfério Norte).
Procurando situar a quarta característica apontada por Bakhtim, encontramos um Macunaíma como herói dialógico no qual "se fundem o diálogo filosófico, o simbolismo elevado e o fantástico aventuroso, fazendo com que essa particularidade se torne marcante numa literatura carnavalizada (Camargo, 1977. p. 45).”
Um bom exemplo da fusão de alguns desses elementos é o episódio onde a mulher de Jiguê leva o menino Macunaíma para passear e ele se transforma “num príncipe fogoso”.
Ao lado de expressões liricamente simbólicas como: “o berreiro foi tão imenso que encurtou o tamanhão da noite” ou “Depois a boca-da-noite engoliu todas as bulhas e o Mundo adormeceu”, encontramos construções de um naturalismo pesado, como a que se refere à surra aplicada por Jiguê no herói, e a que compara a Lua com a cara das polacas dos bordéis paulistanos.
Macunaíma é uma obra resultante das lendas indígenas, do folclore brasileiro, da situação política da época, da sátira e da paródia usados e dosados com muito sucesso por Mário de Andrade. É possível notar aqui a quinta característica apontada por Bakhtin: a sincrese.

Nem bem seis meses passaram e a Mãe do Mato pariu um filho encarnado. Isso, vieram famosas mulatas da Bahia, do Recife, do Rio Grande do Norte e da Paraíba, e deram pra Mãe do Mato um laçarote rubro cor de mal, porque agora ela era mestra do cordão encarnado em todos os Pastoris de Natal. Depois foram-se embora bailando que mais bailando, seguida de futebóleres águias pequenos xodós seresteiros, toda essa rapaziada dorê. ( Macunaíma, p. 30,31).


No “laçarote rubro cor de mal” fica clara a referência aos pastoris do Nordeste onde as pastoras se vestem de azul ou encarnado. De acordo com Camargo (1977. p. 45), os pastoris são brincadeiras populares da época de Natal e isso faz pensar numa paródia do nascimento de Cristo, assistido pelas mulatas do Nordeste, pelos jogadores de futebol e seresteiros. Mário usa o adjetivo “dorê”, introduzindo um elemento de ambiguidade: a palavra francesa dorê (que quer dizer dourado, gratinado) aparece com jeito brasileiro. Mais uma evidência da presença do sincretismo na rapsódia marioandradiana.
A ideia bakhtiniana das três estruturas (Céu, Terra e Inferno) foi aproveitada por Mário de Andrade, quando Macunaíma subiu ao Céu:


...o brasileiro seria um homem desavindo consigo mesmo. Não encontrando lugar próprio nem na mata nem na metrópole, nem no Uraricoera nem na Paulicéia, ele padece em ambos. Não por acaso Macunaíma desiste de viver na sua terra. Mas fugir para onde? Para o Céu, onde é possível morar como estrela e brilhar de um brilho inútil.
Mas antes de entrar no Céu, Macunaíma teve que passar pelo Inferno, que é o mundo das sombras, como aparece no trecho abaixo, onde Jiguê, transformado numa sombra leprosa, engoliu Maanape e espera o dia para se vingar do herói:
De manhã inda estava acocorada ali. Macunaíma acordou e escutou. Não se ouvia nada e ele concluiu:
Arre! Foi-se!
E saiu a passear. Quando passou pela porta a sombra trepou no ombro dele. (....). Estava padecendo de fome porém a sombra não deixava ele comer. Tudo o que Macunaíma pegava ela engolia (...) Então Macunaíma foi pescar (...) Mas cada peixe que tirava do anzol (...) a sombra pulava no ombro, engolia o peixe e voltava pro poleiro outra vez (Macunaíma, p. 199).


Este trecho apresenta a presença de Jiguê, transformado numa sombra como um indicador do tormento infernal do herói antes de ir para o Céu, retratando a crença da vida após a morte que está presente em muitas religiões.
As lendas e costumes indígenas, crenças populares, elementos do folclore afro-brasileiro e europeu, lendas americanas etc, constituem a construção do que Bakhtin chama de "fantástico experimental". Outra característica da literatura carnavalizada.
Um exemplo dessa característica está no capítulo I, onde é contado como Macunaíma começou a falar depois de ter bebido água num chocalho e conseguiu que a mulher de Jiguê, Sofará, o levasse para o mato.
Nem bem teve seis anos deram água num chocalho pra ele e Macunaíma principiou falando como todos. (...) Mas assim que deitou o curumim nas tiriricas, tajás e trapoerabas da serrapilheira, ele botou corpo num átimo e ficou um príncipe lindo. Andaram por lá muito. (Macunaíma, p. 10).


Camargo (1977. p.46), diz que toda vez que Macunaíma é depositado nas folhas da serrapilheira, ele toma corpo, dando um sentido telúrico ao episódio.
Mário de Andrade, no episódio da transformação de Macunaíma, lança mão de uma crença nordestina, segundo a qual beber água de chocalho faz falar depressa.
Esse fantástico está presente em todo o desenrolar da narrativa, onde Mário de Andrade canta a rapsódia de Macunaíma, “herói de nossa gente”.
Ainda segundo Camargo (1977. p. 46), Macunaíma é o anti-herói épico “o herói sem nenhum caráter” e que por isso mesmo reúne todas as características de nossa gente; o “herói oxímoro”, resultante de uma mistura de onde surge uma criação, à qual se une uma tradição. Entendemos por isso que ao reunir todas as características do povo brasileiro de todos os cantos do País, Mário de Andrade, através da carnavalização, mascarou a realidade brasileira sem deixar de valorizar as tradições populares. Nessa obra, o autor, ao mesmo tempo que foge da realidade através do protagonista nos mostra a realidade em que o povo brasileiro está inserido.
Representando os estados psíquicos anormais apontados por Bakhtin como uma das características da literatura carnavalizada, pode ser mencionado o trecho em que Macunaíma dialoga consigo mesmo a respeito da máquina:


Macunaíma passou então uma semana sem comer nem brincar só maquinando nas brigas sem vitória dos filhos da mandioca com a Máquina. A Máquina era que matava os homens, porém os homens é que mandavam na Máquina(...)Constatou, pasmo, que os filhos da mandioca eram donos sem mistério e sem força da Máquina sem mistério sem querer, sem fastio, incapaz de explicar as infelicidades por si. Estava nostálgico assim. Até que uma noite, suspenso no terraço dum arranha-céu com os manos, Macunaíma concluiu:
- Os filhos da mandioca não ganham da máquina nem ela deles nesta luta (Macunaíma, pág.52).


Em Macunaíma, o herói se nos apresenta por meio de vários desdobramentos de personalidade: ele é corajoso quando desafia a Boiúna e covarde quando foge da cabeça decepada; é esperto e ingênuo ao mesmo tempo: esperto quando engana o Currupira, ingênuo quando cai no conto do micura.
Quando Macunaíma faz um balanço do que fez em sua vida e não acha mais graça nesta Terra, decidindo ir pro Céu para ser o “brilho bonito mas inútil de mais uma constelação”, ele dialoga com sua consciência e deixa sua mensagem para os pósteros: “Não vim para o Mundo para ser pedra”.
A pedra aí simboliza a disciplina rígida, o método, a lapidação do caráter. Com isto, o herói deixa claro que não veio ao Mundo para ser disciplinado e de caráter lapidado, muito pelo contrário, Macunaíma, símbolo da esperteza e da improvisação, não tinha coragem para se dispor à organização, de modo que adotando um método escapista decidiu “ir pro Céu viver com a marvada. Ia ser o brilho bonito, mas inútil de mais uma constelação (p. 215).”. Como exemplo de infração às regras do “bom-tom”, de acordo com Camargo (1977. p. 47), podemos citar costumes que são normais entre os índios, como açoites e urtigas para aumentar o desejo sexual, mas que em nossa cultura são considerados extravagantes, podendo até mesmo serem tachados de perversões. Essa transgressão das regras do “bom-tom” aparece com frequência na carnavalização de Mário de Andrade, como podemos perceber no episódio das “brincadeiras” de Macunaíma com Ci, a mãe do mato (p. 30):


– A senhora me arrumou um dia-de-judeu! Nunca mais me bote flor neste... neste puíto, dona!
Macunaíma era desbocado duma vez. Falara uma bocagem muito porca, muito!


Macunaíma não tem papas na língua, como o leitor pode observar no decorrer do livro. Em qualquer ocasião, solta uma “palavra inconveniente”. No próprio personagem principal, Macunaíma, estão presentes os contrastes assinalados por Bakhtin, apontados como oxímoros.
Um exemplo marcante de jogo de contrastes é a “Carta pras Icamiabas”. Camargo (1977. p. 52) questiona: "existe contraste mais “escandaloso” que o estabelecido aí, entre o português clássico e a língua falada no Brasil?"


Como vedes, assaz hemos aproveitada esta demora na ilustre terra bandeirante, (...) por que iniciemos quando for do nosso retorno ao Mato Virgem, uma série de milhoramentos, (...) (Macunaíma. p. 102).


A construção “hemos aproveitada esta demora” contrasta flagrantemente com os “milhoramentos”, perceptíveis aí e em outras passagens do texto.
A “Carta pras Icamiabas” é fortemente marcada pela profanação, uma das categorias da percepção carnavalesca do Mundo, de acordo com Bakhtin. Isto se dá através da paródia de textos e de palavras sagradas. Camargo comenta que a “Carta” inteira é uma vaia carnavalesca: ao governo, aos falsos eruditos, aos costumes, enfim, a toda a estrutura social brasileira.
No capítulo VI (“A Francesa e o Gigante”), Macunaíma, fugindo do gigante, passa por regiões do Brasil que estão diametralmente opostas.

(...)Correram. Passaram lá rente à Ponte do Calabouço, tomaram rumo de Guajará Mirim e voltaram pra leste. (...) E desviava de cada castanheira, de cada pau d’arco, de cada cumaru bom de trepar. Adiante da cidade de Serra no Espírito Santo quase arrebentou a cabeça numa pedra com muitas pinturas esculpidas que não se entendia. De certo era dinheiro enterrado ... Porém Macunaíma estava com pressa e frechou pras barrancas da ilha do Bananal (Macunaíma, p.. 67-68).


Macunaíma anula as distâncias que separam as diversas regiões do País, como vimos no trecho acima. De acordo com Camargo (1977. p. 54), o herói supera o tempo e o espaço, talvez com a intenção de nos transmitir a utopia do autor de criar a unidade nacional. Aqui, observamos os elementos de utopia social apontado por Bakhtin como uma das características da literatura carnavalizada.
O herói reage quando não consegue ir à Europa com “arame” do governo:


– Paciência manos! Não! Não vou na Europa, não. Sou Americano e meu lugar é na América. A civilização europeia decerto esculhamba a inteireza do nosso caráter (Macunaíma, p.145).


Esse episódio contém traços utópicos, com a valorização do nacional em confronto com a civilização europeia. Mário de Andrade, através da ironia, mascara esses traços utópicos de tal maneira que o leitor, num primeiro momento, não os percebe. Esses traços utópicos juntamente com a ironia, deixam mascarada a utopia propriamente dita.
Camargo (1977. p. 54), afirma que, além da identidade nacional, a utopia do autor parece criar uma consciência hispano-americana, uma mesma civilização para a América Espanhola, refletida inclusive na forma gráfica: hispanoamericana, sem o hífen a separar as duas civilizações, que Mário parece querer juntar numa só, como podemos observar no trecho abaixo:


(...) Macunaíma se desculpou, subiu na montaria e deu uma chegadinha até a boca do rio Negro pra buscar a consciência deixada na ilha de Marapatá. Jacaré olhou? Nem ele. Então o herói pegou na consciência dum hispanoamericano, botou na cabeça e se deu bem da mesma forma (Macunaíma, p. 192).


Em Macunaíma, os gêneros “intercalares” mencionados por Bakhtin estão presentes em forma de carta: “Carta pras Icamiabas”, simpósios, discursos como o daquele “mulato da maior mulataria”, no “dia do Cruzeiro (p. 114)”, ou o do estudante:


“ – Meus senhores, a vida dum grande centro urbano como São Paulo já obriga a uma intensidade tal de trabalho que não permite mais dentro da magnífica entrosagem do seu progresso sequer a passagem momentânea de serem inócuos. Ergamo-nos todos una você contra os miasmas deletérios que conspurcam o nosso organismo social e já que o governo cerra os olhos e delapida os cofres da Nação, sejamos nós mesmos os justiçadores... (Macunaíma, p. 125-126)”


Percebemos, também, a presença de quadras populares no livro como, por exemplo, o canto folclórico do Boi-bumbá, onde é anunciado o fim do “herói de nossa gente”:

“Meu boi bonito,
Boi Alegria,
Dá um adeus
Pra toda a família!
“Meu boi bonito,
Boi desengano,
Dá um adeus,
Até para o ano!
“Meu boi bonito,
Boi Zebedeu,
Corvo avoando
Boi que morreu.” (Macunaíma, p. 200).


Em “Carta pras Icamiabas”, o herói lista dos nomes pelos quais são conhecidos os “guerreiros” da terra paulistana: “polícias, grilos, guardas-cívicas, boxistas, legalistas, masorqueiros etc () (p. 96)”.
No Macunaíma, o nascimento de novos tipos sociais em todas as camadas da sociedade propõe a presença da última característica mencionada por Bakhtin, onde incorpora-se à sátira social, feita através da pintura e da sátira dos costumes.
Camargo (1977. p. 59), exemplifica esse fenômeno em Piaimã, cujo nome de guerra é Venceslau Pietro Pietra, que simboliza o estrangeiro que vem ao Brasil fazer fortuna rapidamente e se casa com uma brasileira, no caso a velha Ceiuci (a caapora nacional), para apressar seu processo de assimilação. Como todo “novo rico”, o gigante gosta de contar vantagem sobre seus teres e haveres.
Mário de Andrade satiriza também as diversas classes de intelectuais: no discurso do “mulato da maior mulataria” (Macunaíma, p. 114), ele satiriza os poetas parnasianos e no “discurso do estudante” (Macunaíma, p.125)”, os oradores e “estudantes” da época, amantes das palavras difíceis e cheio de lugares-comuns.
Em Macunaíma, (p.194), o autor passa a satirizar a política “que, por todos os lados devora os dinheiros nacionais, querem paradas e roupagens luzidas, querem ginástica da recomendável. ”. Satiriza, ainda, os costumes, principalmente o de priorizar o dinheiro em detrimento dos valores éticos sacrificados para obtê-lo. O importante é ter dinheiro, não importando os meios usados para consegui-lo. Parasitismo, oportunismo, prostituição, vale tudo. O dinheiro é o abra-te-sésamo da sociedade. Como bem o diz Mário de Andrade em Macunaíma (p. 96), tal livro é o curriculum-vitae da nossa civilização.


CONSIDERAÇÕES FINAIS

Este breve estudo não teve como objetivo esgotar o assunto proposto, mas, sim, ampliar os horizontes para futuras análises de Macunaíma – uma obra de caráter singular e plural.
A carnavalização é um tema ainda pouco trabalhado na literatura, como pudemos observar em nossas leituras. No entanto, é um tema interessante e que merece ser analisado mais profundamente.
Observamos que a obra de Mário de Andrade, enquanto romance modernista, é um livro que às vezes parece ter sido escrito expressamente com a intenção de provocar uma análise bakhtiniana no campo da carnavalização literária, pois encontramos de maneiras evidentes as características desse gênero em praticamente toda a obra.
Macunaíma é o retrato da realidade carnavalizada, pois o desejo de todo ser humano é fantasiar a realidade em que vive.
A lógica do carnaval é a do Mundo de pernas para o ar, o Mundo às avessas, onde se zomba dos poderosos e onde reis são entronizados e depostos. O livro apresenta grande quantidade de imagens e procedimentos artísticos que Bakhtin teria citado como tipicamente carnavalescos: inversões sexuais, deposições cômicas de reis ridículos e incongruências linguísticas. Em Macunaíma, Mário de Andrade utiliza a vulgaridade criativa da cultura popular, não para atacar a cultura erudita, já que o livro é altamente erudito. Mas, sim, para atacar a cultura oficial, sufocante, elitista e colonizada.
Acreditamos que o objetivo proposto para este trabalho foi atingido, pois situamos a obra marioandradiana em cada característica da carnavalização proposta por Bakhtin, pertencendo Macunaíma ao povo e para o povo.

BIBLIOGRAFIA
ANDRADE, Mário. Macunaíma. 6.ª edição. São Paulo: Martins
BAKHTIN, Mikhail. Problemas da Poética de Dostoiévski. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1997.
BOSI, Alfredo. Céu, Inferno: ensaios de crítica literária e ideológica. São Paulo: Ática, 1988.
CAMARGO, Suzana. Macunaíma: ruptura e tradição. São Paulo: João Farkas / Massao Ohno, 1977.
STAM, Robert. Bakhtin: da teoria literária à cultura de massa. São Paulo: Ática,1992.
SAN’TANNA, Affonso Romano de. Paródia, Paráfrase & Cia. 4.ª edição, São Paulo: Ática, 1991.

___________________
Túlio Monteiro
- escritor, biógrafo, pesquisador, revisor, ensaísta e crítico literário, publica todas as segundas aqui no Evoé! Leia também Literatura com Túlio Monteiro.

Nenhum comentário:

Postar um comentário